A tragédia que está se abatendo sobre o Rio Grande do Sul desde maio de 2024 é a manifestação de processos cientificamente bem estudados. Desde o século XIX sabemos que a acumulação de gases-estufa na atmosfera provoca um aumento na temperatura do planeta. Desde o começo dos anos 1990, quando foi lançado o primeiro relatório do IPCC, o painel intergovernamental de cientistas reunidos pela ONU para avaliar o conhecimento sobre as mudanças climáticas, está amplamente divulgado o fato de o ser humano ser responsável por um aumento extraordinário da concentração de gases estufa na atmosfera da Terra. A partir do segundo relatório do IPCC, de 1995, está igualmente divulgada a previsão de que o aumento da temperatura global, causado pelo aumento da concentração de gases que causam o efeito estufa, resultará em uma intensificação do ciclo hidrológico, com frequência crescente de enchentes e estiagens severas em vários lugares do planeta. Desde 2009, no mínimo, sabemos que a região Sul do Brasil é particularmente propícia ao aumento da frequência de eventos de precipitação extrema. Na mesma região e independentemente do aquecimento global, a probabilidade de eventos de precipitação extrema é especialmente alta em anos de El Niño. Tanto a enchente deste ano como a de 1941, a segunda maior já registrada em Porto Alegre, coincidiram com anos de El Niño.
Além de ser uma consequência do aquecimento global, a tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul – e em particular no entorno do delta do Jacuí – foi amplificada por décadas de remoção de floresta nas cabeceiras e estreitamento nos canais dos rios. A floresta atua como capa e como esponja, facilitando a evaporação e retendo parte da chuva em episódios de alta precipitação. A junção dessas duas ações diminui ou retarda a vazão da água em direção ao delta. A largura do canal é um reflexo de quanto espaço a atividade humana toma ao rio; quanto mais espaço o rio tiver, menos ele tomará da ocupação humana. O crescimento populacional e a expansão da atividade agrícola das últimas décadas resultaram em crescimento da ocupação urbana e rural em áreas de enchente. O processo global está sendo agravado por decisões regionais de uso do solo que levam as bacias hidrográficas a reter muito menos água do que reteriam se tivessem mais floresta e menos restrição do leito dos rios.
A amplificação regional do problema global, por sua vez, foi agravada por falhas da administração local, no município de Porto Alegre. Após a experiência traumática da cheia de 1941, os gaúchos dos anos 1970 protegeram a capital do estado com um sistema de diques, comportas e estações de bombeamento criado para suster uma cheia de até 6 metros. Portanto, o pico da alta das águas em maio de 2024, de 5,35 metros, ficaria abaixo do nível sustentável pelo sistema de proteção. Como se sabe, essa barreira falhou. A capital alagou, com todo sofrimento humano e perdas materiais que daí estão resultando, por falta de manutenção de um sistema de proteção já existente.
A natureza hidrológica dos processos globais, regionais e locais que resultaram nas enchentes de 2024 faz do problema um objeto de análise científica particularmente tratável. Existem outros desafios de gestão pública mais difíceis de enfrentar. Não se pode interromper a iminente contração demográfica global apenas concedendo incentivos fiscais para a fertilidade nem conter as notícias falsas proibindo uma ou outra rede social. Esses dois exemplos, como tantos outros, apresentam problemas de ordem científica e de ordem política extremamente difíceis de contornar.
No enfrentamento dos desastres hidrológicos é diferente. Por muita dedicação e habilidade técnica que sejam necessárias para fazer o que tem de ser feito, os cientistas e os técnicos já têm conhecimento muito considerável sobre o que tem de ser feito. O desafio é predominantemente político. Está claríssimo que um planeta com menor concentração de gases estufa na atmosfera será mais frio; um planeta mais frio terá menor frequência de eventos de precipitação extrema; uma bacia hidrográfica com mais floresta reterá mais água nas cabeceiras dos rios; um rio com uma ampla planície aluvial, livre de canalização e ocupação urbana abaixo da cota de inundação, causa muito menos perdas materiais e sofrimento humano quando enche. Por fim, se um dique de 6 metros recebe manutenção para desempenhar suas funções de dique, ele sustenta uma enchente de 5,35 metros. O mistério, vale repetir, não é técnico. É político.
Precisamente por esse motivo, foi tão importante Eduardo Leite – o atual governador do Rio Grande do Sul – vir a público no dia 20 de maio de 2024 declarar o seu reconhecimento da ciência ao ser entrevistado pelo programa Roda Viva, da TV Cultura. Pelas palavras do governador, na abertura da entrevista: “Asseguro uma coisa: deste governo, não há o erro do negacionismo, não há o erro da omissão, não há o erro de atacar questões ambientais ou as mudanças climáticas porque a gente reconhece a ciência e a gente busca se aliar a ela.” (assista ao vídeo)
É um bom ponto de partida, pois se os fatos científicos são bem conhecidos, um governo aliado à ciência terá uma base muito mais firme para vencer desafios políticos do que um governo negacionista. É importante, no entanto, reconhecer que as demandas sobre o desempenho de um líder político democraticamente eleito são muito diferentes das demandas sobre o desempenho de um cientista. Se o cientista não cuidar de sua relação com os fatos, perde a credibilidade, ficando incapacitado de produzir avanços reais de conhecimento. Já o líder político, se não cuidar de sua relação com o eleitorado e com os seus aliados, perde o poder, ficando incapacitado de tomar decisões de benefício público. A consequência perversa dessa diferença é que, se o eleitorado e os aliados não estiverem informados sobre os fatos, o líder político tem um forte incentivo para se divorciar deles, sempre que o divórcio facilite a sua permanência no poder. Nessas circunstâncias, compete aos cientistas e educadores organizar e comunicar fatos relevantes. Não se espera que esses fatos exerçam uma influência direta sobre as decisões do poder público. Afinal, um governo tem à sua disposição equipes de assessoria e toda a máquina pública do Estado para obter os dados de que necessita. A organização e comunicação de informação científica terá sucesso na medida em que ela chegar à sociedade, incluindo o eleitorado e a base aliada do Executivo, e qualificar a busca de soluções para o atual desastre. Uma sociedade informada e envolvida na gestão do bem comum, essa sim, altera a constelação de incentivos e influencia as decisões governativas.
Este artigo utiliza uma seleção de falas do governador do Rio Grande do Sul durante a sua entrevista ao Roda Viva como base para a organização de algumas informações úteis para entender o atual desastre climático e as alterações recentes à legislação ambiental do estado. Essa legislação condicionou os mecanismos regionais e locais que precederam o desastre e servirá de pano de fundo à resposta coletiva que virá. O confronto da fala do governador com os fatos evidencia que a relação entre eles está fragilizada, o que não diz muito sobre o governador. Ele não está sozinho nessa fragilidade – nem entre os membros da classe política nem entre os cidadãos em geral. Nem sequer entre os cientistas. Na verdade, é a familiaridade do autor deste texto com os altos e baixos da relação pessoal com os fatos que levou à organização deste artigo em três partes que representam três categorias de conflito com a informação fatual. São elas: conflitos por desconhecimento, conflitos por excesso de criatividade, e conflitos por contradição.
Na primeira categoria, o conflito resulta da simples ignorância de informação pertinente para o assunto abordado. Esta é a categoria mais banal e universal. Na segunda, particularmente comum entre cientistas, o conflito resulta de um excesso de criatividade na interpretação das observações e na escolha daquilo que é observado. Quando um cientista acredita fortemente em uma determinada interpretação da natureza, ele é levado a apreciar somente as informações que apoiam essa interpretação, exercendo um “viés de confirmação”. Esse viés, de gravidade muito variável, pode ser exercido de maneira mais ou menos inocente. Quanto mais um líder político se sentir intelectualmente superior ao seu eleitorado, mais facilmente cairá nessa categoria de conflito, se afastando dos fatos por excesso de criatividade. A terceira e última categoria é a da contradição frontal. O conflito da contradição implica em negar um fato que se conhece por verdadeiro. Incorrer nesse conflito pode fazer implodir a carreira de um cientista ou jogar completamente a perder a sua credibilidade. Para muitos líderes políticos, no entanto, a contradição é uma forma de sobrevivência. A distribuição das falas do governador pelas três categorias de conflito é meramente ilustrativa, muito discutível e inevitavelmente apresenta erros. Ela é útil aqui, na medida em que pode deixar o texto mais leve e motivar alguma ponderação frutífera sobre a circulação da informação nas esferas mais altas do poder estadual.
Conflitos por desconhecimento
Dos rios voadores
Ao explicar para a jornalista Jaqueline Sordi como as alterações do ambiente global não respeitam fronteiras políticas, o governador lembrou que a precipitação no Rio Grande do Sul é afetada pela destruição da floresta amazônica: “Nós sofremos as consequências do desmatamento da Amazônia e com a maior ou menor umidade que venha, depois, pela Cordilheira dos Andes, toda essa umidade vem até ao Sul.”
(Assista ao vídeo)
A relação de causa e efeito entre desmatamento e diminuição da precipitação está correta e é pertinente, mas a ideia de que a umidade desce da Amazônia até ao Sul percorrendo a Cordilheira dos Andes está demasiado longe dos fatos já conhecidos. Entre os mecanismos que ajudam a entender a variação anual das chuvas sobre o território brasileiro, o mais abrangente é o sistema de monções sul-americano. De acordo com esse sistema, a variação sazonal das diferenças de temperatura entre o continente e o Oceano Atlântico, ao longo de um eixo Leste-Oeste, explica uma grande parte da variação anual da precipitação. No verão, o ar das camadas baixas da troposfera (a uma altitude inferior à máxima dos Andes) é mais quente sobre o continente do que sobre o oceano. Isto reforça a convergência de ar do oceano para o continente, onde o ar quente se eleva, esfria ao ganhar altitude e perde capacidade de reter umidade – o que resulta em mais chuva. No inverno, a diferença de temperatura entre o continente e o oceano no eixo Leste-Oeste é menor, e por isso tende a chover menos.
A Amazônia e os Andes condicionam a distribuição das chuvas interagindo com esse sistema de monções. A floresta acumula água das chuvas que acaba devolvendo à atmosfera por evaporação e transpiração; a cordilheira impede que os ventos, que em latitudes baixas sopram predominantemente no sentido Leste-Oeste, levem a umidade da floresta para o Oceano Pacífico. Acontece que, devido ao movimento de rotação da Terra, a direção de giro das grandes massas de ar em expansão (aquelas que podem espalhar umidade), no Hemisfério Sul, se dá no sentido anti-horário. Se uma dessas massas de ar em expansão gira sobre o Oeste da Amazônia, a água transportada por ela se dirige ao Sul “ao longo dos Andes”. No entanto, mais a Leste, longe da cordilheira, a direção de circulação predominantemente anti-horária continua levando água da Amazônia para latitudes mais altas (mais a Sul) e aí não tem sentido afirmar que ela vem “pela cordilheira dos Andes”. Isso explica, por exemplo, que a diminuição de precipitação resultante de desmatamento na Amazônia oriental impacte negativamente as safras agrícolas de Mato Grosso, Goiás, Tocantins e Maranhão – bem longe dos Andes.
Uma forma didática e mais correta de explicar como o desmatamento da Amazônia influencia a precipitação no Sul do Brasil é usando a metáfora dos “rios voadores”. A umidade evaporada e transpirada pela vegetação é recolhida pelos rios voadores que se formam sobre a Bacia do Amazonas e levam essa água para o Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país. A ideia está muito bem explicada e documentada no texto O futuro climático da Amazônia, de autoria de Antonio Donato Nobre.
Do carbono armazenado no solo
Em resposta a uma pergunta do jornalista Fábio Schaffer, o governador defendeu a controversa decisão de fundir a Secretaria Estadual do Meio Ambiente com a da Infraestrutura citando exemplos de como o desenvolvimento de infraestrutura poderia ser aliado à gestão ambiental. Na resposta, ele defendeu o envolvimento da empresa chilena CMPC no zoneamento estadual da silvicultura do estado, com a seguinte fala:
“E no tema da silvicultura, você traz aqui essa concepção de espécies invasoras, enfim, mas de outro lado há muitos estudos que apresentam, justamente, a silvicultura como aliada para a descarbonização, uma vez que o plantio de árvores, nós estamos falando sobre plantar árvores, que no processo de crescimento até que elas passem para uma etapa que pode ser chamada até da colheita, na verdade, quando elas vão ser, depois, cortadas, não é, nesse processo de crescimento elas têm uma capacidade de absorção de carbono que colabora para a descarbonização.”
(Assista ao vídeo)
O governador não explicou, nem o contexto o obrigaria a explicar, o que é a descarbonização, mas a implicação é clara. A fala defende que o monocultivo de árvores em grande extensão deveria ser visto como uma atividade ambientalmente benéfica porque o crescimento das árvores retira carbono da atmosfera, o que contribuiria para reduzir a concentração de gases estufa e, consequentemente, diminuir o aquecimento global. O governador também manifestou nessa fala sua prática de argumentação através do uso de dois argumentos eficazes para derrubar um oponente em debate, mas não particularmente úteis para mostrar que o monocultivo de Pinus e eucaliptos realmente contribui para a descarbonização ou para a diminuição dos gases estufa na atmosfera.
Um dos argumentos foi de apelo à autoridade. O recurso retórico consiste em defender o próprio ponto de vista não com a apresentação de fatos que o apoiam, mas com a invocação da autoridade de alguém que também apoia esse ponto de vista. Na fala sobre plantio de árvores, o governador invocou a autoridade de “muitos estudos” não identificados. Infelizmente, esse é um recurso utilizado com assustadora frequência por professores e estudantes de ciências. Por que assustadora? Porque a ciência aproxima pessoas e constrói progresso de conhecimento quando é baseada em fatos tão perfeitamente comprováveis que derrubam qualquer raciocínio, preferência ou autoridade. Se a nossa argumentação em favor de uma ideia científica substituir os fatos pela autoridade, jogamos pela janela o papel aglutinador e progressivo da ciência. Quando o nosso conhecimento não permite identificar pelo menos um estudo entre os muitos que julgamos apoiar a ideia, é mais científico afirmar que acreditamos na veracidade da ideia e trazer para nós a responsabilidade por um possível erro do que transferir essa responsabilidade para a autoridade anônima de “muitos estudos” não identificados. O apelo à autoridade intimida alguns interlocutores menos informados, mas esclarece pouco.
O segundo argumento, evidente nas palavras “enfim, mas de outro lado”, foi de apelo à moderação. Na ausência de evidências para apoiar um ponto de vista, o apelo à moderação caracteriza implicitamente o ponto de vista oposto como uma posição extrema. Dessa forma, a pessoa que apela à moderação se apresenta como equânime e sensata, capaz de reconhecer os dois lados de um problema supostamente complexo. Quando funciona, o apelo à moderação fortalece a posição de quem o usa, mesmo quando não existem dois lados e até mesmo quando as evidências favorecem predominantemente o ponto de vista contrário.
É verdade que o plantio de árvores diminui a concentração de gases estufa na atmosfera? Primeiramente, é importante não confundir florestas com plantios (plantações ou monocultivos) de árvores. Uma floresta é um ecossistema terrestre com vegetação diversificada se propagando sem necessidade de intervenção humana. As florestas retêm carbono, não só na parte aérea do ecossistema, mas também no solo. A proporção de carbono das florestas que é armazenada no solo pode chegar a 60%. Um plantio de árvores é um cultivo de uma só espécie, com indivíduos espaçados artificialmente de forma a maximizar o seu crescimento e com manejo direcionado para reduzir a formação de arbustos e ervas que competem com as árvores pelos nutrientes do solo. A diversidade da fauna de um plantio e a quantidade de carbono armazenada no seu solo são ambas muito inferiores ao que é observado nas florestas. A ideia de tratar o plantio de árvores como mecanismo de sequestro de carbono foi subscrita em acordo internacional pelo Protocolo de Quioto que, precisamente, confundia plantios com florestas. O termo “floresta” como foi usado no texto de Quioto se aplicava igualmente a um hectare de floresta primária no Amazonas e a um hectare de plantio de eucaliptos no Rio Grande do Sul.
Logo após a assinatura e ainda antes da ratificação do Protocolo de Quioto, os cientistas Ernst-Detlef Schulze, Ricardo Valentini e Maria-José Sanz, que participaram das negociações, alertaram para o perigo da acreditação de plantios de árvores como sequestro de carbono. Essa acreditação, avisaram os cientistas, poderia resultar em eliminação de florestas ou perda de diversidade biológica em áreas de campo. Inicialmente, foi estabelecido que só seriam contabilizados plantios em lugares que não tinham floresta até ao final de 1989, mas logo vários países signatários pediram flexibilidade, para que fosse considerada uma data mais recente, de 1999 para a frente. É claro que essa flexibilização criaria um incentivo perverso, abrindo a possibilidade de rentabilizar o desmatamento. Isso foi há mais de vinte anos. De então para cá, o estudo sobre carbono em florestas e plantios trouxe três informações importantes: 1) As florestas guardam muito e acumulam algum carbono; 2) É impraticável compensar a emissão antrópica de gases estufa com plantio de árvores; e 3) Plantar árvores em áreas de vegetação campestre pode ser contraproducente.
Quando o governador fala, sobre as árvores em monocultivo, que “nesse processo de crescimento elas têm uma capacidade de absorção de carbono que colabora para a descarbonização”, podemos ser levados a pensar que as florestas, que não apresentam crescimento de árvores tão visível quanto os plantios, captam uma quantidade negligenciável de carbono por unidade de tempo. Essa interpretação está de acordo com a visão clássica de sucessão ecológica, que representa florestas “maduras” em um estado de equilíbrio entre produtividade e respiração. De acordo com essa visão, uma floresta primária com cem anos de idade não emitiria nem captaria carbono; teria uma contribuição neutra para acumulação de gases estufa.
Mais recentemente, no entanto, uma equipe de pesquisadores liderada por Sebastiaan Luyssaert, da Universidade de Antuérpia, na Bélgica, defendeu que as florestas passam por um processo de autodesbastamento em que, após a morte natural de uma árvore, o seu carbono é incorporado à floresta por crescimento de outros organismos a uma velocidade superior àquela em que ele é liberado para a atmosfera por decomposição. Esse processo permitiria às florestas seguirem acumulando carbono por vários séculos após atingirem uma aparência de floresta “madura”. Luyssaert e colaboradores publicaram uma estimativa da captação anual de carbono por florestas boreais e temperadas que ainda é controversa, mas na região tropical também há acúmulo de evidências de captação de carbono em florestas primárias não perturbadas. Somando apenas os valores estimados para a região tropical das Américas e África, a captação anual em florestas tropicais não perturbadas corresponderia a 9% das emissões de 2023.
A magnitude da captação de carbono em florestas primárias ainda está sendo apurada. No entanto, o que é inegável é que as florestas contêm um estoque de carbono muito maior do que o valor que acumulam anualmente. O valor está estimado em aproximadamente 861 bilhões de toneladas de carbono, o que corresponde a quase 24 anos de emissões de origem humana à taxa de 2023. Daí a afirmação de que as florestas contêm muito e acumulam algum carbono.
No caso dos plantios, não tem sentido calcular quanto carbono será estocado, uma vez que a finalidade dos plantios é cortar as árvores, transformá-las e usá-las em outro lugar. O carbono captado da atmosfera durante o crescimento das árvores não fica no lugar do plantio. Jacob Bukoski, atualmente na Universidade Estadual do Oregon, liderou um estudo que avaliou o conhecimento científico disponível sobre a captação de carbono por monocultivos de árvores. Considerando os valores compilados nesse estudo e a área plantada com os três gêneros de árvore mais cultivados no Rio Grande do Sul (Eucalyptus, Pinus e Acacia), obtemos uma média ponderada de 6,89 toneladas de carbono acima do solo por hectare de plantação e ano.
Trata-se de um número bastante considerável. Vamos compará-lo com as emissões anuais do estado para ver que proporção das emissões poderia ser compensada por captação de carbono acima do solo em plantios de árvores. Antes disso, no entanto, é importante lembrar que o Rio Grande do Sul tem os invernos mais frios do Brasil e a tradição do churrasco. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgados no Atlas Socioeconômico do Rio Grande do Sul, 44% dos mais de 27 milhões de m3 de produção da silvicultura em 2022 foram transformados em carvão vegetal e lenha. Isto é, foram queimados e o seu carbono prontamente devolvido à atmosfera. Restam 3,86 toneladas de carbono por hectare por ano, que equivalem a 56% do total. Assumindo que nenhum átomo de carbono restante regressará à atmosfera e multiplicando pelos quase 997 mil hectares de área de silvicultura no Rio Grande do Sul, concluímos que os plantios atuais acumulam 3,85 milhões de toneladas de carbono por ano na sua parte aérea. Isso corresponderia a 13% das emissões do Rio Grande do Sul em 2022, que foram de 29,19 milhões de toneladas de carbono de acordo com a plataforma SEEG. É um número muito tentador para compensar emissões sem perder dinheiro, um objetivo perfeitamente legítimo. Mas também é um número com um custo muito alto e dois fortíssimos motivos de dúvida.
Vejamos primeiro o custo, ignorando as dúvidas. Supondo que o valor de 13% é verdadeiro e que os plantios realmente sequestram essa proporção das emissões do estado. Poderíamos até pensar em expandir a área de silvicultura em 4 milhões de hectares como proposto pelo atual governo e com isso chegar a 68% das emissões anuais. Mas a que custo? Qualquer pessoa que já caminhou por um monocultivo de Pinus ou eucalipto terá uma ideia do impacto que esses plantios têm sobre a diversidade biológica e sobre a fertilidade do solo. O silêncio, a escassez de animais e a raridade de outras espécies de plantas além da árvore cultivada causam uma impressão desoladora. A literatura científica confirma essa impressão, tanto para os plantios de eucalipto como de Pinus. A substituição de florestas por plantios pode reduzir o carbono armazenado no solo e acelerar o seu metabolismo por muitas décadas. Em alguns casos, a plantação de Pinus resulta em aumento da “repelência de água no solo”, quando as partículas se revestem de substâncias hidrofóbicas e o solo passa a absorver menos água quando exposto à umidade—com consequências óbvias para a sobrevivência de plantas, fungos e microbiota.
É interessante pensar que a atividade humana é limitada por um conjunto de “fronteiras planetárias” como a quantidade de carbono que podemos acumular na atmosfera, a quantidade de água doce que podemos usar ou a área da superfície terrestre que podemos cultivar. Nessa perspectiva, a “descarbonização” de que o governador fala seria uma tentativa de afastar o Rio Grande do Sul da fronteira do carbono atmosférico. Ao escolher a estratégia que se segue para ficar aquém de uma fronteira, no entanto, é importante não cruzar as outras. Vera Heck, pesquisadora do Instituto para Pesquisa sobre Impacto Climático de Potsdam, junto com seus colaboradores em um artigo da Nature Climate Change, explica esse dilema e defende que as soluções de descarbonização por emissões negativas através de bioenergia, captura e armazenamento de carbono – que incluem plantio de árvores – não podem contribuir suficientemente para a redução do aquecimento global sem transgredir as fronteiras de uso da água e uso do solo. Quando o objetivo é compensar emissões sem perder dinheiro no médio ou longo prazo, a opção de deixar regenerar floresta onde ela foi cortada tem sido apontada recorrentemente como a mais apropriada. Se o objetivo for ganhar dinheiro a curto prazo com silvicultura, a opção dos plantios se torna mais interessante.
Restam as duas dúvidas sobre a possibilidade de 13% das emissões anuais do RS serem captadas pelo crescimento anual dos plantios de árvores. A primeira – “quanto desse carbono é devolvido à atmosfera pouco depois do corte?” – já foi tratada com a brevidade a que este texto obriga. Descontamos uma proporção correspondente à lenha e ao carvão vegetal. Mas a dúvida ainda persiste. A proporção restante após o desconto é essencialmente de madeira em tora, repartida pelo IBGE entre as categorias de “papel e celulose” e “outras finalidades”. Ambos os usos implicam em transformação industrial das toras. Quanto carbono é libertado para a atmosfera durante a transformação? Essa dúvida terá de ficar em aberto.
A segunda dúvida sobre os 13% é se essa quantidade de carbono, que é captada acima do solo, não está associada a uma perda de carbono do solo que acaba por cancelar os ganhos. A dúvida é pertinente porque é muito frequente os ecossistemas armazenarem mais carbono no solo que na parte aérea da vegetação. Além do mais, quando o objetivo é retirar carbono da atmosfera, ele fica mais seguro no solo do que na vegetação, de onde pode facilmente voltar à atmosfera por queima ou por decomposição da vegetação morta. Já dissemos acima que algumas florestas chegam a ter 60% do carbono no solo; muitos ambientes campestres, inclusive em latitudes tropicais, têm mais de 80% do seu carbono estocado no solo. Perguntar o que acontece com o carbono do solo, então, é particularmente pertinente para o governo e para os cidadãos do Rio Grande do Sul, porque o estado se caracteriza por uma extensa cobertura de vegetação campestre, a cobertura típica do bioma Pampa. Existe uma forte pressão para plantar monocultivos de árvores em ambientes campestres, não só no Rio Grande do Sul, e a literatura científica mostra cada vez mais evidências de que esses monocultivos causam acidificação, perda de nutrientes e perda de carbono do solo.
Um artigo liderado por César Terrer, do Instituto de Tecnologia do Massachusetts (MIT), encontrou uma possível explicação para a perda de carbono do solo em plantações de árvores ao revisar experimentos de fertilização com CO2. É frequente pesquisadores de ecologia de ecossistemas submeterem plantas a concentrações elevadas de CO2 para simular as consequências das emissões antrópicas futuras. O que Terrer e sua equipe descobriram é que existe uma relação negativa entre o carbono no solo e na vegetação: naqueles lugares onde o aumento experimental de CO2 faz aumentar a biomassa aérea da vegetação, o estoque de carbono do solo diminui; nos lugares onde a vegetação pouco ou nada aumenta, o estoque de carbono do solo responde positivamente. O mecanismo proposto pelos autores é que, para a vegetação crescer, ela precisa retirar nutrientes do solo. O processo de retirada acelera a atividade microbiana, aumenta a respiração e acaba por liberar para a atmosfera carbono que estava estocado no solo.
Embora menos visível pela quantidade de vegetação acima do solo, o manejo de pastagens naturais do Pampa para produção de carne bovina de alta qualidade oferece uma alternativa de descarbonização muito credível. Em um estudo publicado no final de abril de 2024, uma equipe de pesquisadores da Universidade Federal de Santa Maria, liderada pela professora Débora Roberti, conclui que uma pastagem natural bem manejada pode retirar da atmosfera o equivalente a 1.800 kg de dióxido de carbono por hectare e por ano. Este valor, que leva em consideração não só a parte aérea da vegetação, mas também o solo e as emissões de metano pelo gado bovino, estendido a toda a área de pastagem do bioma Pampa, corresponde a 10,82% das emissões do Rio Grande do Sul em 2022. Concluindo, a captação de carbono atmosférico em ambientes terrestres é, sim, uma estratégia válida para mitigar o aquecimento global, mas o monocultivo de árvores em ambientes campestres é um péssimo caminho para implementar essa estratégia. Alguém terá de fazer as contas para ver quanto dos hipotéticos 13% sobram após considerar as perdas de carbono do solo. Basta que as perdas no solo cheguem a um quinto daquilo que é captado acima do solo para que a pastagem manejada contribua mais para a descarbonização da economia gaúcha do que a silvicultura. Mas nada impede que as perdas sejam mais que um quinto, o balanço final de carbono na silvicultura pode muito bem ser negativo.
Do aumento da frequência de eventos extremos
Voltando ao tópico das enchentes, logo na abertura da entrevista, a moderadora Vera Magalhães incentivou o convidado a fazer uma autocrítica e identificar erros do seu governo que poderiam ter deixado o estado menos preparado para o que aconteceu. O governador abriu sua resposta com a seguinte fala:
“Antes de mais nada, Vera, é importante lembrar a dimensão do que a gente está falando aqui. A chuva esperada para a metade Norte do estado, para um ano inteiro, é de 1800 mm, entre 1500 a 1800 mm. Choveram cerca de 1000 mm em pouco mais de uma semana em algumas regiões aqui do estado. Mais da metade da chuva de um ano inteiro num espaço curtíssimo de tempo […]. Um volume de chuvas que nunca se viu antes e que, tenho certeza absoluta, se caísse em qualquer lugar do mundo, traria enormes transtornos e prejuízos.”
(Assista ao vídeo)
Essa fala não é uma autocrítica, mas ilustra bem o raciocínio usado para avaliar a probabilidade de um evento extremo. Metaforicamente, é como se tivéssemos uns milhares de bolinhas dentro de uma sacola grande; cada bolinha com um número diferente escrito nela. A cada semana, alguém tira ao acaso uma bolinha da sacola, lê o número e devolve a bolinha à sua origem. O número lido será o volume de chuva que vai cair nessa semana sobre a metade Norte do estado. Segundo a expectativa (correta) do governador, o volume de chuva esperado para um ano é algo entre 1500 e 1800 mm; digamos que seja 1650 mm. Como o ano tem 52 semanas, segue o raciocínio, o valor médio que esperamos encontrar nas bolinhas é de 1650 /52, ou um pouco mais de 30 mm. O que o governador está nos dizendo é que poderíamos esperar uma semana com 30, 0, 20, 50, talvez até com 100 mm de chuva, mas jamais com 1000. Para essa expectativa se cumprir, é preciso que a variação dos números escritos nas bolinhas não atinja 1000 e que o conjunto das bolinhas, com seus números, permaneça inalterado.
Mesmo que o passado nunca tenha apresentado uma bolinha com o número 1000, não há como ter a certeza de que esse número não está presente na sacola. O que poderíamos saber é que, por mais baixa que seja a probabilidade de tirar um 1000, o estrago causado por esse volume de chuva é tão grande que o risco associado a não se preparar para os 1000 mm é muito alto. Uma autocrítica pertinente seria reconhecer que o governo pensou corretamente na probabilidade de acontecer uma enchente, mas não avaliou bem o risco de uma calamidade pública. Mas isso não é tudo. A ideia de que o número 1000 não sairá na próxima semana porque nunca saiu em nenhuma das semanas anteriores – “um volume de chuva que nunca se viu antes” – pressupõe que aquilo que se viu antes, em termos de distribuição dos números nas bolinhas, é o que se verá no futuro. Essa suposição vai contra o que a ciência e o IPCC nos dizem sobre as consequências do aquecimento global. Não negar a crise do clima significa reconhecer que está aumentando a frequência de eventos extremos de precipitação. Na metáfora da sacola, isso equivaleria a alguém, ao longo dos últimos anos, estar acrescentando bolinhas com números cada vez mais altos lá dentro. Nessas circunstâncias, não é certo pensar que o que se viu antes é o que se verá no futuro. Não. No futuro será cada vez mais fácil encontrar valores extremos.
Está bem, mas quem pode adivinhar o que é um valor extremo? No caso de Porto Alegre, os gaúchos dos anos 1970 já fizeram esse trabalho por nós. Lá atrás, quem construiu o sistema de proteção da cidade arriscou dizer que nenhuma bolinha produziria uma cheia superior a 6 metros no cais Mauá. Por enquanto, ainda não produziu.
Conflitos por excesso de criatividade
Sobre a diferença entre lei e projeto de lei
Apesar de não ser explicitamente relacionada com a emergência climática que motivou a entrevista, a recente alteração do Código Estadual do Meio Ambiente (Cema) do Rio Grande do Sul dominou uma parte muito considerável da conversa. No final de setembro de 2019 o governador entrevistado enviou à Assembleia Legislativa do estado um projeto para alteração do código em vigor nas duas décadas anteriores. Nas palavras do governador, a proposta iria “permitir à nossa sociedade ser mais próspera com respeito ao ambiente.” Após uma tentativa malsucedida de aprovação em regime de urgência, em 9 de janeiro de 2020 o novo Cema foi aprovado com pouco debate e pequenas modificações sobre o projeto de lei original. Dos 246 artigos do antigo código, 59 foram eliminados, 87 permaneceram iguais e 159 sofreram alterações de forma e conteúdo. Quarenta e seis dos 233 artigos do novo código são novos.
Não está claro o que o governador entende por uma sociedade “próspera com respeito ao ambiente”, e nem se mede a profundidade das alterações a uma lei pelo número de artigos modificados, mas ficou claríssimo no Roda Viva que a perceção dominante entre os jornalistas presentes era de que a mudança do código foi ampla, profunda e contrária aos interesses da população. Por mais politicamente tentador que seja atribuir o desastre que estamos enfrentando às alterações do código, seria intelectualmente desonesto. A acumulação de gases estufa, a destruição de florestas, a canalização dos rios e a urbanização de áreas abaixo da cota de inundação aconteceram ao longo dos últimos duzentos anos. Não são, portanto, resultado do desmonte da legislação ambiental do Rio Grande do Sul, que aconteceu quatro anos atrás. Ainda assim, é esta nova legislação que vai condicionar a resposta do estado ao desastre no médio e longo prazo.
O Roda Viva proporcionou uma oportunidade preciosa para o governo do Rio Grande do Sul se posicionar de maneira crítica e cientificamente informada sobre as profundas alterações ao código, descritas numa planilha disponível na nuvem. O governador estava evidentemente ciente da oportunidade e optou por minimizar a profundidade das alterações. No contexto de uma pergunta da jornalista Samantha Klein sobre resíduos acumulados em ambiente urbano, por exemplo, o governador procurou enfraquecer as críticas ao novo código com a seguinte fala:
“Foi falado, por exemplo, que a educação ambiental tinha saído do Código. […] E o que eu peço às pessoas? Muito cuidado com o que se lê. A minha equipe estava me alertando. Tá aqui! Artigo 24. É exatamente o mesmo artigo que era o Artigo 27 na legislação anterior. É o Artigo 24: ‘Compete ao poder público promover a educação ambiental em todos os níveis de sua atuação, conscientização da sociedade. Está lá estabelecido na mesma forma que o artigo que tinha anteriormente. E ainda existe uma lei específica no Rio Grande do Sul, de 2002, que dispõe sobre educação ambiental, institui política estadual de educação ambiental… e aí, enfim, a gente vê que tem narrativas políticas se estabelecendo por um lado e por outro, tentando me empurrar para um lado que não vão conseguir me empurrar. Este governo respeita a ciência e respeita o meio ambiente.”
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Com efeito, o projeto de lei do novo código ambiental gaúcho eliminava cinco incisos e dois parágrafos do antigo artigo 27, sobre educação ambiental, reduzindo o conteúdo a três linhas que, ao tratar da competência do estado nesse tema, remetiam a uma lei específica ainda inexistente. Essa reformulação omitia do texto do código a obrigação do estado de vetar a “divulgação de propaganda danosa ao meio ambiente e à saúde pública”. No fim, o artigo 24 do novo Cema ficou igual ao artigo 27 do velho. Isto é, durante os ajustes para aprovação, o conteúdo sobre educação ambiental regressou ao projeto sem sofrer alterações.
A pessoa que falou que a educação ambiental saiu do código incorreu em um erro compreensível, que foi confundir a lei com o projeto de lei. O governador, proponente da lei, poderia ter alertado para o erro e até, possivelmente, atribuído ao governo o crédito pela retomada do texto original. A fala acima revela uma linha de raciocínio diferente. Foi aproveitada a oportunidade para enfraquecer um ponto de vista identificado como antagônico ao governo. Com criatividade e presença de espírito, se marcaram alguns pontos na queda de braço argumentativa, mas perdeu-se uma oportunidade de entender melhor os motivos da exclusão da educação ambiental no projeto de lei.
Sobre a proteção de áreas fora do Sistema Estadual de Unidades de Conservação
Em uma das ocasiões em que o governador defendeu a natureza meramente modernizante e harmonizadora do novo código ambiental gaúcho, salientou que a nova lei, assim como a anterior, faz menção às áreas de Reserva da Biosfera da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco):
“Pois, a Reserva da Biosfera da Unesco é a da Mata Atlântica – no Brasil, a que incide sobre o Rio Grande do Sul é a da Mata Atlântica. E está lá, no nosso Código do Meio Ambiente, a ‘Biosfera Mata Atlântica’ num outro artigo, antes estava no artigo cinquenta e alguma coisa, agora está…, como Reserva da Biosfera da Unesco e agora está como ‘Biosfera Mata Atlântica’ no artigo 204, se eu não me engano. Ou seja, os ajustes que nós fizemos na legislação atenderam às legislações federais que vieram depois, ajustaram terminologias, resolveram determinados conflitos, mas não diminuíram a proteção ao meio ambiente, ao contrário do que querem dizer.”
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A fala do governador passa a impressão de que o artigo 204 do novo código substitui o artigo “cinquenta e alguma coisa” do velho. Na verdade, o artigo 204 do novo Cema corresponde ao artigo 235 do velho. Ambos pertencem a um capítulo que faz menção à Mata Atlântica. No código de 2000, era o Capítulo XV, intitulado Da Mata Atlântica; no Cema de 2020, é o capítulo XIII, Dos Biomas Mata Atlântica e Pampa. Vejamos os textos dos dois artigos, com a diferença principal entre eles destacada aqui em negrito:
“Art. 237 da Lei nº 11.520, de 3 de agosto de 2000: A Reserva da Biosfera da Mata Atlântica se constitui em instrumento de gestão territorial, de importância mundial, voltada para a conservação da diversidade biológica e cultural, ao conhecimento científico e ao desenvolvimento sustentável.”
“Art. 204 da Lei nº 15.434, de 9 de janeiro de 2020: A Reserva da Biosfera da Mata Atlântica é um modelo, adotado internacionalmente, de gestão integrada, participativa e sustentável dos recursos naturais, com os objetivos básicos de preservação da diversidade biológica, desenvolvimento de atividades de pesquisa, monitoramento ambiental, educação ambiental, desenvolvimento sustentável e melhoria da qualidade de vida das populações.”
O artigo novo diminui acrescentando. Ambos se referem à Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, com o artigo mais recente se estendendo mais na sua descrição. A diminuição está em que, no código original, a Reserva da Biosfera se constituía em “instrumento de gestão territorial”. No texto alterado ela é apenas um “modelo adotado internacionalmente”. É evidente que essa conversão de instrumento a modelo retira força de proteção ambiental à Reserva da Biosfera da Mata Atlântica. O governador poderia ter explicado os motivos da alteração, mas, em vez disso, sugeriu que os críticos do novo código estão mal informados por não terem entendido que a menção à Reserva da Biosfera que desapareceu de um artigo continua presente em outro. Não foi isso o que aconteceu. A menção continua presente em um artigo correspondente, mas foi modificada.
Mas afinal, algum artigo “cinquenta e alguma coisa” do código original se referia à Reserva da Biosfera da Unesco? Sim. O artigo 51, que fazia parte do Capítulo VII Das Áreas de Uso Especial. Esse capítulo, com quatro artigos, foi totalmente eliminado do Cema atual. Dizia o caput do artigo 51: “Além das áreas integrantes do Sistema Estadual de Unidades de Conservação, são também objeto de especial proteção […]”. Listando-se em seguida oito categorias de área objeto de especial proteção, seguidas do parágrafo único: “Em função das características específicas de cada uma dessas áreas, o órgão competente estabelecerá exigências e restrições de uso.”
Uma das categorias listadas era a de áreas reconhecidas pela Unesco como reservas da biosfera. O artigo 51 sumiu do código ambiental gaúcho sem deixar rastro. Portanto, a legislação atual removeu a proteção especial, não só à reserva da biosfera, mas também às “áreas adjacentes a unidades de conservação”, aos “bens tombados pelo Poder Público”, às “ilhas fluviais e lacustres”, às “fontes hidrominerais”, às “áreas de interesse ecológico, cultural turístico e científico, assim definidas pelo Poder Público”, aos “estuários, [às] lagunas, [aos] banhados e [à] planície costeira” e, por fim, às “áreas de formação vegetal defensivas à erosão de encostas ou de ambientes de grande circulação biológica”. É difícil compreender a natureza modernizadora e harmonizadora de uma remoção de proteção tão abrangente e tão relevante para gestão de futuras cheias. A remoção poderia ter sido explicada se não tivesse sido criativamente omitida.
Curiosamente, também foi quase totalmente eliminada do novo texto a expressão “Poder Público”. Ela aparecia 38 vezes no texto original, mas apenas quatro no projeto de lei. No código alterado, o “Poder Público” é mencionado nove vezes. Das cinco menções adicionadas entre a divulgação e a aprovação do projeto de lei, duas aparecem em texto novo e três correspondem a texto do código original que foi reintroduzido antes da aprovação. A maior parte das menções originais ao “Poder Público” foram trocadas pela palavra “Estado”.
Sobre a proteção do Pampa
A jornalista Laís Duarte, da TV Cultura, indagou sobre a retirada de proteções ambientais com a alteração do código ambiental gaúcho, destacando a “desproteção” do bioma Pampa, exclusivo do Rio Grande do Sul. Eis a resposta do governador:
“Laís, respeitosamente, acho que não está bem informada nesse ponto específico porque o bioma Pampa não tinha previsão legal. Foi a nossa alteração do Código Estadual do Meio Ambiente que estabeleceu a previsão legal, que até então não existia, de proteção para o bioma Pampa.”
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O quanto a fala procede depende do que se entende por “previsão legal”, que não ficou claro. O fato é que, antes da alteração do código, a legislação do Rio Grande do Sul já mencionava o bioma Pampa em pelo menos dois textos: a Constituição do Estado e o decreto nº 52.431 de 2015, que trata da implementação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) no Rio Grande do Sul. O texto da Constituição afirma a obrigação protetora do estado para com uma porção do território que não estava ainda bem definida. O decreto de 2015, embora seja focado na regulamentação do CAR, tem consequências mais concretas.
Para entender, é útil ganhar familiaridade com a ideia de “área rural consolidada”. O IBGE divide o país em seis biomas que cobrem todo o território nacional. O terminal rodoviário de Bagé pertence ao bioma Pampa tanto como uma parcela de vegetação campestre no município de Uruguaiana. Isso não significa, no entanto, que as regras de proteção do bioma Pampa se aplicam igualmente ao terminal rodoviário e à parcela de vegetação campestre.
Evidentemente, as áreas que já estavam ocupadas por cidades à data em que as regras foram escritas não podem ser tratadas da mesma forma que as áreas não ocupadas que se pretende proteger. A distinção entre uma área urbanizada e um campo é fácil; nos biomas caracterizados pela cobertura florestal, como a Amazônia e a Mata Atlântica, a distinção entre uma floresta primária e uma área rural desmatada também é fácil. A diferenciação fica mais difícil num bioma como o Pampa, em que as áreas naturais têm uma estrutura de vegetação muito parecida com uma grande parte das áreas rurais – sem árvores. O problema é particularmente bicudo quando se pretende distinguir campo nativo de pastagem. É para ajudar nessas distinções que o decreto 52.431 utiliza a noção de “área rural consolidada”.
Precisamente, o decreto define “áreas remanescentes de vegetação nativa” e dois tipos de “área rural consolidada”. O primeiro tipo é de área “consolidada por supressão da vegetação nativa para uso alternativo do solo”. “Uso alternativo” engloba tudo o que não é a vegetação nativa intocada nem sujeita a pastejo. Entram aqui, como exemplos, edificações rurais, pastagens plantadas, plantios de soja e monocultivos de árvores. No fundo e um pouco indiretamente, o decreto define o remanescente de vegetação nativa pela negativa. Isto é, “vegetação remanescente” é aquela que não foi suprimida. Considerando que as áreas de vegetação nativa serão sujeitas a mais restrições de uso do que as áreas rurais consolidadas, essa definição poderia resultar em um incentivo perverso à remoção da vegetação. Os proprietários de áreas de vegetação nativa que não quisessem perder liberdade no uso futuro dessas áreas poderiam, logo após tomar conhecimento da lei, convertê-las em área rural consolidada através da transformação mais barata que a lei permitisse. Para evitar esse tipo de resposta, o decreto definiu uma data limite para as definições, que foi terça-feira, 22 de julho de 2008. As áreas que não tiveram a vegetação nativa suprimida antes dessa data, são consideradas “áreas remanescentes”; as que tiveram supressão antes são “áreas rurais consolidadas”. Assim como no exemplo dos plantios/florestas do Protocolo de Quioto, a data de referência se torna imediatamente objeto de negociação e debate. O debate é necessário pois condiciona a distribuição espacial dos remanescentes de vegetação nativa. Ele deveria ser conduzido por interessados na conservação do Pampa com o objetivo de minimizar a marginalização dos ambientes campestres.
Falta o segundo tipo de área rural, que é a “consolidada por supressão da vegetação nativa com atividades pastoris”. Aqui o decreto levou em consideração que uma grande parte dos campos do Rio Grande do Sul serviram de pastagem natural por muito tempo. Em alguns casos, diria um raciocínio hipotético, o pastejo já aconteceu por tanto tempo e causou tantas modificações, que não faria mais sentido tratar essas áreas como “remanescentes de vegetação nativa” merecedoras do mesmo nível de proteção que os verdadeiros remanescentes. A vegetação nativa teria sido suprimida por atividade pastoril, levando à consolidação da área como “rural”. O raciocínio é discutível, mas é uma base para a distinção que o decreto estabelece entre os dois tipos de área rural consolidada.
O que diz o texto do novo código ambiental gaúcho sobre o Pampa? Essencialmente, três coisas: 1) define o bioma; 2) incorpora as definições de área remanescente e áreas rurais consolidadas do decreto; e 3) lista as circunstâncias em que se pode remover vegetação nativa em campos do Pampa, utilizando as definições de área rural e área remanescente. A definição é o ponto que mais concorda com a fala do governador. Realmente, não havia uma definição no código original e agora há. O inciso XLIV do novo artigo 2 esclarece que se entende por “Pampa”: “bioma, que no Brasil ocorre exclusivamente no estado do Rio Grande do Sul, composto por formações campestres, arbóreo-arbustiva e florestal, com predominância de campos nativos.” É uma definição conforme o mapa do IBGE. Mais à frente, no entanto, no capítulo intitulado Dos biomas Mata Atlântica e Pampa, o artigo 203 afirma: “O Bioma Pampa terá suas características definidas em regulamento específico, que detalhará aspectos de conservação.”
Essa afirmação é uma ressalva e sugere que a definição de “Pampa” ainda pode ser modificada.
As definições de “área remanescente” e “área rural consolidada por supressão da vegetação nativa para uso alternativo do solo” no novo código são exatamente iguais às definições do decreto. Já a definição de consolidação rural por supressão de vegetação nativa com atividades pastoris foi alterada e até renomeada. Façamos a comparação recorrendo novamente ao negrito para enfatizar as diferenças:
Inciso II do Art. 5 do Decreto nº 52.431 da Assembleia Legislativa do RS: II – área rural consolidada por supressão da vegetação nativa com atividades pastoris: área com ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008, com atividades pastoris em que se manteve parte da vegetação nativa.
Inciso III do Art. 2 da Lei nº 15.434, de 9 de janeiro de 2020: III – área rural consolidada por supressão da vegetação nativa com atividades agrossilvipastoris: área de imóvel rural com ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008, com edificações, benfeitorias ou atividades agrossilvipastoris, admitida, neste último caso, a adoção do regime de pousio.
Agora, o segundo tipo de área rural consolidada não é mais relacionável exclusivamente à atividade pastoril. Inclusive, com a admissão de pousio como via de consolidação, não usar a terra parece ser uma “ação” suficiente para transformá-la em área rural. Fica a dúvida de qual campo em propriedade particular continuaria sendo “área remanescente de vegetação nativa”. Resulta uma confusão na definição das categorias e uma flexibilização extrema dos caminhos que levam do remanescente de vegetação nativa à área rural consolidada. As implicações da alteração dependem de como as categorias serão usadas na definição de atividades permissíveis em cada uma delas. Na medida em que as definições afetam a permissão da remoção de vegetação, a sua alteração é preocupante.
Todo o capítulo XVIII do código ambiental alterado, intitulado Da Autorização Para Conversão em Campo Nativo, é novo e trata precisamente da permissão de remoção de vegetação nativa nos campos. O capítulo tem dois artigos. O primeiro (Art. 218) estabelece que, no bioma Pampa, a supressão de vegetação para uso alternativo do solo em áreas remanescentes de vegetação nativa e em “áreas rurais consolidadas por supressão de vegetação nativa com atividades pastoris (sic)” só pode ser feita mediante autorização prévia do órgão estadual competente. Quanta superfície pode ser suprimida? O parágrafo 3 do Art. 218 esclarece que “a indicação da área […] é de responsabilidade do produtor”. O segundo artigo do capítulo (Art. 219) lista um conjunto amplo de atividades que estão dispensadas de autorização prévia no bioma Pampa. São elas: introdução de espécies herbáceas forrageiras, corte da parte aérea da vegetação campestre, descapoeiramento da vegetação nativa sucessora para facilitação de atividade pastoril e a atividade pastoril, inclusive “em Áreas de Preservação Permanente e de Reserva Legal, desde que o proprietário adote boas práticas ambientais”.
O capítulo XVIII do novo código transmite confusão, flexibilidade extrema, e ambiguidade na exigência de autorizações. A confusão vem da inconsistência na designação de áreas rurais consolidadas. No inciso III do artigo 2 do novo Cema tinha-se trocado a palavra “pastoril” do decreto 52.431 pela mais abrangente “agrossilvipastoril”. Agora, nos dois artigos do capítulo XVIII do mesmo Cema onde se alterou a definição das áreas, voltamos a encontrar a “supressão de vegetação nativa com atividades pastoris” que não tem definição no artigo 2. Talvez seja um erro, mas gera confusão igualmente. A flexibilização, mais uma vez, está evidente, primeiro, na liberdade do produtor indicar a superfície de vegetação a suprimir, sem clareza sobre essa superfície ficar ou não explícita na autorização; e segundo, na liberação de pastagem em área de preservação permanente e reserva legal desde que o produtor “adote boas práticas ambientais”, presumivelmente ao seu critério.
O contraste entre os artigos 218 e 219 estabelece ainda uma ambiguidade na exigência de autorizações porque, embora o 218 estabeleça que é necessária autorização prévia para suprimir vegetação, o 219 isenta de autorização várias atividades que muito facilmente podem resultar em supressão da vegetação nativa. O governador atendeu aos fatos quando afirmou que o novo código define o Pampa, mas sobreveio a impressão de que a jornalista Laís Duarte está bem informada. Não basta definir o Pampa para defender o Pampa. A proteção pode até ser retirada pela própria definição de uma categoria do uso do solo e pela modificação das condições para a sua transformação.
Sobre o autolicenciamento
A legislação ambiental brasileira sobre licenciamento ambiental segue uma lógica razoável, em que os empreendimentos passíveis de causar dano ambiental precisam de uma licença prévia à sua instalação, uma licença de instalação e, finalmente, uma licença de operação que precisa ser renovada periodicamente mediante avaliações do desempenho ambiental do empreendimento.
Essa lógica estava presente no código ambiental gaúcho original. O artigo 54 do texto alterado em 2020 mantém os três tipos de licença anteriores, mas acrescenta outros três, novos, com definições imprecisas e potencial para flexibilizar o licenciamento ao ponto de invalidar a sua utilidade. Os nomes das licenças novas são: “licença única”, que pode, em alguns casos não especificados, unificar as três modalidades anteriores de licença; “licença de operação e regularização”, para quem começou a operar sem ter obtido as licenças prévia e de instalação; e a famosa “licença ambiental por compromisso” (LAC), que se obtém por via eletrônica mediante uma “declaração de adesão e compromisso”. A LAC não é sujeita à apreciação de um pedido de licença, nem a um estudo ambiental. Ela é atribuível ao empreendedor que se comprometa pelo seu punho a aderir à legislação vigente. Por isso o processo de atribuição de LAC ficou conhecido popularmente por “autolicenciamento”.
Em um momento em que o governador convidou os jornalistas a apontarem “temas específicos que digam com clareza que houve retrocesso” no código ambiental alterado, a jornalista Kelly Matos, da Rádio Gaúcha, interveio imediatamente com “A licença! O fato de o licenciamento ser automático”. O governador respondeu explicando que de todos os tipos de licença apenas a licença ambiental por compromisso poderia ser caracterizada como automática e acrescentou que, até à data, a LAC abrangeu “menos de 10% do rol de atividades licenciáveis […], mais de 20 mil documentos licenciatórios expedidos, apenas 150 por LAC”.
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A razão de 150 por 20 mil corresponde a menos de 1%, mas a criatividade da argumentação não está nos números. Ela está em desviar a atenção do fato da criação dessa modalidade de licença para o número de LACs que foram atribuídas. O número é irrelevante porque o texto do novo código não impede que ele aumente com muita facilidade. Pulverizar categorias de licença ambiental insere confusão desnecessária no processo de licenciamento, mas esse não é o maior problema da alteração. O problema é que o texto alterado não define claramente quais tipos de atividade é que serão licenciáveis por qual licença. A definição fica para depois, feita por resoluções do Conselho Estadual do Meio Ambiente através de processos naturalmente menos transparentes que a redação de uma lei e mais vulneráveis a pressões políticas e econômicas que podem se sobrepor ao interesse da população.
Teria sido mais adequado especificar claramente no código ambiental que algumas atividades ficam isentas de licenciamento. Os empreendedores dessas atividades poderiam até continuar assinando uma declaração de adesão e compromisso com a legislação ambiental, mas essa declaração não precisaria ser elevada a uma forma de licenciamento. A especificação, no entanto, eliminaria a flexibilidade na atribuição de isenções. Flexibilidade essa que convém muito à expediência dos empreendimentos, mas que desprotege o ambiente, colocando em risco a segurança e a saúde dos cidadãos.
Conflitos por contradição
Contradição com a revogação de proteções à floresta gaúcha no Cema
Por vários motivos, é importante entender como o código ambiental estadual protege as florestas do Rio Grande do Sul. O motivo mais pertinente no momento é que a cobertura florestal exerce influência sobre o ciclo hidrológico e pode reduzir a intensidade das enchentes. As florestas limitam a quantidade de água da chuva que chega a um rio de duas formas: devolvendo a água à atmosfera e retendo-a.
O primeiro processo é conhecido como perda de chuva por intercepção. A intercepção corresponde ao percentual de água da chuva que não atinge o solo porque é capturado pela parte aérea da vegetação e devolvido à atmosfera por evaporação. Valores de 10% a 30% são frequentes, mas o índice pode chegar a 50% em algumas florestas boreais densas. O segundo processo é por vezes chamado de “efeito de esponja” e consiste na retenção de água na vegetação, na folhagem caída ao chão e no solo.
A capacidade de retenção de água das florestas é medida em volume. Um estudo de 2023, liderado por Yexuan Liu, da Academia Chinesa de Ciências, estima a capacidade total de retenção de água por florestas do mundo em 22,7 trilhões de litros – mais de 25 vezes o volume do lago Titicaca, o maior da América do Sul.
Não existe dúvida de que as florestas diminuem a quantidade de água da chuva que chega à foz de uma bacia hidrográfica. O que tem sido objeto de controvérsia nos últimos cem anos é quanto essa diminuição pode ajudar a regular o impacto das enchentes. O raciocínio contrário à possibilidade de regulação defende que, quando o volume de chuva é muito alto (acima de um certo limiar), as capacidades máximas de interceptação e retenção são atingidas e a bacia hidrográfica passa a se comportar como se não tivesse floresta. O raciocínio tem lógica, mas a questão é quão baixo é esse limiar. O estudo mais abrangente sobre o assunto defende que o limiar é muito alto ou inexistente. Essa conclusão, que ainda é controversa, deriva da opção metodológica de considerar não só o volume, mas também a frequência dos eventos de precipitação extrema. Entretanto, o leque de serviços ecossistêmicos fornecidos pelas florestas em geral e pela vegetação ribeirinha em particular é tão amplo e rico que o fiel da balança pende necessariamente em favor de proteger a cobertura florestal gaúcha.
Foi muito pertinente, então, que a jornalista Jaqueline Sordi identificasse a gravíssima redução da proteção às florestas no atual código ambiental gaúcho como possível causa da crescente perda de vegetação nativa após 2020. O governador negou frontalmente a premissa de redução de proteção às florestas: “Não houve diminuição de proteção de áreas florestais e áreas de preservação no código. É muito importante ter clareza disso. […] O que nós fizemos foi ajustar, justamente, o código do meio ambiente do Rio Grande do Sul aos dispositivos da legislação federal.”
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A fala parece ignorar que nada impede que as legislações estaduais de proteção ambiental dupliquem a proteção ou sejam mais restritivas que as federais, mas não é aí que reside a contradição com os fatos. O artigo 233 do código alterado revoga treze artigos e um parágrafo único do Código Florestal do Rio Grande do Sul, lei separada do Cema que regulamenta o uso e proteção de florestas. Essas revogações desmontam o Código Florestal com precisão cirúrgica retirando proteção às matas ciliares, eliminando condicionamentos à exploração das florestas, cancelando vários tipos de proibição de corte e obrigação de reposição em caso de corte, livrando a administração estadual da obrigação de arborizar rodovias do estado e, por fim, eliminando a previsão de sanções pela infração da lei.
Vejamos com mais detalhe o que diziam os artigos revogados. No tocante às matas ciliares, o artigo 23 proibia o seu corte e estabelecia regras de compensação nos casos excepcionais em que o corte era permitido; o artigo 13 impedia o corte de capoeiras em áreas de proteção permanente, reserva legal e áreas com inclinação superior a 30º – o que certamente abrangia muitas matas ciliares. No referente ao condicionamento da exploração permissível de florestas nativas, o artigo 9 estabelecia que 20% da área explorada fosse protegida como reserva legal e o artigo 19 impedia a comercialização de lenha e produção de carvão florestal a partir de áreas de vegetação nativa que não seguissem as regras de manejo do código. Sobre proibições de corte, os artigos 6 e 38 proibiam corte ou destruição (total ou parcial) de vegetação nativa, com uma extensão por prazo indeterminado na Mata Atlântica; os artigos 33 e 34 proibiam o corte de alguns gêneros ou espécies particularmente ameaçados; o artigo 11 impedia corte de “espécies raras” incluindo um critério quantitativo para identificar raridade no contexto dos inventários florestais.
Além de proibições de destruição, o código alterado também revogou previsões de reposição de floresta cortada. O artigo 7 condicionava a autorização de exploração de florestas nativas à reposição de floresta nos casos em que tivesse havido corte. O parágrafo único removido do artigo 8 estipulava que um terço da reposição de florestas feita para compensar perdas de floresta nativa fosse feita com espécies nativas. Sobre obrigações de arborização, era o artigo 40 que conferia ao estado o dever de arborizar rodovias estaduais. Essa arborização deveria ser realizada com espécies locais. Por fim, no tocante à previsão de sanções, o artigo 22 estabelecia que quem não cumprisse a lei ou não pagasse as respectivas multas ficaria sem autorização para utilizar recursos florestais; o artigo 41, também revogado, listava as sanções aplicáveis a quem infringisse o Código Florestal do Rio Grande do Sul.
Todas as regulamentações citadas nos dois últimos parágrafos foram revogadas.
Teria sido instrutivo, em resposta à pergunta da jornalista Jaqueline Sordi, revelar e discutir a magnitude da destruição de vegetação nativa no Rio Grande do Sul nos últimos anos. Também teria sido útil olhar de frente os argumentos em favor e em contra de contar com as florestas como reguladores de enchentes. Se realmente vamos apostar nas florestas como reguladoras de enchentes, um assunto difícil que importaria expor ao debate público, fora do resguardo da academia, é o de quão justificável será o impedimento artificial da expansão da floresta nos Campos de Cima da Serra. Essas linhas de aprofundamento do diálogo teriam sido produtivas, mas elas exigem um nível de confiança mútua entre os interlocutores que não sobrevive à contradição de fatos.
Contradição com a supressão dos comitês de bacia
Durante uma enchente, a água que chega à planície aluvial de um rio é uma parcela da água que choveu sobre a bacia hidrográfica desse mesmo rio. Por esse motivo, faz todo o sentido gerenciar o impacto das cheias na população e nos empreendimentos das áreas afetadas tomando a bacia como unidade territorial – e não exclusivamente o município, que seria a unidade mais convencional. Um dos primeiros sinais de adoção desse expediente em nível federal foi a criação, em 1978, do Comitê Especial de Estudos Integrados de Bacias Hidrográficas. A partir daí foram aparecendo gradualmente, em diversos estados da federação, várias formas de comitê de gestão de bacia, fóruns marcados pela transversalidade com que uniram sociedade civil, empresas, universidades e diferentes esferas do poder público na identificação e resolução de problemas de gestão hídrica. Os comitês de bacia também foram pioneiros da gestão participativa dos bens públicos, uma inovação marcante da transição para a democracia, tanto em nível federal como no Rio Grande do Sul. O estado gaúcho foi pioneiro na regulamentação desses comitês por um decreto estadual de 1981; São Paulo regulamentou em 1991; e o governo federal, na lei federal de 1997 que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos. Atualmente, os comitês de bacia do Rio Grande do Sul são regulamentados pelo Sistema Estadual de Recursos Hídricos, através de uma lei de 1994.
Sobre esse pano de fundo, foi novamente pertinente mais uma pergunta da jornalista Laís Duarte, desta vez sobre o motivo do enfraquecimento dos comitês de bacia no Cema alterado. A primeira frase da resposta do governador foi inequívoca:
“Não há enfraquecimento dos Comitês de Bacia. Há um processo, apenas, que eu tenho conhecimento, e eu estou aberto para conversar com essas comunidades sem problema, que exige que determinados gastos que faziam diretamente pelos comitês passem por uma ordenação de despesa da Secretaria [do Meio Ambiente e Infraestrutura] de uma organização administrativa que foi implementada, mas que não significa reduzir a importância desses comitês de bacia que continuam se reunindo e são importantes para o acompanhamento das ações nas bacias hidrográficas.”
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O artigo 16 do código alterado (antigo artigo 18) continua reconhecendo as bacias hidrográficas como unidades de referência do planejamento ambiental, mas remove o inciso II do texto original que identificava como instrumento da execução do planejamento ambiental a “institucionalização dos comitês de bacias, cujas propostas deverão ser embasadas na participação e discussão com as comunidades atingidas e beneficiadas”. Ainda no texto modificado, o artigo 14 (antigo artigo 15) apresenta uma lista de instrumentos da Política Estadual do Meio Ambiente com vários incisos exatamente iguais entre os dois códigos. Uma das diferenças que chama a atenção é que foi eliminado o antigo inciso VI, que identificava como instrumentos “os comitês de bacias hidrográficas, os planos de preservação de mananciais, a outorga de uso, derivação e tarifação de recursos hídricos”. Entretanto, no final de junho de 2024, a Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou um projeto de lei que elimina a exigência de “outorga” para a extração de água subterrânea por atividades agrossilvipastoris no estado. A outorga é o principal mecanismo de regulação e monitoramento de que o estado dispõe para a prevenção de conflitos pelo uso da água. Os comitês de bacia dos rios dos Sinos, Caí, Gravatahy, Mampituba e Tramandaí se manifestaram prontamente contra a tramitação desse retrocesso.
É fato inequivocamente documentado que os comitês de bacia desempenham um papel fundamental na gestão hídrica e que o novo Cema enfraquece o seu papel na política estadual do meio ambiente. A resposta do governador sugere ainda que o estado está restringindo o financiamento necessário ao funcionamento desses comitês.
Contradição com decisões que colocam em risco a saúde da população
Há 38 anos que o programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, presta um serviço precioso à população brasileira. O formato de entrevista coletiva longa, o preparo dos jornalistas envolvidos e o aguçado critério de escolha dos entrevistados criaram um acervo monumental e extraordinariamente rico de espontaneidade ilustrada que permite tomar o pulso à história recente do país. No momento de choque e desorientação que o estado do Rio Grande do Sul atravessa, a gravação de um Roda Viva em Porto Alegre com o governador do estado no papel de entrevistado ofereceu uma oportunidade preciosa para ponderar erros do passado, informar sobre o presente, e liderar a resposta futura através de uma atitude propositiva, tecnicamente bem preparada e solidária com a população. Infelizmente, a maior parte do programa foi tomada por uma tentativa de defender o indefensável desmonte da legislação ambiental do estado. A jornalista Vera Magalhães procurou conduzir a conversa para assuntos mais diretamente relacionados com a emergência que assolava as ruas da cidade durante a gravação, mas perante a resistência do entrevistado em admitir graves erros da sua legislação, os jornalistas se viram obrigados a regressar ao assunto do Código Estadual do Meio Ambiente. Por vezes, o próprio entrevistado retomou o assunto por iniciativa própria.
O governador do Rio Grande do Sul não é negacionista do clima nem das vacinas – fato. Mas ele sabe que o voto negacionista e antidemocrático foi muito importante para a sua eleição. Em um momento em que os ventos do poder federal são menos propícios ao negacionismo, o governador colocou uma ênfase extraordinária em afirmar a sua aliança com a ciência e com a saúde. Algo que, num contexto político diferente e com um histórico de governança tecnicamente mais sólido, nem precisaria ser questionado:
“Eu vou deixar muito claro: Não estou do lado do negacionismo, eu estou do lado da ciência. A minha atuação na pandemia é prova disso. Ao lado da ciência, em proteção da saúde, junto dos cientistas e de tudo o que se propõe a cuidar das pessoas, como é também a minha ação no meio ambiente.”
(Assista ao vídeo)
Um artigo do código ambiental original era motivo particular de orgulho para os gaúchos que têm se debruçado sobre a legislação ambiental do estado. Trata-se do artigo 224, no capítulo XII, intitulado Dos resíduos. O artigo vedava a produção, transporte, comercialização e uso de “produtos químicos e biológicos cujo princípio ou agente químico não tenha sido autorizado no país de origem, ou que tenha sido comprovado como nocivo ao meio ambiente ou à saúde pública em qualquer parte do território nacional”. A lógica é irresistível. Se o próprio país que fabrica o produto proíbe a sua utilização, por que motivo deveríamos pagar para nos expor a ele? Era uma forma simples, eficaz e sensata de cuidar das pessoas.
O artigo 224 foi eliminado.
Conclusão
O Rio Grande do Sul enfrenta um desafio de organização coletiva sem precedentes. A superação desse desafio exigirá muita habilidade política em todas as esferas do poder público e uma sólida base de informação científica. Nessa base, se destacam três princípios de atuação em três dimensões geográficas. Na dimensão global, a resolução dos problemas exige a adoção urgente de fontes de energia limpa, para que o estado e o país parem de agravar o aquecimento global que resulta em eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes. É preocupante que tenha sido necessária intervenção da justiça federal para arquivar o licenciamento da maior mina de carvão da América do Sul a 16 km do Centro de Porto Alegre. Na dimensão regional, é necessário dar mais espaço aos rios junto da foz e gerenciar melhor a água da chuva nas cabeceiras. Esse gerenciamento, que implica em devolver mais chuva à atmosfera e reter uma proporção maior da que não é devolvida, exige um aumento considerável da cobertura florestal – o que é completamente diferente de expandir o monocultivo de árvores. Na dimensão local, é essencial manter os sistemas de proteção que existem e parar de construir abaixo das cotas de inundação em lugares desprotegidos.
É claro que seria utópico imaginar que esses princípios de atuação, por mais que tenham embasamento científico, serão seguidos no curto prazo e sem resistência. O quanto nos aproximaremos deles dependerá, essencialmente, do quanto a população e a comunicação social adquirirem conhecimento sobre a realidade ambiental que nos rodeia. Só assim as lideranças políticas atuais e futuras, naturalmente condicionadas ao voto e às alianças políticas, encontrarão motivos para se aliar realmente à ciência e colocar toda a sua inteligência e criatividade a serviço da população.