Em uma das piores semanas de seu governo, com a condenação de dois ex-assessores na terça-feira e crescentes pressões pelo impeachment, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sentou-se nos jardins da Casa Branca para uma entrevista para a rede Fox News, conhecida por sua militância pró-republicana. Intercalando sorrisos e acenos de aprovação a cada resposta, a apresentadora do programa Fox & Friends perguntou lá pelas tantas qual era a nota que ele atribuía a sua gestão.
Trump respondeu que daria a si mesmo um “A plus” – o mais alto conceito no sistema americano. E emendou: “A única coisa em que estou indo mal… é que a imprensa não me cobre de maneira justa!”
A retórica de culpa alheia é a mesma desde que Trump se lançou na corrida eleitoral de 2016. A estratégia recorrente é contestar qualquer notícia negativa com o rótulo de fake news. Se algo é contra ele, não é verdade. A questão é que esse reino de fantasia é cada vez mais invadido pela realidade que ele tenta ignorar. E o custo da negação é alto, potencializado agora pela ameaça de impeachment. A Fantasilândia de Trump segue armada, mas está sob cerco.
Na mesma entrevista à Fox News, por exemplo, Trump disse que um eventual impeachment provocaria um colapso do mercado financeiro, “e todo mundo ficaria pobre”. A CNN – que ainda prefere jornalismo aos acenos de aprovação – foi atrás de investidores de Wall Street para repercutir a afirmação. E encontrou uma versão bem diferente, com analistas repetindo que a economia americana vai bem, e que não há o temor de alterações significativas em caso de posse do vice. Um dos entrevistados resumiu o clima em um relatório para clientes na quinta-feira: “O mercado parece ignorar as infindáveis controvérsias do presidente Trump e seus comentários malucos”, registrou Ivan Feinseth, chefe estrategista de mercado da Tigress Financial Intelligence, conforme a citação da CNN.
Em ataques que repete como mantra, Trump tenta se descolar dos escândalos chamando os jornalistas de “inimigos do povo” (já rotulou os jornalistas do New York Times de “lunáticos”, a revista New Yorker de “cansada”, o Washington Post de “nada mais do que um lobista da Amazon” e a CNN de “FNN”, a sigla que cunhou para “Fraud News”). O problema é que, cada vez mais, o grupo dos inimigos se amplia, e a retórica esquizofrênica vem sendo tragada pelos fatos. Até então, Trump tentava desqualificar as investigações que envolviam seus ex- assessores, dizendo que tudo não passava de “caça às bruxas”. A realidade voltou a perturbá-lo com as condenações desta semana, em uma trama com ares de pornochanchada.
O caso mais rumoroso foi a confissão de culpa de Michael Cohen, ex-advogado de Trump. Diante de um tribunal em Nova York, ele admitiu ter feito pagamentos ilegais à atriz pornô Stephanie Clifford e à ex-coelhinha da Playboy Karen McDougal, nos valores de 130 mil dólares e de 150 mil dólares, respectivamente. O objetivo era que elas não revelassem, durante a campanha de 2016, que tiveram relacionamentos extraconjugais com o então candidato. A operação abafa envolveu a empresa proprietária do tabloide National Enquirer, que comprou a história da ex-modelo da Playboy para nunca publicá-la. Sob juramento, Cohen afirmou que tudo foi feito seguindo ordens de Trump – que nega as acusações.
Em sua guerra particular pela verdade conveniente, Trump não teme incoerências. Primeiro, disse que não sabia de nada sobre os pagamentos. Mais tarde, quando Cohen divulgou um áudio em que conversa com o então candidato sobre a negociação, disse que só ficou sabendo depois da execução. Diante da confissão de Cohen, Trump agora insiste que a compra do silêncio das ex-amantes não seria um crime de campanha, e sim uma mera violação fiscal. E tenta dividir a culpa com Obama.
“Michael Cohen se declarou culpado de duas acusações de violações de financiamento de campanha que não são um crime. O presidente Obama teve uma grande violação de financiamento de campanha e foi facilmente resolvido!”, tuitou.
Mais uma vez, a checagem da informação pela imprensa americana revelou o oposto. Obama respondeu a um processo civil (teve que pagar uma multa de 375 mil dólares em 2013 por infrações como o descumprimento de prazos para declarar grandes doações eleitorais), enquanto o advogado de Cohen pode pegar até 65 anos de cadeia por dois crimes eleitorais: “Intencionalmente causar uma contribuição corporativa ilegal” e “fazer uma contribuição excessiva à campanha”, como detalhou um fact-checking do New York Times.
Coisa de lunáticos, bradaria Trump, como se assim pudesse enviar à lua as acusações que o comprometem. Irritado com a confissão do ex-advogado, o presidente também saiu atacando a reputação do profissional que o serviu por mais de uma década. “Se alguém está em busca de um bom advogado, sugiro veementemente que não contrate os serviços de Michael Cohen!”, tuitou.
No mesmo dia, outra corte em Virgínia decidiu pela condenação de Paul Manafort, ex-gerente de campanha de Trump. Ele foi considerado culpado de oito crimes, incluindo fraude bancária e sonegação, no primeiro grande julgamento derivado do inquérito do procurador especial Robert Mueller, que investiga a influência da Rússia nas eleições de 2016. Embora Trump não tenha sido diretamente envolvido neste julgamento porque as fraudes teriam ocorrido em anos anteriores, a condenação de Manafort respalda a seriedade do processo. Ainda no Twitter, Trump expressou solidariedade ao ex-chefe de campanha, ao mesmo tempo que alfinetou mais uma vez o ex-advogado.
“Me sinto muito mal por Paul Manafort e sua maravilhosa família. A ‘Justiça’ pegou um caso de taxa de doze anos atrás, entre outras coisas, aplicou uma tremenda pressão nele e, diferentemente de Michael Cohen, ele se recusou a ‘quebrar’ – inventar histórias para conseguir um acordo. Muito respeito por este bravo homem”, escreveu.
A manifestação levou a especulações de que Trump iria conceder perdão presidencial ao ex-chefe de campanha. Ontem, advogados o aconselharam a evitar a medida neste momento, o que poderia implicá-lo por tentativa de obstrução da Justiça – suspeita aliás que já está sob investigação.
Em seu best-seller A Higher Loyalty (Uma Lealdade Superior), o ex-diretor do FBI James Comey compara o modus operandi de Trump ao de um chefe da máfia, como se estivesse acima da moralidade e da verdade. Comey foi demitido por Trump no início das investigações sobre a conspiração russa, o que levaria à instauração do conselho especial agora liderado por Mueller (o procurador especial que, segundo a imprensa americana, Trump também planejava retirar do cargo, mas teria voltado atrás depois da ameaça de pedido de demissão por um conselheiro da Casa Branca, que o advertiu para o que seria uma “catástrofe política”.)
“Quando me vi empurrado para a órbita de Trump, mais uma vez eu estava tendo flashbacks da minha carreira anterior como promotor contra a máfia. O círculo silencioso de assentimento. O chefe no controle total. Os juramentos de lealdade. A visão de mundo entre nós e eles. A mentira sobre todas as coisas, grandes e pequenas, a serviço de algum código de lealdade que coloca a organização acima da moralidade e da verdade ”, descreve Comey em seu livro.
A reação de Trump aos novos escândalos, com elogios a quem “não quebra”, independentemente da gravidade das acusações, trouxe a comparação mafiosa de volta às manchetes. Além de Cohen e Manafort, outros três ex-colaboradores de Trump já foram condenados ou se declararam culpados pela Justiça, aumentando o cerco ao presidente.
Em sua capa desta semana, a The Economist pergunta se Trump está acima da lei. No editorial, responde: “A confissão de Cohen fez do presidente dos Estados Unidos um co-conspirador não declarado em dois crimes federais. Isso torna esta uma semana triste para os Estados Unidos. Mas é vergonhoso para o Partido Republicano, cujos membros permanecem mais dedicados a minimizar a má conduta do senhor Trump do que ao ideal de que ninguém, nem mesmo o presidente, esteja acima da lei.” Enquanto isso, na terra de fantasias do presidente, tudo não passa de uma conspiração da mídia – essa sim, como mostram as confissões e condenações de ex-aliados, talvez a mais legítima das fake news.