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    Ilustração: Carvall

questões da diversidade

Arco-íris na urna

Pelo menos 89 pessoas LGBT foram eleitas para as Câmaras Municipais em 69 cidades

Felippe Aníbal | 23 nov 2020_10h26
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No início da noite de 15 de novembro, a cabeleireira Fernanda Saulo Carrara, de 43 anos, foi acompanhar a apuração da eleição municipal na residência de um casal de amigos. Candidata a vereadora em Piraju – cidade de 29,8 mil habitantes, localizada a 330 km de São Paulo –, ela tentava dar ao domingo ares de um dia normal. Nem se produziu: foi usando tênis, bermuda e moletom. Com o atraso na atualização do resultado oficial, começaram a circular pelo WhatsApp listas com o nome dos supostos eleitos. Fernanda não aparecia em nenhuma delas. Conformada, foi para casa, já após as 23 horas. Assim que chegou, recebeu uma mensagem da sobrinha, que dizia que Fernanda tinha sido eleita. Já passava da meia-noite quando a candidata conseguiu, enfim, confirmar a informação. Tornava-se a primeira mulher transexual eleita na história da cidade.

“Quando a ficha caiu, um filme passou na minha cabeça, com tudo que eu passei, com tudo que eu já sofri. Eu não sou uma coitadinha, não é isso. Mas por ser trans, eu tive que aprender a transformar os ‘nãos’ em ‘sim’”, disse a vereadora eleita. “Não é uma conquista só minha, mas de muita gente que não é vista, que não é lembrada. Os 361 votos que eu tive são como se eu tivesse tido 1 milhão [de votos], por ser uma cidade tão pequena, tão conservadora”, acrescentou.

Oito pessoas trans foram eleitas vereadoras em municípios que têm menos de 30 mil habitantes.  Segundo levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), no total, trinta transexuais conquistaram mandatos nas Câmaras – quase o quádruplo em relação aos oito eleitos em 2016. A diversidade é ainda mais significativa se levar em conta gays, lésbicas, bissexuais e afins. O mapeamento “Voto com Orgulho”, da Aliança Nacional LGBTI+, identificou, até agora, pelo menos 82 pessoas LGBTI+ eleitas para as Câmaras municipais – eram 38 em 2016. O número é um ponto de partida, já que sete pessoas da lista da Antra, por exemplo, não estão no relatório da Aliança Nacional – o que aponta a eleição de pelo menos 89 pessoas LGBTI+ em 69 cidades de dezenove estados. Erika Hilton (PSOL) foi a primeira vereadora trans eleita na cidade de São Paulo e, com 50.508 votos, tornou-se a mulher mais votada do país. Mas, apesar do avanço, 89 pessoas LGBTI+ eleitas são apenas 0,15% dos 58 mil vereadores de todo o país.

Para os grupos de defesa da população LGBTI+, o resultado da eleição foi bastante expressivo. A Aliança Nacional projetava um número menor de eleitos: cerca de cinquenta candidatos gays, lésbicas ou trans. O presidente da entidade, Toni Reis, avalia que, por um lado, o aumento do número de LGBTIs eleitos está relacionado a conquistas recentes garantidas pelo Supremo Tribunal Federal, como o direito ao casamento de pessoas do mesmo sexo e a criminalização da LGBTfobia. Por outro lado, ele acredita que o resultado nas urnas seja uma reação à onda de extrema direita, que se sobressaiu na eleição anterior. Nesse sentido, ele considera importantíssimas as vitórias ocorridas em pequenos municípios. 

“Nós entramos nas cidades médias e cidades pequenas, onde moram o conservadorismo e o extremismo. É onde a igreja, a delegacia e a prefeitura têm muito poder. Colocar pessoas LGBTI+ assumidas nas Câmaras mostra que elas estão perdendo o medo de se assumir no interior. Isso é muito importante para nossa causa”, disse Reis. “Fomos muito atacados nos últimos anos e estamos nos preparando para chegar ao Congresso. O objetivo é termos senadores e senadoras, deputados e deputadas aliados à causa e que pessoas LGBTI+ também tenham condições de concorrer”, acrescentou. 

Fernanda não se considera de esquerda, nem propriamente uma militante. A pirajuense nunca fez parte de um grupo organizado, não militou em ambiente universitário, mas diz que sempre lutou por inclusão e igualdade. Aproximou-se da política partidária em 2006, para fazer campanha para o deputado Gil Arantes (DEM). “Eu nunca tinha sido respeitada como fui no meio político. Queria que todos como eu fossem respeitados daquele jeito. Vi que aquele era o caminho”, disse. Em 2008, candidatou-se pelo DEM, mas ficou como suplente. Em 2020, Fernanda se filiou ao PTB três meses antes da eleição. Sua presença no PTB mostra que, embora as candidaturas LGBTI + sejam mais frequentes em partidos de esquerda, elas também apareceram ao centro e à direita.  Pelo levantamento da Antra, das trinta pessoas trans eleitas, onze estão em siglas consideradas de centro, dezesseis em partidos de esquerda e três, de direita.

Fernanda Carrara, vereadora trans eleita em Piraju, estado de São Paulo – Foto; Acervo pessoal

 

De São Paulo a Piraju, os eleitos LGBTI+ expressam o desejo de dar visibilidade à causa e a trabalhar por projetos de inclusão e garantias de direitos. Fernanda reconhece que a polarização política que ocorre em âmbito nacional também se reflete na pequena Piraju e deve ter impacto na Câmara. Por isso, já expôs seu posicionamento: “É meio complicado, porque há uma divisão e a impressão que dá é que o [presidente Jair] Bolsonaro é um ídolo aqui. Então, até por isso, minha vitória significa muito”, disse. “Pelos discursos homofóbicos, de racismo e de preconceito, eu sou contra o atual presidente. Ele não me representa”, acrescentou. Bolsonaro teve 74% dos votos válidos no segundo turno da eleição de 2018, na cidade.

A eleição da primeira mulher trans recebeu acenos positivos em Piraju. Dois dias após a votação, Fernanda recebeu, por uma rede social, uma mensagem do padre Gilberto Moretto, parabenizando-a pela eleição. Vereador eleito para seu terceiro mandato, o fiscal de rendas da prefeitura e ex-sacristão Valberto Zanatta (PSDB) conhece todos os que vão compor a Câmara na próxima legislatura e acredita que Fernanda não deve encontrar “interferências” em razão de sua identidade de gênero. O prefeito José Maria Costa (DEM), de 75 anos, reeleito, mas cuja candidatura está sub judice, disse que Piraju mostrou nas urnas que não tem preconceito e que a vereadora tem condições de fazer um trabalho histórico.

“Não é só Piraju, mas acho que a nossa cidade está pensando [de forma] mais moderna. As pessoas que votaram na Fernanda demonstram que a cidade respeita as escolhas dela. Eu acho que ela vai querer deixar uma marca, não só como a primeira trans, mas como uma trans que fez um excelente trabalho”, disse Costa à piauí. “As pessoas estão assumindo o gênero que escolheram e isso não depende de a cidade ser grande ou pequena. Acredito que ela não vá ter dificuldades na Câmara. Todos vamos tratá-la como ela é: a Fernanda, uma pessoa normal, que todos conhecem há anos. As eventuais divergências ficarão no campo político”, afirmou Zanatta.

Apesar das declarações de apoio, Fernanda já foi alvo do primeiro ataque como eleita, o que indica que os tons conservadores do município não foram totalmente superados. Pouco depois da divulgação do resultado, vizinhos se estendiam em uma confraternização, quando, de sua casa, ela ouviu alguém comentar que a Câmara passaria a contar com três vereadoras. Uma das vizinhas, no entanto, reagiu: disse que Fernanda era homem e que, portanto, eram duas mulheres eleitas. A trans acredita que, ao longo de seu mandato, terá que conviver com inúmeros outros episódios de intolerância, mas se diz pronta para enfrentá-los.

“Eu bati [palmas] na casa da vizinha e disse que não era daquele jeito. Que ela tinha que me respeitar”, contou. “Todo mundo acha bonito, acha novo, mas ainda tem muito preconceito. Como toda cidade pequena, Piraju ainda é muito conservadora, eu sei que vou ser cobrada e que vão ter coisas desagradáveis. Quando eu sentir preconceito, vou dizer pra pessoa que não é daquela maneira. Eu respeito, mas também sei exigir para ser respeitada”, disse.

Fernanda nasceu em uma família humilde e desde sempre teve que lidar com preconceito. Filha caçula de um marceneiro e de uma babá, tem cinco irmãos: duas mulheres e um homem heterossexuais; e dois gays – um dos quais morreu em decorrência da Aids. Aos 8 anos, descobriu que era “diferente” dos amigos de escola. Aos 12, entendeu o que “estava acontecendo”. Deixava “roupas femininas” na casa de amigas e primas, para se trocar antes de ir para a escola, vestida como se identificava: como uma menina.

Segundo Fernanda, o pai demorou a aceitar a condição dos filhos homossexuais – chegou a “dar uma sova” no mais velho que, depois disso, saiu de casa. “Ele [o pai] nunca deixou de dar amor, mas tinha medo de que a gente sofresse”, justificou. A mãe, por outro lado, sempre a acolheu. Chegava a lavar à mão as meias que a adolescente usava como “enchimento” no busto. Em contrapartida, só fazia um pedido: que a filha não fizesse cirurgia para alterar o corpo. “Eu tinha vontade de pôr peito. Ela chegava com as meias e falava: ‘Fica assim, mas não faça [cirurgia], que vai te dar problema’. E ela estava certa. Muito depois, eu cheguei a pôr prótese [de silicone], mas ‘abriu’ e eu tive que retirar”, contou.

 

O preconceito no ambiente escolar afastou Fernanda dos estudos. Só no início deste ano ela concluiu o ensino médio – grau de escolaridade de 24% dos candidatos LGBTI+ eleitos, segundo o levantamento da Aliança Nacional. Por ser trans, nunca teve oportunidade de trabalhar. Com as portas fechadas, acabou empreendendo, mas precisou de ajuda: o cunhado e a irmã pagaram um curso de cabeleireira em São Paulo e, em seguida, bancaram um salão. Além da defesa das mulheres e da diversidade, Fernanda tem como plataforma a ampliação da oferta de cursos profissionalizantes, o fortalecimento do comércio e do turismo – cortada pelo Rio Paranapanema, Piraju tem status de estância turística.

“Gay dá com a porta na cara. A pessoa que não tem emprego, que não tem curso, acaba caindo em coisas erradas: droga e prostituição. São levadas a isso. Tem como mudar? Tem: educação, resgate e inclusão. É isso que quero propor na Câmara”, disse. “E de outro lado, tem a violência. Já fui atacada a pontapés, já tive que desviar de pedradas. Sem ter feito nada. Só por ser quem eu sou. Na época, ficou por isso mesmo: para algumas pessoas, eu era só a bichinha”, acrescentou. Loira, de cabelos compridos e vaidosa, participou de inúmeros concursos, levando alguns títulos – como o Miss Paraná Gay, terceiro lugar no Miss Brasil Gay (ambos em 1998) e Miss São Paulo Gay (2002). 

Outro fato que fez com que Fernanda se sentisse “mais mulher” ocorreu em 2017, quando, enfim, ela conseguiu fazer constar seu nome social em seus documentos. Até então, a trans era chamada por Saulo Fernando Carrara, o que lhe causou inúmeros constrangimentos em bancos, consultórios médicos e repartições públicas. “Eu ia ao dentista de vestido. Chamavam: ‘Saulo’. Eu ia ao balcão e as pessoas olhavam assustadas”, contou. Na outra eleição que disputou, em 2008, foi às urnas com seu nome masculino. O Tribunal Superior Eleitoral permitiu desde 2018 o nome social na urna, e esta foi a primeira eleição municipal em que ele foi usado.

“Eu fiquei muito feliz de poder ter Fernanda nos documentos. Tanto que já ajudei seis amigas a mudar [o nome em cartório]. Muita gente corre atrás e não sabe como funciona. É uma coisa que, para a gente, faz uma grande diferença, porque eu me reconheço como mulher”, afirmou.

Após a eleição, Fernanda mantém expediente normal no seu salão de cabeleireira, no centro de Piraju. Entre tesouras e escovas, pensa no trabalho que quer desenvolver na Câmara. O município, que até então tinha elegido duas mulheres, na próxima legislatura terá Fernanda e outras duas vereadoras. Por tudo isso, a trans considera que já fez história. “Queremos fazer um trabalho pra ficar de exemplo, para que as mulheres, as pessoas gays e trans tenham respeito e que sejam, cada vez mais, eleitas. Estamos tirando rótulos e provando que o diferente não é errado.”

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