Ao saber que o galpão localizado na Vila Leopoldina, Zona Oeste de São Paulo, estava ardendo, Carlos Magalhães, que esteve à frente da Cinemateca Brasileira por mais de uma década, dirigiu-se imediatamente ao imóvel da Rua Othão. Foi Magalhães quem, em 2011, comandou a transformação do antigo galpão de bombas hidráulicas na sede número dois da Cinemateca. A ideia era que essa unidade recebesse parte da reserva de documentos históricos e filmes guardados na Vila Clementino, na Zona Sul de São Paulo, e, futuramente, abrigasse também um museu. Ontem, ao ver o espaço do sonhado museu em chamas, ele chorou. Magalhães foi demitido do cargo de diretor-executivo da Cinemateca em 2013, pela então ministra da Cultura Marta Suplicy, naquele que seria o marco inicial de uma crise institucional que não tem fim e que, com o governo Bolsonaro, ganhou contornos de drama.
Esse quinto incêndio a atingir a instituição (os demais se deram em 1957, 1969, 1982 e 2016) soa quase como um último grito de socorro. Segundo o Corpo de Bombeiros, as chamas atingiram três salas que ocupam uma área de aproximadamente 400 m2, no primeiro andar do edifício.
Ainda não se sabe exatamente o que queimou – e o acervo principal da instituição fica no prédio da Vila Clementino. O cineasta Roberto Gervitz, que há dois anos está engajado na luta pelo salvamento da Cinemateca, conta que estava nesse galpão todo o acervo do Instituto Nacional de Cinema (1966-75), do Conselho Nacional de Cinema (1976-90), da Embrafilme (1969-90) e da Secretaria do Audiovisual. Em resumo, a história da política cinematográfica brasileira.
Eram, supostamente, 4 toneladas de papel que tinham sido mandadas para lá pela Agência Nacional do Cinema (Ancine). Segundo Carlos Augusto Calil, professor de cinema da Universidade de São Paulo, apenas a documentação da Embrafilme já tinha sido já catalogada. Ou seja, todo o resto se esvaiu para sempre. Os pesquisadores estão em choque.
Estavam ali também equipamentos antigos que deveriam compor o museu que nunca existiu e cópias doadas pela distribuidora Pandora. Esses filmes têm matrizes originais, ou seja, a perda não é irreversível. Mas isso não minimiza em nada o sentimento de André Sturm, dono da Pandora: “Estou arrasado. Era uma coleção com pérolas coletadas ao longo de 20 anos de cineclubismo.” Essas cópias já haviam sido parcialmente danificadas pela enchente que atingiu o térreo do prédio no ano passado.
As labaredas levaram ainda centenas de curtas-metragens produzidos pelos alunos do curso de audiovisual da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP). “Ainda é difícil, para mim, acreditar”, diz Maria Dora Mourão, professora da ECA e diretora da Sociedade de Amigos da Cinemateca (SAC).
Ao mesmo tempo em que é inacreditável, o incêndio eram favas contadas. No próximo dia 7 completa-se um ano desde que o governo federal, na pessoa do secretário substituto do Audiovisual, Hélio Ferraz de Oliveira, “tomou as chaves” da instituição. Nesse dia, foi definitivamente rompido o contrato com a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), que era responsável pela gestão da Cinemateca desde 2018. Na data, 152 funcionários foram demitidos.
O governo prometeu, naquele momento, que em dois meses publicaria um chamamento público para que se escolhesse uma associação da sociedade civil que pudesse substituir a Acerp. Um ano se passou. E foi apenas no último dia 7 de julho que a Secretaria Especial de Cultura realizou uma audiência pública para definir as diretrizes do chamamento.
Provavelmente por uma infeliz coincidência, o chamamento foi publicado hoje no Diário Oficial da União. Apesar de haver quem atribua a publicação a uma estratégia de mitigação da crise, a publicação estava de fato prevista para esta semana. O governo se propõe a fazer um contrato de gestão, pelo período de cinco anos, com um repasse de 10 milhões de reais anuais. Em contrapartida, a entidade contratada deve captar no mercado 4 milhões de reais.
O repasse é considerado insuficiente para as necessidades da Cinemateca e, além disso, a proposta contém exigências que vão contra a natureza de uma instituição pública. Entre elas, está a sugestão de que os produtores dos filmes paguem uma taxa para ter os filmes ali guardados. Na opinião de Calil, isso seria o equivalente à Pinacoteca do Estado de São Paulo cobrar dos artistas que têm obras em seu acervo. Sugere-se também o aluguel do espaço para eventos.
Não está de todo descartado que a publicação seja cancelada, uma vez que o incêndio mudou o cenário anterior. De toda forma, na melhor das perspectivas, serão necessários pelo menos seis meses para que, seguindo os ritos da administração pública, uma nova entidade gestora seja contratada. Não se pode desconsiderar, por fim, que os trâmites burocráticos esbarram sempre na própria incompetência do governo.
Mesmo aquilo que é de claro interesse da Secretaria tende a levar muito tempo para ser concluído. Um exemplo disso é que apenas anteontem foi regulamentada a ida da Secretaria da Cultura para o Ministério do Turismo. A transferência da pasta do Ministério da Cidadania para o Turismo tinha sido anunciada no fim de 2019.
Carlos Augusto Calil, que vinha acompanhando as negociações para a efetivação do chamamento, acha que, neste momento, além do governo, é preciso responsabilizar a Justiça Federal e a Advocacia-Geral da União. Ambas negaram, em agosto do ano passado, o pedido de tutela de urgência feito pelo MPF. Numa audiência realizada no dia 20 de julho, o MPF voltou a alertar o governo dos riscos de incêndio.
A tutela tinha o objetivo de garantir que a Sociedade de Amigos da Cinemateca pudesse assumir provisoriamente os cuidados com a instituição. Existe uma dificuldade jurídica para que a SAC assuma a gestão por causa de uma dívida com a União, decorrente, justamente, do processo de prestação de contas aberto em 2012 – aquele que culminou na demissão de Magalhães. A SAC era, pelo menos até ontem, uma das entidades que pretendiam se apresentar como candidata no chamamento público.
A única certeza, por ora, é a de que enquanto a burocracia se arrasta, a instituição agoniza. Os dois prédios da Cinemateca estão fechados desde março de 2020, quando a crise com a Acerp atingiu o ápice e teve início a pandemia. Até a “tomada das chaves”, alguns funcionários, mesmo com os salários em atraso, chegaram a ir à sede da Vila Clementino para verificar as condições da reserva técnica. Acontece que desde o dia 7 de agosto de 2020 eles estão todos proibidos de lá entrar.
À altura, além de prometer a resolução burocrática do impasse, o governo tomou para si a responsabilidade de manter a instituição. Foram pagas as contas de luz em atraso e contratadas empresas terceirizadas para fazer a manutenção. Era uma dessas empresas que, ontem, trabalhava no sistema de climatização das câmeras onde ficam guardados, sob baixas temperaturas, os materiais. O Corpo de Bombeiros não sabe como se deu o acidente. Sabe-se, porém, que ele começou durante o trabalho de manutenção do ar condicionado.
Hélio Ferraz, que compareceu à Vila Leopoldina ontem à noite, disse que a Polícia Federal vai apurar a origem do incêndio. Mas, no fundo, qualquer que seja o resultado dessa apuração, a razão primeira para o acidente é óbvia: o descaso (para não falar em ímpeto destruidor) do poder público. Hoje, os antigos trabalhadores da instituição, que têm a promessa de recontratação, divulgaram uma carta cujo título é Crime anunciado.
Há dois meses, um grupo da sociedade civil fez uma visita oficial ao prédio da Vila Clementino para verificar as condições do local. Encontraram tudo limpo e, aparentemente, cuidado. Acontece que os acervos, por mais contraditório que possa parecer, são organismos vivos. Enquanto o nitrato de celulose, material dos filmes mais antigos, é altamente inflamável, o acetato, base da maioria do acervo, deteriora-se por meio do endurecimento ou do derretimento.
Manter a temperatura do ar condicionado é o mínimo. Mas está longe de ser o bastante. As matrizes têm de ser verificadas cotidianamente. E esse trabalho não pode ser feito por empresas terceirizadas, pois exige, além de um conhecimento altamente especializado, um tanto de amor. Tão assustador quanto o fogo é pensar que, neste momento, enquanto se contabiliza aquilo que virou cinzas, outros filmes podem estar, silenciosamente, agonizando no prédio de tijolinhos aparentes da Vila Clementino.