Na manhã de 7 de abril, um domingo, Néfi da Silva Freitas vestiu uma camisa social florida e uma boina preta, adereço que só tira do armário em ocasiões especiais. Deixou sua casa no bairro do Maracanã, na Zona Norte do Rio de Janeiro, por volta das dez da manhã, pegou um ônibus e desceu no Aterro do Flamengo, na altura do Centro. Dali, foi caminhando até o Museu de Arte Moderna (MAM), onde acontecia o velório de Ziraldo, um de seus maiores ídolos, morto aos 91 anos.
Freitas tem 17. “Uma coisa que tenho em comum com o Ziraldo é que eu desenho também. Gosto muito do traço dele.” Quando o jovem subiu a rampa que leva até o salão de eventos, no terraço do MAM, o prédio já estava repleto de jornalistas, admiradores, familiares e amigos do cartunista.
Freitas foi sozinho ao velório. Teve ali o seu primeiro e último contato com Ziraldo. O jovem se mudou com a família do interior do Piauí para o Rio de Janeiro em 2021. Vieram para que ele pudesse fazer um curso de computação gráfica oferecido pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan). Criou uma relação de afeto com o cartunista não só por questões estilísticas, mas por uma coincidência que lhe agrada: Freitas nasceu em 25 de outubro, dia seguinte ao aniversário de Ziraldo. O jovem se emocionou no MAM ao lembrar de seus livros favoritos. “Tem uma página que eu gosto muito que diz assim: ‘o Menino Maluquinho não era só maluquinho, ele era um menino feliz.’”
Embora fosse uma despedida, o clima no salão era leve. Algumas pessoas riam, muitas se abraçavam. Em um canto havia uma mesa com um caderno em branco e alguns pequenos bloquinhos de papel, para que as pessoas deixassem recados e desenhos em homenagem ao cartunista. Os papéis, mais tarde, foram guardados dentro do caixão. Um deles dizia: “Ziraldo, você foi muito importante na nossa vida. Minha filha e meu sobrinho foram criados com o Menino Maluquinho. Obrigada.”
Timidamente, Freitas se aproximou da mesa e pegou um dos bloquinhos. Desenhou um personagem de sua autoria, o Pato Patrício – uma criança de longos cabelos cacheados, inspirados nele mesmo. Ao lado da figura, puxou um balão e escreveu sua mensagem de adeus: “Valeu por tudo, mestre!”
Pato Patrício, no desenho de Néfi Freitas (Foto: Pedro Tavares)
Onze anos antes de criar o Menino Maluquinho, Ziraldo participou em 1969 da fundação do jornal O Pasquim, uma importante voz de oposição – e esculhambação mesmo – à ditadura. O veículo durou até 1991. Perguntei a Daniel Pinto, um dos sobrinhos do cartunista, em que revista Ziraldo trabalharia hoje caso lhe fosse garantida a mesma liberdade que tinha no Pasquim. Daniel nem hesitou: “Ele ia criar uma revista nova!” Escutei exatamente a mesma resposta de Guto Lins, outro sobrinho. “Ele criaria a própria revista. O tempo dele era o hoje. Na época do Pasquim, ele poderia ter tido uma carreira internacional se tivesse investido nisso, mas ele sabia que o melhor lugar para ele era o Brasil, onde podia usar o próprio trabalho como uma arte de guerrilha e em prol do humor”, disse Guto.
Mas foi a produção para o público infantil que mais marcou a carreira de Ziraldo e o conectou para sempre com as crianças. Em 2009, ele lançou um livro sobre a história do Flamengo, seu time do coração. Chamava-se O Mais Querido do Brasil em quadrinhos e recontava, de forma lúdica, importantes momentos da história do clube. Naquele ano, em setembro, ele compareceu à Bienal do Livro do Rio para uma sessão de autógrafos que atraiu milhares de crianças – entre elas eu, na época com 7 anos. Não lembro quanto tempo esperei na fila, de mãos dadas com meu pai, mas sei que demorou. Quando chegou a nossa vez, peguei o autógrafo, empolgado, e dei um abraço em Ziraldo. Ele escreveu na primeira página do meu livro: “Pedro, viva o Fla!”, junto com a assinatura e a data.
Meu pai estava tão interessado quanto eu. Disse a Ziraldo que aprendeu a ler com os quadrinhos do Menino Maluquinho. Minha avó conta que, quando se separou do marido, usou o personagem infantil para consolar meu pai, que tinha 10 anos na época. Isso porque o Menino Maluquinho também era filho de pais divorciados. Não lembro se ele comentou isso naquele dia, ao cumprimentar Ziraldo.
O cartunista vestia uma blusa preta listrada e um colete vermelho. Era um visual diferente – embora fosse a cara dele –, e aquilo me marcou. Guardo com carinho, até hoje, o livro autografado, talvez por causa dos fatos que se seguiram: dois meses depois da Bienal, o Flamengo, numa guinada improvável, acabou com dezessete anos de jejum e venceu o Campeonato Brasileiro. Foi o ano do hexa.
Ziraldo estava debilitado desde 2018, ano em que sofreu um acidente vascular cerebral (AVC). Passou seus últimos dias acamado, e a família não divulgou detalhes do quadro de saúde. Ele morreu em casa, na Lagoa, por volta das duas da tarde de sábado, 6 de abril. A notícia logo saiu nos jornais, circulou pelas redes e chegou aos ouvidos de quem estava no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), no Centro do Rio, onde acontecia uma exposição em homenagem ao cartunista mineiro.
O educador Ivaldo Correia estava encarregado de controlar o acesso à última sala da mostra, onde não podem entrar muitas pessoas de uma só vez, quando recebeu a notícia. “A gente ficou sabendo porque mandaram no nosso grupo de WhatsApp [dos funcionários do CCBB]. Estava bem cheio aqui.” Aos poucos, os visitantes foram informados da morte de Ziraldo. Depois de uns minutos, alguém puxou uma salva de palmas, iniciando um momento catártico. “Teve um pessoal que já estava saindo e voltou com o barulho das palmas”, relembra Correia. “Algumas pessoas começaram a chorar.”
A exposição, que foi prorrogada até o fim de maio, é interativa. Ao entrar na primeira sala, o visitante se vê diante de uma estante de partitura que simula o pedestal de um maestro. Quando alguém mexe as mãos diante dela, um telão reage exibindo trechos do livro FLICTS, a primeira obra infantil de Ziraldo, publicada em 1969. Mais à frente, tapetes arredondados funcionam como sensores no chão. Quando se pisa neles, ouve-se onomatopeias típicas dos quadrinhos: “Zum!” “Boom!” “Zap!”
Nos dias seguintes à morte, quem passava por ali buscava mensagens cifradas; recados que Ziraldo pudesse ter deixado para os fãs. Uma pessoa notou que Pererê, um dos personagens do cartunista, diz ao final da exposição, laconicamente: “Ué…ele já não está mais aqui.” O saci já sabia que seu criador estava indo embora? A realidade tem menos graça que a especulação: a frase serve apenas para antecipar a sala seguinte, onde acontece um pique-pega com outros personagens da Turma do Pererê.
Mas, segundo o educador Thiago Monteiro, que também trabalha na exposição, houve ao menos uma coincidência digna de nota: no dia anterior à morte de Ziraldo, os organizadores recolheram o boneco inflável do Menino Maluquinho que estava ao lado do CCBB. Ele estava lá, balançando e anunciando a exposição, desde o começo de março. Foi retirado porque esse era o prazo previsto. Depois da morte de Ziraldo, no entanto, os responsáveis pela exposição optaram por inflar o boneco novamente.
No domingo, enquanto o velório ainda ocorria no MAM, dois irmãos, Miguel e Gabriel, brincavam em uma parede interativa da exposição onde os visitantes podem colar e descolar balões de fala, encaixando-os em diferentes personagens. Gabriel, o mais velho, disse que não conhecia bem os livros de Ziraldo, mas que ficou com vontade de procurá-los. Miguel, por sua vez, contou que tem um livro do Menino Maluquinho, mas nunca consegue ler. “É porque ou às vezes eu tô saindo de casa ou tenho que ficar estudando”, explicou, enquanto corria pela sala. Disse, depois, que tinha acabado de atravessar uma semana de provas. Agora, com tempo, pretendia ler as histórias do Maluquinho.
Depois do velório, no fim da tarde, o corpo de Ziraldo seguiu para Botafogo, onde foi sepultado no Cemitério São João Batista. Eu, enquanto isso, subia uma das rampas do Maracanã para assistir à final do Campeonato Carioca. Flamengo, meu time, contra o Nova Iguaçu. Era uma alegria quase garantida: tínhamos vencido o primeiro jogo por 3 a 0. Só uma zebra desastrosa nos tiraria o título.
Antes da bola rolar, os telões do estádio exibiram a foto e o nome de flamenguistas que tinham morrido naquela semana. O último a aparecer foi Ziraldo, que, na foto, vestia a camisa do Flamengo. O que era pra ser um minuto de silêncio virou uma consagração: parecia que todas as 65 mil pessoas nas arquibancadas aplaudiam o cartunista. Nos primeiros trinta segundos de jogo, os telões do estádio, em vez de exibir o jogo, como sempre fazem, mostraram o Menino Maluquinho com o uniforme rubro-negro. Ziraldo se despediu, e o Flamengo, pela trigésima oitava vez, foi campeão carioca.