Numa eleição presidencial altamente polarizada nas redes sociais, os endossos de jornais a candidatos, tradição da imprensa escrita nos Estados Unidos desde o século XIX, se tornaram um dos campos de batalha das últimas semanas da campanha.
De um lado, empresários como Jeff Bezos, que na última década compraram jornais importantes como o Washington Post, decidiram de última hora abster-se de publicar editoriais em apoio à democrata Kamala Harris, temendo represálias econômicas do republicano Donald Trump caso eleito. Desde então, ele vem sendo cobrado pelo slogan “A democracia morre nas trevas”, que o jornal adotou alguns anos depois que ele o comprou.
De outro, o empresário Elon Musk, que há dois anos comprou a rede social Twitter e a reformulou à sua imagem e semelhança, a cada dia direciona mais dinheiro seu e atenção dos usuários de sua plataforma para tentar eleger o republicano. Segundo a revista Wired, o comitê de ação política, o America PAC, criado por Musk em apoio a Trump, usa o X como “um esgoto de negacionismo eleitoral”, multiplicando acusações falsas de fraude contra os democratas, especialmente usando boatos sobre imigrantes.
Ao contrário do Brasil, onde o Tribunal Superior Eleitoral suspendeu a rede de Musk durante mais de um mês por acusações, entre outras, de facilitar a multiplicação de desinformação de cunho eleitoral, os Estados Unidos não contam sequer com um sistema eleitoral unificado. No limite, cada localidade organiza a eleição à sua maneira, e os questionamentos são encaminhados ao Judiciário comum. Assim, ações de Musk como tentativas de confundir democratas sobre o registro eleitoral ou o sorteio de 1 milhão de dólares por dia entre apoiadores de Trump passam batido durante a campanha. Apelidado pelos brasileiros de “Kiko do Foguete” por seu comportamento semelhante ao do personagem mimado do seriado Chaves, Musk tem participado de comícios de Trump na condição de ministeriável, prometendo fazer nos Estados Unidos algo parecido ao que fez no X.
Essa divisão entre a extrema cautela no apoio a Kamala pelos bilionários que compraram jornais e a completa falta de comedimento da parte do bilionário que comprou a rede social ilustra os principais aspectos do ambiente bagunçado de informação no mundo pós-redes sociais. Com as redes concentrando praticamente toda a vida social possível nos anos da pandemia, elas ganharam centralidade na moldagem de percepções e até do tom do discurso. Tudo o que não puder ser enquadrado como uma final de reality show acaba sendo visto por muitos como chato demais para prestar atenção.
Os editoriais em apoio a presidenciáveis são publicados ao menos desde o tempo da Guerra de Secessão dos Estados Unidos, há quase 160 anos. O New York Times apoiou Abraham Lincoln em 1860 e 1864, e desde 1960, quando John Kennedy foi eleito, sempre se manifesta em favor dos democratas. Já o Washington Post passou a endossar claramente os presidenciáveis do Partido Democrata depois de 1976, quando se opôs à reeleição de Richard Nixon enquanto o jornal vinha revelando um esquema de espionagem e sabotagem partindo do seu comitê de campanha. Era o caso Watergate, que se tornou um modelo de jornalismo investigativo para gerações e transformou em personagens de Hollywood os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein.
No final de outubro, pela primeira vez em mais de meio século, o próprio dono do jornal, Jeff Bezos, chamou os editores a Miami para mandar cancelar a publicação do editorial em apoio a Harris, que estava pronto para publicação. O motivo: caso o pavão vingativo Trump fosse eleito, os contratos de outras empresas de Bezos com o governo, como a Blue Origin (de exploração espacial) e a Amazon Web Services (de infraestrutura de nuvem), podiam estar ameaçados.
Imediatamente após a suspensão do apoio formal, segundo o ex-colunista Robert Kagan, Trump recebeu em Austin, no Texas, executivos da Blue Origin. Nos dias que se seguiram, o Post sofreu uma série de reações: 21 colunistas publicaram no próprio jornal um artigo criticando a decisão; o próprio Kagan pediu demissão, bem como a editora que escreveu o editorial pró-Kamala e mais um membro do conselho editorial; os heróis da cobertura de Watergate, Woodward e Bernstein, publicaram uma nota que critica a decisão de Bezos.
Mas a reação mais sentida foi a de 250 mil assinantes, ou um décimo dos leitores que pagam para ler o jornal, que cancelaram sua assinatura. Nos Estados Unidos, desde 16 de outubro, é obrigatório que assinaturas possam ser canceladas com um clique. Isso impede que a empresa force o leitor a telefonar e implorar para cancelar uma assinatura, como é regra no Brasil. Bezos até tentou se explicar num artigo que culpa os leitores por não entenderem que apoiar ou não um candidato não muda nada, mas já era tarde.
Bezos não foi o único dono de jornal recente a tomar essa decisão. O Los Angeles Times, comprado em 2018 pelo médico bilionário Patrick Soon-Shiong, e o USA Today, cuja controladora foi comprada em 2023 pelo fundo Mubadala, de Abu Dhabi, também desistiram de última hora de publicar editoriais em apoio a Kamala Harris. A revista Newsweek também cita decisões semelhantes no Minnesota Star Tribune, comprado em 2014 pelo empresário Glen Taylor (cartola de times de basquete na região), no Tampa Bay Times, de propriedade do Poynter Institute for Media Studies, e no Omaha World-Herald, comprado em 2011 pelo investidor Warren Buffett.
Há dois argumentos mobilizados pelos que defendem essas suspensões: primeiro, a tradição de jornais apoiarem candidatos presidenciais está caindo em desuso; segundo, esse apoio não muda a cobertura noticiosa do jornal. Isolados, os dois argumentos são verdadeiros.
Segundo estudos compilados pela pesquisadora Doris Graber na mais recente edição do livro Mass Media in American Politics, de 2022, de fato o apoio de um jornal a um presidenciável não altera a cobertura feita pelo jornal, como aponta Bezos. (Nos jornais locais, por outro lado, o candidato apoiado costumava ter mais cobertura do que o oponente.) E, em termos quantitativos, o número de jornais de grande circulação que apoiam presidenciáveis realmente despencou de 92 em 2004 para 54 em 2020, segundo o The American Presidency Project, da Universidade da Califórnia em Santa Barbara. As quedas são bruscas e aumentam a cada eleição desde 2008. Os dados de 2024 ainda estão sendo coletados.
O problema, como sempre, é o contexto. Desde a grande recessão de 2008, houve nos Estados Unidos uma onda de quebra de jornais pequenos e compra de jornais maiores por empresários de outros ramos em busca de prestígio ou influência. Os dois símbolos dessas aquisições foram a compra do Omaha World-Herald pelo investidor Warren Buffett, em 2011, e a do Washington Post por Bezos, em 2013. (Buffett só não está sendo acusado de covardia política neste ano porque anunciou ainda em 2022 que seu jornal deixaria de apoiar presidenciáveis.)
No aperto daqueles anos, em que o predomínio das redes sociais sequer era tão relevante, essas aquisições foram saudadas como uma espécie de salvação da lavoura, uma volta aos velhos tempos em que os donos de jornais eram empresários ligados à comunidade. Mas o mundo já havia mudado muito.
Paralelamente, fundos de investimento também intensificaram a compra de redes de jornais, cortando nas equipes e prédios e unificando títulos que atendiam regiões próximas. Essas redes de jornais são responsáveis por boa parte dos títulos que deixaram de apoiar candidatos nos últimos anos. O tradicional grupo Tribune, que publicava o Los Angeles Times e o Chicago Tribune, vendeu o primeiro para Soon-Shiong, se desfez de prédios, demitiu equipes e tentou transformar o restante do que tinha numa confusa empresa chamada Tronc, que não durou muito tempo.
Os dados do American Presidency Project mostram como, nunca antes na história daquele país, um candidato foi tão pouco endossado por jornais como Trump em 2016. No ano em que foi eleito, ele foi apoiado apenas pelo Las Vegas Review-Journal (233 mil exemplares) e pelo The Florida Times-Union (82 mil exemplares). Quatro jornais, dos quais o maior era o USA Today (2,9 milhões de exemplares), que nunca se manifestara em eleições, declararam preferir qualquer candidato menos Trump. Após o assédio do magnata à imprensa ao longo de seu governo, na eleição de 2020, 22 jornais que apoiaram Hillary Clinton em 2016 acharam por bem não apoiar ninguém.
Trump fez sua campanha e seu governo transformando a imprensa em seu alvo favorito, acusando qualquer perguntador inconveniente de fake news, mesmo com todas as operações de desinformação (russa ou não) rolando a seu favor nas redes sociais. Ao mesmo tempo, a primeira eleição de Trump teve impactos positivos na imprensa norte-americana. A ansiedade com as ações do seu governo motivou o aumento de assinaturas dos maiores jornais dos Estados Unidos. Suas falas insultuosas, suas políticas públicas extremas, a série de processos judiciais a que responde e a profusão de colunas e artigos opinativos contra e a favor dele fizeram com que seu governo desse de presente à imprensa recordes e mais recordes de audiência, no chamado “Trump Bump”. E isso depende fundamentalmente do empuxo das redes sociais.
Desde então, o New York Times aumentou a contratação de colunistas e articulistas que mal escondem seu apreço por Trump e deu mais espaço a colunistas que, não sendo trumpistas, também gostam de fazer o papel de advogado do diabo. Nada atrai mais cliques do que a raiva, como atesta Jonah Berger no livro Contágio – Por que as Coisas Pegam. Foi assim que o colunista Ezra Klein, que mantém um podcast de debate de ideias no jornal, ganhou protagonismo no debate político. Ele passou meses insistindo na ideia de que Joe Biden estava velho demais para concorrer a um novo mandato, e recebia tratamento de superstar ao frequentar comícios do Partido Democrata quando Biden abandonou sua candidatura em favor da vice Kamala Harris.
A polarização em torno de Trump chama tantos cliques que, mesmo com o New York Times tendo apoiado Kamala Harris, o ex-presidente aparece muito mais vezes do que ela na homepage do jornal toda semana. Levantamos o número de títulos diários publicados na homepage do The New York Times, desde o início do ano, citando os nomes de Trump, Kamala e Biden. Exceto por dois momentos específicos – o debate sobre a idade de Biden e a nomeação de Kamala como candidata –, Trump sempre recebe mais títulos que os democratas. Muitas vezes os títulos têm tom crítico, mas na economia da atenção o que interessa é estar lá.
Trump é citado na home do New York Times no mínimo 30 vezes por semana, com um pico de 126 vezes em julho. O máximo a que Biden chegou foram 76 menções na semana em que abandonou a campanha; Kamala, 87 quando começou a sua. Mesmo assim, há intersecções: dos 66 títulos que citam Kamala desde 22 de outubro, 29 também citam Trump (44%). Esses mesmos títulos representam menos de um quarto dos 120 títulos que citam Trump no mesmo período.
Além disso, os títulos do Times são constantemente editados para suavizar críticas a Trump. Para acompanhar essas edições, um jornalista criou o perfil “Editing the Blue-Gray Lady”, um robô que monitora alterações em títulos do jornal. Praticamente todas as comparações entre as falas de Trump e elementos do fascismo são suavizadas depois de publicadas. Há alguns dias, Trump caçoou da senadora Liz Cheney num comício, dizendo esperar ver como ela reagiria sob a mira de uma arma contra sua cabeça. O título foi alterado diversas vezes, tornando-o cada vez mais anódino:
- “Harris chama o palavreado violento de Trump sobre Liz Cheney de ‘desqualificante’”
- “Harris e Trump se confrontam sobre seu palavreado violento sobre Liz Cheney”
- “Harris e Trump fazem campanha no Milwaukee num último impulso no Wisconsin”
Por isso, até a semana passada, o New York Times recebia muito mais críticas dos leitores do que o Washington Post. A retirada do apoio por parte de Bezos conseguiu virar o jogo de tal maneira que o Times colocou sua editora de opinião para fazer um vídeo explicando por que, ao contrário dos concorrentes, o jornal declara apoio. “Concluímos, como deveria ser óbvio para todos os leitores, que Kamala Harris está qualificada para ser presidente dos EUA e Trump não está”, resumiu Kathleen Kingsbury no vídeo.
O diabo é que, sendo uma cria da cultura sensacionalista dos tabloides dos anos 1980 e dos reality shows do começo deste século, Trump sabe atrair atenção como poucos, e isso acaba sendo uma arma em tempos de redes sociais.
Vem daí o peso do grande endosso recebido por Trump na campanha: o de Musk, dono do X, o antigo Twitter e um pavão irascível como seu candidato apoiado. Kate Conger e Ryan Mac, no livro Limite de Caracteres, sugerem que ele comprou a rede para se manter todo dia como o “personagem principal” dela, o que permite um certo grau de controle sobre os movimentos econômicos e políticos do seu interesse. Desde que comprou a empresa, Musk eliminou os controles de moderação e criou uma categoria de contas pagas que automaticamente ganham maior visibilidade do que as gratuitas, facilitando a vida de qualquer um que tenha um peixe a vender (não raro criptomoedas de origem duvidosa).
Durante os últimos dez anos, sempre que havia propostas de regulamentação das redes sociais, o principal argumento utilizado por elas era o de não fazerem controle editorial. Musk rasgou essa fantasia, apostando todas as suas fichas na candidatura de Trump, que terminou vitoriosa.
Desde que comprou a rede favorita dele e do ex-presidente, Musk tem feito movimentos cada vez mais frequentes para amplificar vozes que concordam com eles. Tanto que, durante os 38 dias em que o X esteve bloqueado no Brasil, usuários relataram no Bluesky que recebiam alertas de postagens do próprio Musk, de Trump e de políticos de extrema direita brasileiros cujas contas inclusive estavam bloqueadas no Brasil – mesmo sem ter acesso ao aplicativo e mesmo sem sequer seguir essas contas.
O grande endossador da campanha de Trump explorou todas as brechas do sistema eleitoral norte-americano. Na falta de um TSE com um ministro suficientemente vaidoso, ninguém o impediu. Nem mesmo quando ele resolveu sortear 1 milhão de dólares por dia para quem for “assinar uma petição em apoio à Constituição” nos estados mais disputados, o que é visto como uma tentativa de arregimentar eleitores para Trump. Um juiz da Filadélfia, primeiro estado com decisão judicial a respeito, não viu problema algum.
Na semana passada, logo depois de derrubar o editorial em apoio a Kamala Harris, o Washington Post publicou a informação de que Musk emigrou ilegalmente para os Estados Unidos no começo de sua carreira, trabalhando sem um visto nos seus primeiros anos no país após abandonar os estudos. Era, portanto, um “imigrante ilegal” como os que tanto critica. Ele nega. Segundo um especialista ouvido pela Newsweek, se isso for verdade, ele ainda corre o risco de ser deportado, trinta anos depois. Com um novo governo Trump, no entanto, é difícil acreditar que isso vá acontecer.
O texto foi atualizado às 17h de 07/11/2024.