A agenda climática se encontra em uma encruzilhada. O Acordo de Paris, firmado em 2015 no âmbito da COP21, marca um dos poucos consensos no plano internacional, articulado em torno do compromisso de frear o aumento da temperatura média mundial com a redução drástica da emissão de gases do efeito estufa. Ainda que esteja claro que a meta global é 1,5ºC, tendo os níveis pré-industriais como referência, no ano que vem se completam dez anos do Acordo e estamos diante de um cenário que já deixou, há muito, de poder ser meramente caracterizado como alarmante. A intensificação dos eventos climáticos extremos, incorporados ao cotidiano e não mais como projeção de futuro, é um sismógrafo dos nossos tempos.
Nessa encruzilhada há escolhas a serem feitas. Os caminhos para a transição climática são múltiplos, mas podem ser radicalmente distintos, dependendo dos objetivos definidos. Há impasses de várias ordens. O relatório independente A Green and Just Planet produzido por um grupo de especialistas reconhecidos no plano internacional, a convite da Presidência Brasileira do G20, e que está sendo apresentado como subsídio à Task Force do Clima, é um bom instrumento para mapear esse horizonte de decisões complexas, os impasses e os conflitos que emergem quando o tema é o financiamento da transição climática.
O ponto de partida do relatório é o reconhecimento de que os países do G20 representam 80% da economia e também das emissões mundiais de gases estufa, o que confere a essas nações todas as condições – e, mais que isso, o dever – de liderar compromissos com metas mais ambiciosas para a agenda climática. Porém, não basta simplesmente anunciar aonde se quer chegar, mas como chegar.
A primeira grande recomendação do grupo de especialistas se dirige às estratégias industriais nos planos de transição verde que cada país deve implementar, integrando crescimento econômico e ação climática. As mudanças climáticas precisam nortear as ações de um governo em sua totalidade, não apenas de um ministério ou secretaria. Uma abordagem integrada é necessária para que as metas climáticas orientem de maneira coesa e transversal a atuação dos Estados e das políticas públicas em todas as áreas, sob pena de promover um “jogo de soma zero”, com os efeitos de alguns investimentos e incentivos em atividades convencionais anulando os resultados positivos obtidos com políticas alinhadas com ambições climáticas mais ousadas.
Essas estratégias coordenadas envolvem reprogramar políticas produtivas que transformem as maneiras como produzimos e construímos, como nos alimentamos, como consumimos. Metas nacionais ousadas, claras e transparentes de limitação de emissões – as NDCs, na sigla em inglês – precisam se traduzir naquilo que o linguajar da diplomacia chama de meios de implementação; isto é, tais metas devem nortear licitações, compras públicas e objetivos setoriais. Isso envolve direcionar investimentos públicos e privados para a transição verde. E implica também desinvestir e retirar incentivos de certos setores, na medida em que atividades altamente dependentes de emissão de carbono precisam ser abandonadas de forma rápida e progressiva.
Embora essa recomendação pareça evidente, não pode haver ingenuidade quanto a uma série de tensões geopolíticas e conflitos de interesses internacionais e no plano doméstico dos países que dificultam acordos em torno desse caminho.
Primeiro, países ricos em petróleo e dependentes do extrativismo não vão simplesmente deixar de explorar seus recursos naturais. Podem até começar a direcionar investimentos para a transição verde, mas dificilmente irão abandonar o aproveitamento econômico de suas reservas, o que resulta em resistência e vetos a compromissos que exijam esse desinvestimento. A Arábia Saudita, por exemplo, gasta 7 mil dólares por cidadão em subsídios para combustíveis, o valor mais alto entre os países do G20, equivalente a 27% do seu PIB. Paralelamente, os produtos de petróleo representaram, em média, cerca de 40% do PIB saudita nos últimos anos e 75% da receita fiscal.
Segundo, políticas industriais verdes nacionais podem aumentar barreiras comerciais e tarifárias, com incentivos desproporcionais a produtos domésticos, especialmente quando adotadas por países ricos. Há uma nova roupagem do protecionismo, o “protecionismo verde”, em que economias centrais chutam a escada enquanto ainda estão subindo por ela. Iniciativas como o Global Arrangement on Sustainable Steel and Aluminum (Gassa) e o Carbon Border Adjustment Mechanism (CBAM), de liderança norte-americana e europeia, respectivamente, podem gerar impactos profundos sobre economias africanas e asiáticas, ao elevar significativamente as tarifas sobre suas exportações e favorecer indústrias domésticas nos países desenvolvidos.
Terceiro, a transição voltada à mitigação de mudanças climáticas, eficiência energética, energias renováveis, e outras inovações ambientais depende do desenvolvimento de tecnologia. Hoje, as patentes industriais verdes estão concentradas em poucos países, com liderança inconteste da China, seguida pela Índia. Países de baixa e média renda vão esbarrar em monopólios de patentes e suas implicações concretas, com claro risco de aprofundar sua posição periférica na ordem internacional. Além disso, a estratégia de compartilhamento de conhecimento – inclusive aquelas pelas quais China e Índia conquistaram liderança tecnológica, como a aquisição de empresas – é orientada a uma posição individualista de competição e não tanto por um esforço global de construção de ação coletiva.
Quarto, há implicações sociais que não podem ser ignoradas: empregos tradicionais não se convertem imediatamente em empregos verdes e comunidades tradicionais são diretamente impactadas por atividades econômicas associadas à transição. O Just Energy Transition Investment Plan da África do Sul (JET-IP), que prevê parcerias com a União Europeia e os Estados Unidos para financiar a descarbonização da economia, vem enfrentando críticas de sindicatos e movimentos sociais organizados, que sinalizam para a necessidade de um plano de recapacitação da atividade dos trabalhadores, bem como à participação nas decisões sobre alocação e redistribuição de recursos. A construção da Usina Hidrelétrica de Três Gargantas, a maior do mundo, na China, desalojou mais de 1,3 milhão de pessoas e submergiu mais de 1.700 vilarejos. O Laos, que tem adotado a estratégia de se tornar a “bateria do Sudeste da Ásia”, fornecendo energia limpa a países como Tailândia, Vietnã, Malásia e China, construiu cerca de oitenta barragens nos últimos quinze anos, concentradas ao longo do Rio Mekong, com grande impacto social e ambiental.
O segundo grupo de recomendações envolve a reorganização do sistema financeiro de forma a dar o devido suporte para uma transição capaz de enfrentar esses desafios. Isso porque as economias, especialmente as de média ou baixa renda, enfrentam restrições fiscais significativas para financiar a transição climática. Embora seja possível realizar ajustes nos gastos – como a reavaliação de subsídios ao petróleo, agropecuária convencional ou despesas militares –, medidas adicionais são fundamentais.
Entre elas, destacam-se políticas domésticas e internacionais de tributação (como a taxação de super ricos), a promoção de mercados de carbono e o fortalecimento de instituições de desenvolvimento, incluindo bancos nacionais, regionais e internacionais. Além disso, é essencial reorganizar a regulação prudencial, tanto em nível internacional quanto no âmbito dos bancos centrais, ajustando seus mandatos para favorecer investimentos voltados à transição verde. Por fim, não basta apenas reorientar os fluxos financeiros; é crucial direcioná-los de forma equitativa, assegurando que a transição não deixe ninguém para trás, especialmente pequenas e médias empresas, bem como populações de baixa renda.
O relatório parte da premissa de que é necessário desfazer a falsa dicotomia entre financiamento público e privado para a transição. Ambos são indispensáveis: o financiamento público, isoladamente, não será suficiente para cobrir todas as demandas, e os mercados, por si só, carecem da capacidade de coordenação necessária para promover a transformação em larga escala.
Embora o direcionamento de investimentos para a transição, aliado a medidas e estratégias industriais, seja essencial, persistem desafios significativos nesse processo.
Países mais dependentes economicamente de combustíveis fósseis e atividades extrativistas temem que condicionar o fluxo de investimentos ao desempenho ambiental possa restringir, em vez de viabilizar, o acesso a recursos financeiros. A transição climática exigiria instrumentos de financiamento direto por parte dos países de alta renda, considerando que estes historicamente contribuíram mais para as emissões, inclusive dentro do G20.
Há, também, relativo consenso sobre a necessidade de bancos nacionais e multilaterais de desenvolvimento melhorarem seus esquemas de financiamento e associarem, cada vez mais, seus investimentos a metas climáticas, especialmente para empréstimos de longo prazo, decisivos para a reestruturação de grande escala exigida nos planos de transição.
O mesmo não vale para o papel de bancos centrais; sobre isso as controvérsias são mais significativas. Uma política ortodoxa continua a orientar a atuação dos bancos centrais nos países de alta renda, que se mostram cautelosos em expandir seus mandatos incorporando a agenda climática; ou em reconhecer que, tal como funcionam, há um viés favorável a atividades intensivas em carbono, um carbon bias. Em países de média e baixa renda, a mesma resistência é observada, mesmo quando os mandatos são mais amplos, devido ao receio de desestabilizar o delicado equilíbrio entre emprego, inflação e crescimento. Essas economias, mais dependentes do carbono, avaliam que ações abruptas poderiam comprometer esforços de transição.
Além disso, o redirecionamento do financiamento para a transição verde vai muito além de simplesmente afastar recursos de atividades intensivas em carbono. Os fluxos financeiros de outras cadeias, como as de carne e mineração, envolvem questões muito mais complexas da crise climática – especialmente em países de perfil extrativista –, como a poluição da água e a perda de biodiversidade – aspectos que não podem ser ignorados nos esforços de reorganização das finanças internacionais.
Um último conjunto de recomendações do relatório produzido pelo grupo de especialistas envolve a cooperação internacional. Tudo o que foi dito até aqui deixa evidente que nenhum dos dois temas anteriores poderá ser devidamente equacionado somente com ações realizadas no plano doméstico. O crescimento da atenção de governos, empresas e consumidores para a agenda do clima sinaliza que já estamos experimentando algum tipo de transição. Mas se ela não for melhor coordenada, os esforços empenhados no enfrentamento da crise climática podem ser insuficientes para atingir a meta de 1,5ºC graus. E, além disso, pode haver agravamento das desigualdades dentro dos países e entre regiões do planeta. Na governança global, há pelo menos quatro agendas sensíveis para evitar isso.
É preciso uma nova arquitetura financeira para evitar fuga de capitais daqueles lugares que introduzem critérios ambientais no funcionamento de suas economias ou, inversamente, para impedir que incentivos atrativos nos países mais ricos drenem recursos que poderiam ser direcionados para ajudar os países mais pobres a realizar a sua transição climática. Sinalizações positivas, mesmo por parte dos países do G20 e da OCDE até agora, precisam ser alinhadas a essa preocupação.
Um segundo tema envolve tecnologias. A exemplo do que já se fez na área da saúde, um novo regime de direitos de propriedade com a possibilidade de quebra de patentes em segmentos estratégicos de cadeias produtivas importantes para a transição verde pode ser algo necessário para evitar a dependência dos países mais pobres. Mas esta não é uma proposta que esteja na mesa de negociações dos países do G20, ao menos por enquanto. Junto a isso, é preciso cooperação internacional para fortalecer capacidades para a coprodução de tecnologias nos países que hoje não têm sistemas de inovação robustos para fazer isso sozinhos.
Um terceiro tema envolve comércio internacional. É certo que haverá, no futuro, cada vez mais, e não menos, introdução de critérios ambientais nas regras de produção e troca de produtos e serviços, dentro dos países e entre eles. Contudo, isso precisa vir acompanhado de regras de transição claras e de estratégias de adaptação dos países mais pobres, para que tais medidas não se tornem formas de protecionismo não tarifário e que aprofundem o fosso que separa os países industrializados dos exportadores de commodities.
O quarto e último tema envolve a assimetria de poder. Nada disso será possível se os fóruns globais seguirem reproduzindo a lógica que vem gerando crise e descrédito na governança internacional. A nova configuração do poder global e o reconhecimento de que as respostas à crise climática precisam ser dadas em escala planetária tornam necessária uma reforma da maneira como se promovem as discussões e se tomam decisões. Também dentro dos países é preciso criar formas de discriminação positiva, de maneira a dar mais voz aos cidadãos e àqueles segmentos que são afetados diretamente pelas mudanças climáticas. Não se trata apenas de negócios verdes, mas de introduzir novas formas de relação entre economia, sociedade e natureza.
Sempre há caminhos para sair de uma encruzilhada. A questão, contudo, é se, e quem, será deixado para trás ao longo do trajeto. O balanço das agendas para a transição climática sugere que as escolhas a serem feitas não são exatamente novas. Questões como protecionismo, estratégias industriais, desequilíbrios no comércio internacional, embates entre ortodoxia e heterodoxia nas políticas fiscais e financeiras, e conflitos entre países de alta, média e baixa renda não são inéditos – são, na verdade, históricos. A transição climática, porém, intensifica essas tensões, trazendo-as para o centro da crise com uma urgência sem precedentes.
*Os três autores integraram a Secretaria Executiva do Grupo de Especialistas no âmbito da Task Force do Clima do G20.