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    Ilustração: Carvall

questões de segurança pública

Arma na mão, corpos aos pés

Governo Bolsonaro já apresentou 33 medidas para aumentar armamento nas ruas

Felippe Angeli | 26 mar 2021_16h49
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“Eu quero todo mundo armado!”, conclamou o presidente Jair Bolsonaro. Está aí algo que o presidente quer mesmo: desde que ele tomou posse, já são 31 atos normativos publicados pelo Poder Executivo com este único objetivo (além de dois projetos de lei enviados ao Congresso), mostra levantamento do Instituto Sou da Paz. Como se não bastassem as doze crianças mortas a tiros no Rio de Janeiro em 2020, ou cerca de 43 mil pessoas assassinadas com arma de fogo no mesmo ano (historicamente, cerca de 70% dos homicídios usam esse tipo de armamento), uma alta de 5% em comparação com o ano anterior. Somadas às 195 mil vítimas do coronavírus em 2020, a violência e a pandemia terminaram com a vida de mais de 240 mil brasileiras e brasileiros no ano passado. Apenas 125 municípios no país têm população superior ao número de mortos pela violência e pela Covid, em 2020.

Sobre a pilha de mortos destacam-se corpos negros, principais alvos da política de Bolsonaro.

Acima de tudo, sobre a pilha de mortos, armas.

Assim como para combater o coronavírus, a ciência já sabe bem o que funciona para reduzir mortes violentas: educação de qualidade, geração de trabalho e renda para jovens,  polícias profissionais que se orientam pela investigação e inteligência e não pelo confronto e a diminuição na circulação de armas de fogo. Estudo publicado pela revista científica Epidemiologic Review em 2016, feito por quatro pesquisadores norte-americanos da área da saúde pública, compila resultados de 130 estudos realizados em dez países diferentes e mostra, sem sombra de dúvida, que o aprimoramento de políticas de controle de armas está associado a uma diminuição de homicídios. 

Em 15 de janeiro de 2019, o Decreto nº 9.685/2019 inaugurou a série de 14 decretos, outras 15 portarias, uma resolução do Ministério da Economia e uma Instrução Normativa da Polícia Federal que ferem de morte a política de controle de armas inaugurada em 2003 pelo Estatuto do Desarmamento. As mudanças impostas por Bolsonaro, jamais debatidas com a sociedade e publicadas sem os procedimentos administrativos e justificativas obrigatórios a todos os atos do governo federal, têm dois objetivos principais: aumentar ao máximo o acesso a armas e munições em circulação, e especialmente para grupos como os caçadores, atiradores desportivos e colecionadores (CACs), e extinguir mecanismos de controle e marcação dessas mesmas armas e munições, absolutamente fundamentais para a elucidação de crimes – como o bárbaro assassinato da vereadora Marielle Franco, há três anos, cometido com munições desviadas da Polícia Federal. É como se o governo facilitasse ao máximo a venda de carros superpotentes e velozes e, ao mesmo tempo, retirasse todos os mecanismos de segurança e controle, como airbags, cintos de segurança, semáforos e radares de velocidade. Qual é o objetivo de tal política? Por que tal obsessão presidencial?

O vídeo da notória reunião ministerial  de 22 de abril de 2020, trazido a público pelo STF a partir da acusação do ex-ministro Sergio Moro de interferência na Polícia Federal, ajuda a entender o motivo dessa mania. Já em meio à pandemia, não ouvimos o presidente tratar de vacinas, UTIs, respiradores ou máscaras, mas sim de armas. Ali ele expôs seu argumento: a arma de fogo como instrumento de ação política. Em suas palavras:

“– O que esses filha de uma égua quer, ô Weintraub, é a nossa liberdade. (…). O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! (…) Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua. (…). Aí, que é a demonstração nossa, eu peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta! Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! E não dá pra segurar mais! Não é? Não dá pra segurar mais.”

Os defensores do armamentismo sempre partiram de dois argumentos: o suposto aumento que essa maior circulação de armas teria sobre a segurança pública em geral, na fé cloroquínica de que o marginal só comete crimes porque o cidadão de bem foi desarmado; e também um direito supostamente inato e ilimitado à legítima defesa, que abarca inclusive o exótico conceito de legítima defesa da propriedade – numa cópia-carbono malfeita da 2ª emenda norte-americana, argumento que o ministro do STF Edson Fachin já entendeu não ter paralelo no sistema constitucional brasileiro. A novidade é a arma como instrumento de ação política.

Desde a infeliz reunião ministerial, passamos de 300 mil mortos na pandemia. Mas a prioridade de Bolsonaro foi assegurada: no final de 2020, havia mais 1,1 milhão de armas em posse da população civil, num aumento de 65% comparado ao momento em que assumiu a presidência. Alguém ganhou: a fabricante de armas Taurus aumentou seu lucro em 507% no último ano.

O Palácio do Planalto legisla sobre armas de fogo por decreto e portaria, anulando a demonstração de efetiva necessidade como condição exigida na lei para a aquisição de arma de fogo. Ao ampliar o porte de armas no país, o que o Estatuto do Desarmamento proíbe como regra geral, invade a competência legislativa exclusiva do Congresso Nacional. 

 

Levantamento do Sou da Paz identificou que, para fazer frente à cruzada armamentista de Bolsonaro, já foram apresentados mais de 120 Projetos de Decreto Legislativo (PDLs – com competência de cassar atos do Executivo) no Congresso Nacional e outras 14 ações no STF, denunciando a ilegalidade e a inconstitucionalidade dos atos unilaterais do governo. Um PDL, o nº 233, chegou a ser aprovado no plenário do Senado Federal em junho de 2019. O governo federal reagiu revogando e substituindo decretos para que não fossem cassados pela Câmara, para onde seguiria a votação. A vitória inicial foi rapidamente solapada pela publicação dos mesmos decretos com uma numeração diferente, expediente clássico do bolsonarismo: recuar para voltar à carga logo após.

Outras decisões da justiça têm, isoladamente, anulado alguns atos, como a tal portaria exigida em 22 de abril de 2020, que aumentava o limite de compra de munições por pessoas físicas, cassada pela Justiça Federal de São Paulo. O Tribunal de Contas da União  tem fiscalizado as ações e omissões do Exército Brasileiro especialmente quanto à necessidade de marcação e rastreamento de armas e munições.

Em 12 de março, houve uma decisão importantíssima do ministro Edson Fachin na ADI nº 6.119, movida pelo PSB. Como relator, ele considerou inconstitucional afirmar que a presunção de efetiva necessidade se aplicaria a todos os interessados em adquirir uma arma de fogo. A decisão do ministro-relator restaura a validade da lei ao exigir que, para cada compra de arma, o interessado deve demonstrar sua efetiva necessidade. 

Em outros processos nos quais é relatora, a ministra Rosa Weber exigiu explicações da Presidência da República sobre sua obsessão por armas. Na última semana, a ministra recebeu grupos interessados – são 13 organizações habilitadas como amici curiae no processo, entre elas o Sou da Paz – e sua decisão é aguardada para breve.

As dezenas de normas atacadas configuram uma macropolítica cujo objetivo é aniquilar a política nacional de controle de armas e munições. Para preservar a segurança jurídica e a democracia, o Supremo deverá se manifestar conjuntamente – in totum – quanto ao desígnio bélico do presidente da República e seus apoiadores. O conjunto normativo apresentado por Bolsonaro é gasolina sobre o fogo de extremistas em todo o país. Impor limites constitucionais à política de armas é defender o estado democrático de direito. 

Na hipótese da derrota de Bolsonaro em seu projeto de reeleição em 2022, como se comportará sua guarda pretoriana? De fuzil em riste?  Quantos novos mortos empilharemos sobre nossa cordilheira de corpos? Estas são algumas das questões que estão sob a análise do Supremo Tribunal Federal e que precisam de respostas urgentes.

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