De agosto de 2023 a março deste ano, o Museu Histórico Nacional de Santiago, no Chile, recebeu uma exposição sobre os cinquenta anos da ditadura militar do país, instaurada em 11 de setembro de 1973 e que durou dezessete anos. Nós brasileiros também andamos à volta com reflexões sobre o período ditatorial de 21 anos que enfrentamos entre 1964 e 1985, como provou o último 31 de março e as hesitações do governo em como agir diante da data do golpe. Com as devidas especificidades e diferenças de cada caso, todo o continente latino-americano ainda lida com as formas apropriadas de rememorar as rupturas democráticas, e de dar às restaurações democráticas posteriores seu devido valor.
Em Apenas uma mulher latino-americana: em busca da voz revolucionária, Bruna Ramos da Fonte investiga um aspecto específico dessa construção memorialística, concentrando-se nas canções de protesto produzidas durante as ditaduras. Dez anos de pesquisas, viagens e conversas da autora com artistas da América Latina estão condensados neste belo livro-reportagem que explora relatos e histórias de personagens que viveram a experiência ditatorial em países do cone sul entre os anos 1960 e 1980. O livro traz ainda relatos autobiográficos de Fonte, uma mulher que nasceu e cresceu imersa numa família com forte intercâmbio cultural, que mesclam raízes de origem pernambucana, negra e indígena de um lado, e sérvia, alemã e cigana do outro.
Muito inspirada nos lemas de resistência da Nueva Canción Latinoamericana, a jornalista fez da música a sua principal bandeira. Durante alguns meses de sua investigação, Fonte esteve no Chile e conviveu de perto com Tita Parra – neta de Violeta Parra, uma das mais importantes cancioneiras do país e representante da Nueva Canción. Tita assina o prefácio do livro e num trecho diz: “Ela [Bruna] não caminha por onde todos caminham, e certamente caminha muito mais pois percorre lugares aos quais ninguém vai.” Dentre as histórias visitadas por Bruna está a do pianista Tenório Jr., que sumiu misteriosamente numa noite em Buenos Aires em meio a uma turnê que fazia com Toquinho e Vinícius de Moraes em 1976, época da junta militar liderada pelo general Jorge Rafael Videla.
Mas o centro das atenções de Fonte são as canções em si. Ao longo das páginas, as letras de músicas diversas vão sendo combinadas como se fossem peças de um quebra-cabeça que, ao final do livro, formam um grande painel sonoro dessa viagem que ela propõe. É como se ela nos guiasse numa grande playlist, na qual é possível acompanhar a história com fones de ouvido.
Na última sala da exposição na capital chilena, enquanto se ouve pelos alto-falantes Chile, la alegría ya viene (Chile, a alegria já vem) – jingle da campanha contra o ditador Augusto Pinochet –, o visitante é deixado com uma pergunta: ¿Cómo hacemos futuro con un golpe en la memoria? (Como fazemos um futuro com um golpe na memória?). Não há uma resposta clara, mas o livro parece oferecer boas pistas.