Em setembro de 2021, a cúpula do CV (Comando Vermelho) no Ceará mandou um “salve” para todos os seus membros: a partir daquele momento, estava proibida a operação de jogos de azar controlados pelo PCC (Primeiro Comando da Capital) nas áreas dominadas pelo CV no estado, onde as duas facções travam uma disputa sangrenta de território.
O veto incluía máquinas caça-níqueis, bancas de jogo do bicho e também um tipo de jogatina crescente no país, os sites de apostas esportivos, conhecidos como “bets” – embora predominantemente on-line, as “bets” também são oferecidas em pontos de jogo do bicho. A mensagem enviada pelo CV nomeava seis empresas, entre elas a Fourbet e a Loteria Fort, e avisava o seguinte: a liderança local do CV que não impedisse a operação dessas empresas “poderá vir a perder a vida ou a boca de fumo por compactuar com alemão [traidor].”
O efeito foi imediato. Imediatamente, membros armados do CV passaram a expulsar de suas áreas os “cambistas”, gerentes regionais do jogo do bicho, os “apontadores”, aqueles que oferecem os jogos aos apostadores, e os “maquineiros”, responsáveis pela manutenção das maquininhas semelhantes às de cartão de crédito e débito que registram as apostas.
No início do mês seguinte, duas bancas de jogo do bicho foram incendiadas no Centro de Fortaleza. Um ano depois, dois jovens do CV foram presos em flagrante depois de tentarem assassinar a tiros dois homens dentro de um ponto de venda de jogos do PCC em Pentecoste, interior do Ceará.
A disputa territorial entre as duas maiores facções criminosas do país, antes restrita ao tráfico de drogas, abrangia agora a jogatina, o que motivou a Polícia Federal a iniciar uma ampla investigação sobre a ligação do PCC com a exploração dos jogos de azar no estado.
Em dois anos de investigação, a PF comprovou vínculos tanto da Fourbet quanto da Loteria Fort com o PCC e, mais especificamente, com a família de Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder máximo da facção paulista. A Fourbet, segundo as investigações, tem vínculos com Leonardo Alexander Ribeiro Herbas Camacho, filho de Alejandro Juvenal Herbas Camacho, o Marcolinha, irmão mais novo de Marcola.
A Polícia Federal suspeita que o próprio Marcolinha controlava a jogatina da facção no início da última década, mas em 2016 ele acabou atrás das grades, acusado de integrar um esquema de tráfico de drogas no Ceará. Com sua prisão, o controle dos negócios passou para Menesclau de Araújo Souza Júnior, responsável pela contabilidade do PCC no Ceará. A investigação aponta que, tempos depois, Souza Júnior traiu os interesses de Marcolinha e perdeu poder na facção – e, a partir daí, Francisca Alves da Silva, mulher de Marcolinha, assumiu a frente dos negócios lícitos e ilícitos do marido.
Silva morava em Fortaleza, mas possuía casas em Arujá e Bragança Paulista, no interior de São Paulo, além de imóveis comerciais na região da Sé, capital paulista. Foi para um desses endereços de São Paulo que ela levou 300 mil reais em espécie, sacados de uma conta bancária dela, em janeiro de 2023, de acordo com a Polícia Federal. O local, concluíram os investigadores, serviria como um caixa-forte dos Camacho, inclusive com parte do dinheiro enterrado. Silva é considerada pela polícia cearense uma mulher violenta, suspeita de ordenar o assassinato de um homem que planejava matar Barbara, uma de suas filhas.
Áudios de Silva armazenados em nuvem e recuperados pela polícia sugerem que, nos últimos anos, o enteado Leonardo vinha tentando tomar dela os negócios escusos da família. “Querem me tirar pra poder tomar conta de tudo. […] Eu tô enfiada até o pescoço de problema por causa desse cara, desse pai dele [Marcolinha]”, disse para uma mulher não identificada pela PF. Leonardo morava em Itajaí, no litoral catarinense, onde cursava engenharia da computação. O jovem costumava publicar nas suas redes sociais fotos e vídeos de uma vida confortável, com festas e passeios em motos caras, entremeados com anúncios da Fourbet, cujo site, www.fourbet.com, está registrado em Curaçao, um paraíso fiscal no Caribe.
Em agosto de 2022, ele e Henrique Abraão Gonçalves da Silva foram abordados pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) em Nova Andradina, interior de Mato Grosso do Sul. Leonardo disse em depoimento “trabalhar” para o amigo Gonçalves da Silva, que morava em Campo Grande, capital do estado. Esse, por sua vez, já havia dito, em outra abordagem policial um ano antes, que era dono da Fourbet. Mas a PF descobriu que, na verdade, Silva não passava de um testa de ferro dos Camacho, esses sim os reais donos da Fourbet, cuja empresa está registrada em Blumenau, Santa Catarina, em nome de outro laranja.
A Polícia Federal encontrou vínculos entre a Fourbet e a Loteria Fort, uma empresa de Geomá Pereira de Almeida (conhecido como Pereira) sediada em Fortaleza e desde 2019 autorizada pela Justiça a comercializar a “Loteria dos Sonhos”, mantida pela Loteria Estadual do Ceará (Lotece), braço do governo estadual. Henrique Silva, o dono formal da Fourbet abordado pela PRF com Leonardo em Mato Grosso do Sul, é filho de Cíntia Chaves Gonçalves, ex-cunhada e braço direito de Pereira. Além disso, a Polícia Federal encontrou cartazes da Fourbet nas lojas credenciadas da Loteria Fort no Ceará. Nesses endereços, conforme a PF, também operam maquinetas de jogo do bicho.
Entre 2011 e 2022, o esquema teve 302 milhões de reais em movimentações financeiras suspeitas, detectadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Pereira criou um sofisticado mecanismo para lavar dinheiro do PCC oriundo do narcotráfico por meio da jogatina, segundo a PF. Na última década, ele gerenciou 42 cassinos clandestinos na Grande São Paulo, além de pelo menos outros cinco em Fortaleza, todos com dezenas de máquinas caça-níqueis (em apenas um deles, no bairro Meireles, na capital cearense, a Polícia Civil encontrou 69 caça-níqueis, que haviam gerado 2,4 milhões de reais em faturamento nos dias anteriores).
Como as máquinas só aceitavam dinheiro em espécie, o cliente poderia optar por debitar nas maquininhas de débito ou crédito o valor que pretendia gastar nas apostas e receber a quantia equivalente em espécie. Não era uma aposta limpa: segundo o próprio Pereira disse à polícia, cada máquina era programada para dar entre 10% e 12% de lucro para o bicheiro, em prejuízo ao jogador. A cada meia hora, funcionários retiravam as notas depositadas nas máquinas, na chamada “sangria”. Assim, o dinheiro vivo era novamente oferecido aos apostadores.
Esse fluxo oferecia uma vantagem dupla para a lavagem de dinheiro. Em primeiro lugar, como havia muita movimentação de dinheiro vivo, era possível enxertar quantias em espécie oriundas das bocas de fumo controladas pelo PCC, onde costuma circular muito dinheiro vivo. Já as quantias debitadas nas máquinas de crédito e débito dos cassinos eram transferidas para várias contas bancárias de passagem até o dinheiro sair limpo, decorrente de alguma suposta atividade empresarial lícita, como venda e blindagem de automóveis. O próprio Geomá Pereira lavava os seus lucros da jogatina comprando carros para si e pagando ao antigo dono do veículo com créditos nos cassinos que ele controlava.
Cearense radicado em São Paulo, Pereira foi preso pela primeira vez aos 20 anos, em 1991, na Zona Norte da capital paulista, acusado de contravenção. Dez anos depois, acabou novamente detido pelos crimes de corrupção ativa e roubo e condenado a cinco anos de prisão. A PF suspeita que foi nesse período na cadeia que Pereira criou laços com o PCC. Ao deixar o cárcere, no fim dos anos 2000, trabalhou como “maquineiro”, responsável pela manutenção das maquininhas de registro do jogo do bicho, até evoluir para “cambista”, gerente de uma determinada área geográfica da jogatina, e, por fim, bicheiro, com cassinos e pontos de venda de jogo do bicho no Ceará e em São Paulo. Ao escrutinar os negócios ilícitos de Pereira, o Ministério Público de São Paulo reuniu indícios de que Pereira é sócio do conselheiro do Corinthians, Jacinto Antonio Ribeiro, o Jaça, em pontos de jogatina no Parque Novo Mundo, Zona Norte da capital paulista (procurado pela piauí via WhatsApp, ele não se manifestou).
Esse crescimento na hierarquia do bicho em São Paulo veio à base de ampla corrupção, segundo o MP. “Não esquece que era dia 30, você tem que saber dessa responsa aí, que você que é o gerente, de sempre deixar quinze conto [15 mil reais] todo dia 30 separado [para pagar policiais]. Entendeu?”, disse Pereira para um subordinado em 2017 – a conversa em áudio foi captada pelos promotores com autorização judicial. O bicheiro possuía informantes até mesmo na corregedoria da polícia. “Oi, Pereira, tudo bem? O rapaz da corregedoria acabou de mandar uma mensagem que vai ter uma operação hoje aí no Centro.”
No Ceará, Pereira repetiu a aliança com policiais militares, agora a partir da cúpula da corporação. Em maio de 2022, agentes da PF flagraram o tenente da Casa Militar do governo cearense Robério Nunes de Souza, motorista do cerimonial do então governador Camilo Santana (PT), em reunião com Menesclau de Araújo Souza Júnior, contador do PCC, em Fortaleza.
“A existência dessas organizações criminosas está condicionada à corrupção sistêmica de agentes públicos, entre agentes municipais e policiais, já que as casas de exploração são de acesso público e notórias aos frequentadores de cada bairro. Os policiais dos distritos e dos destacamentos/batalhões e os fiscais da prefeitura somente não atuam contra essas casas de jogo ilegal porque são corrompidos continuamente para se omitir”, argumenta o promotor Pedro André Picado Alonso. Pereira foi um dos alvos da Operação Trevo da Sorte, em 2019, capitaneada pelo Ministério Público. Atualmente ele é réu em três ações penais no Tribunal de Justiça de São Paulo, acusado de organização criminosa, corrupção ativa, lavagem de dinheiro e contravenção. Já no TJ do Ceará, é réu em uma ação penal pelos crimes de organização criminosa, lavagem de dinheiro e contravenção penal.
Além de explorar diretamente os jogos de azar, incluindo as atuais “bets”, o PCC tem extorquido dinheiro de empresas do ramo, principalmente em São Paulo.
Em fevereiro de 2021, a Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, que explora legalmente jogos de azar em Portugal a fim de arrecadar fundos para sua operação, abriu uma filial em São Paulo, a Santa Casa Global Brasil Participações Ltda., com capital social de mil reais e escritório na Avenida Paulista, de olho em licitação que estava sendo preparada pelo então governador João Doria a fim de conceder à iniciativa privada uma novidade, a loteria estadual paulista, após o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubar o monopólio do governo federal na exploração do setor.
No mesmo mês em que Doria enviou à Assembleia Legislativa um projeto de lei solicitando a criação da Loteria Estadual, junho de 2021, a filial paulista da Santa Casa aumentou o seu capital social para 25 milhões de reais.
A licitação foi formalmente aberta em fevereiro do ano seguinte e contou com a participação da Santa Casa Global entre as empresas concorrentes. Na proposta formal ao governo paulista, a Santa Casa estimou uma receita bruta anual de 2 bilhões de reais, caso fosse contratada sob regime de exclusividade. No entanto, em março daquele ano o Tribunal de Contas suspendeu o certame, após constatar falhas no edital que direcionavam a concorrência. Diante da decisão do tribunal, no fim daquele ano o governo paulista decidiu cancelar a licitação (nesta semana, o atual governador, Tarcísio de Freitas, anunciou nova licitação para a exploração de loterias no estado de São Paulo).
À Santa Casa portuguesa, restou explorar um título de capitalização em São Paulo, o Santa Casa Capitalização, muito menos rentável do que a loteria paulista.
Não bastasse a redução dos lucros, no fim do ano passado a empresa passou a ser extorquida por integrantes do PCC. Documento interno da Santa Casa em Portugal obtido pela piauí e pelo Expresso, jornal português, revela que, no fim do ano passado, a Santa Casa Global Brasil devia 200 mil reais ao PCC, uma “dívida decorrente da operação em São Paulo” não especificada. O relatório não informa se o montante foi pago pela empresa. Procurados, os diretores da Santa Casa em Portugal não se pronunciaram sobre o caso.
Na manhã de 24 de abril deste ano, a Polícia Federal prendeu 21 acusados de integrar o esquema dos jogos de azar do PCC, incluindo Francisca da Silva, Leonardo Camacho, Menesclau Souza Júnior, Geomá Pereira de Almeida, Cíntia Gonçalves e o filho Henrique, além do policial Robério Souza. Era a fase ostensiva da Operação Primma Migratio, “primeira migração” em latim, uma referência ao avanço da facção paulista por terras cearenses.
Na casa de Silva em Arujá, a PF apreendeu bilhetes enviados por membros da facção que reforçariam sua posição de liderança no esquema. No total, foram apreendidos 100 mil em dinheiro vivo, além de joias e automóveis. Todos foram indiciados por organização criminosa – atualmente o inquérito é analisado pelo Ministério Público, a quem caberá denunciar ou não os presos à Justiça.
Em nota, a defesa da mulher de Marcolinha informou que “ficará evidenciado – tal como já realizado em outros expedientes – que Francisca não tem qualquer relação com os ilícitos descritos” e que ela não possui “qualquer relação de amizade ou profissional com essas pessoas” investigadas. Já o advogado de Leonardo, Bruno Ferullo, afirmou que “após quase dois anos de investigação não se logrou êxito em encontrar nada de ilícito e ou ilegal que pudesse corroborar com as imputações genéricas e infundadas de que Leonardo estivesse envolvido em qualquer atividade ilegal ou de que integrasse organização criminosa”.
O advogado de Souza Júnior, Helivangelo Barbosa, disse também por meio de nota que “acredita veementemente” na inocência de Menesclau Souza Júnior. “Estamos certos de que todas as provas e testemunhos apresentados durante o processo confirmarão a integridade e a honestidade de Menesclau, levando à sua absolvição de todas as acusações.” As defesas de Souza Júnior, Pereira e do PM Robério Souza não responderam os contatos da reportagem. Já as defesas de Cíntia e Henrique não foram localizadas.