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    Sala de aula abandonada na zona rural de José de Freitas, no Piauí Foto: Vitória Pilar

anais do descalabro

As escolas que o Centrão esqueceu

Enquanto o governo Bolsonaro abre o cofre da educação para aliados de Ciro Nogueira, municípios do Piauí têm obras em colégios abandonadas há quase dez anos

Luigi Mazza e Vitória Pilar | 15 abr 2022_12h53
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A escola não tem alunos, nem professores, nem banheiro, nem janelas. Também não tem nome. Tem, em vez disso, lixo por todos os lados, insetos e um colchão largado. No meio da imundície vive uma família de porcos. Não fosse pelas carteiras reviradas, ninguém desconfiaria de que aquela construção na zona rural de José de Freitas (PI), a uma hora de distância de Teresina, era para ser um colégio. Muito menos que essa obra deveria ter sido entregue nove anos atrás.

Uma empresa foi contratada pela prefeitura da cidade para erguer a escola em 2013. A construção seria finalizada em 120 dias, bancada com recursos do FNDE – o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, órgão que administra as verbas do Ministério da Educação a serem aplicadas nos estados e municípios. O FNDE se comprometeu a enviar 130 mil reais para que a prefeitura pagasse a construtora, mas a promessa não foi cumprida. Até hoje, segundo os registros do próprio FNDE, a prefeitura só recebeu 75 mil reais para terminar a obra. O contrato com a empreiteira foi prorrogado quatro vezes, a última delas em 2016. Desde então a obra está abandonada, sem qualquer utilização.

“Tem quase dez anos que essa escola tá aí, aos pedaços. Abandonaram totalmente, ninguém nunca soube o porquê”, diz Iracema Barroso, dona de casa que vive perto do colégio, no povoado Creoli, que fica a cerca de 10 km do centro da cidade. Ela conta que, durante quase três anos, a escola chegou a funcionar com 42 alunos, mesmo inacabada. Sua sobrinha estudou ali durante esse período. Como não havia banheiro no colégio, a menina precisava ir até em casa para fazer suas necessidades. Crianças que moravam mais longe não tinham essa opção, então recorriam ao terreno que fica atrás da escola. Não há outra escola no povoado. Hoje as crianças do Creoli precisam estudar no centro da cidade.

Um dos porcos que vive na escola do povoado Creoli, em José de Freitas (PI) — Foto: Vitória Pilar

 

A falta de verbas para essa obra contrasta com a dinheirama que tem sido distribuída pelo FNDE nos últimos meses. Conforme revelou o Estadão, o órgão – aparelhado pelo Centrão e presidido por Marcelo Ponte, ex-chefe de gabinete do ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira – autorizou 2 mil novas obras de escolas em várias cidades, embora o país tenha hoje 3,5 mil obras inacabadas, esperando por recursos há anos. Essas novas obras foram apelidadas de “escolas fake”, já que o FNDE não tem orçamento suficiente para custear todas até o fim. Elas servem, no entanto, para dar palanque a prefeitos e parlamentares em ano eleitoral. Só no Piauí, terra de Nogueira, foi autorizada a construção de 52 novas “escolas fake”. Enquanto isso, em outros colégios, como o de José de Freitas, obras já contratadas não receberam os recursos prometidos e foram abandonadas.

Roger Linhares, prefeito de José de Freitas, é do Progressistas, mesmo partido de Nogueira. Os dois aparecem em várias fotos juntos nas redes sociais de Linhares. Em outubro do ano passado, depois de se reunir com Nogueira em Brasília, o prefeito anunciou ter obtido recursos para vários projetos do município, entre elas a renovação da frota de ônibus escolares com verbas do FNDE. Nenhuma palavra sobre a escola largada aos porcos. Procurada pela piauí, a assessoria de Linhares afirmou que, quando ele recebeu as obras inacabadas da gestão anterior, não havia documentos no sistema do FNDE que permitissem retomar as construções. “Ele teve todo o interesse em retomar as obras”, disse a assessoria, mas “teve toda uma burocracia para que pudesse dar continuidade”. Segundo a prefeitura, os projetos agora estão refeitos e as obras serão retomadas em breve.

A poucos quilômetros do povoado Creoli, às margens da rodovia PI-366, ainda no município de José de Freitas, há outra obra que foi contratada em 2013 e hoje está abandonada. Onde deveria haver um colégio com duas salas de aula há apenas paredes de concreto e tijolos quebrados do lado de fora. Dos 248 mil reais prometidos pelo FNDE, só foram entregues 124 mil. Francisco Lemos, que mora na outra margem da estrada, em frente à obra, conta que faz anos que não aparecem mais pedreiros para tocar a construção. Para mostrar à piauí a deterioração da obra, ele precisou sacar um facão e cortar o mato que já cerca por todos os lados o terreno onde ficaria a escola. Parte da construção é inacessível. O sobrinho de Lemos, que mora com ele, poderia estudar ali. Em vez disso, o menino, de cinco anos, precisa ser levado de moto até o centro da cidade para ter aulas.

O esqueleto da obra de um colégio na zona rural de José de Freitas (PI) — Foto: Vitória Pilar

 

Em 2017, constatando o atraso nas obras – que àquela altura já chamava atenção – o Ministério Público Federal abriu um inquérito civil para apurar se houve crime de improbidade administrativa por parte da prefeitura de José de Freitas, já comandada na época por Roger Linhares. O caso não foi para frente, e o inquérito terminou com apenas uma recomendação, feita em 2019: que fossem retomadas as obras das duas escolas, além de duas creches que estavam paradas, e que a prefeitura adotasse “imediatamente as providências necessárias à preservação dos recursos federais já empregados”.

Nos últimos três anos, nada mudou. As obras continuam paradas e o patrimônio pago com dinheiro federal se deteriorou. As carteiras escolares estão danificadas, assim como parte das paredes construídas. Ao ser questionada sobre esse ponto específico, a assessoria do prefeito Linhares afirmou que as obras já estavam paralisadas quando ele assumiu a prefeitura, em janeiro de 2017. É evidente, no entanto, que a situação piorou desde então. As fotos da última vistoria feita pelo FNDE na escola do povoado Creoli, em junho de 2016, mostram um ambiente limpo, com as carteiras alinhadas e um ventilador de coluna. Hoje o ventilador não está mais lá, as carteiras estão reviradas e os porcos tomaram conta do lugar.

 

Maxwell da Mariinha, outro correligionário de Ciro Nogueira, postou recentemente nas redes sociais um vídeo que gravou em frente à sede do FNDE, em Brasília. Ele é prefeito de Altos, cidade colada em Teresina. No vídeo, gravado ao lado do deputado federal Flávio Nogueira (PT-PI), o prefeito explicou o motivo da visita: “Estamos aqui pleiteando a liberação de mais uma creche, mais um colégio [de] treze salas e uma quadra coberta.” No mesmo dia, o prefeito se reuniu com Eliane Nogueira, mãe de Ciro, que assumiu o mandato do filho no Senado desde que ele se tornou ministro do governo Bolsonaro. No dia seguinte, Maxwell da Marinha foi recebido pelo próprio ministro em seu gabinete.

A prefeitura de Altos obteve no final de 2021 autorização do FNDE para gastar 200 mil reais na construção de uma nova creche orçada em 3 milhões de reais, segundo o Estadão. Também foram autorizados 293 mil reais para a aquisição de ônibus escolares. Enquanto isso, a cidade tem duas obras de quadras esportivas escolares abandonadas por falta de verbas do mesmo FNDE. O órgão, que se comprometeu em 2013 a repassar 503 mil reais para a construção de cada quadra, transferiu apenas 125 mil para cada uma delas. Consequentemente, as obras, contratadas em 2013, mal começaram, tiveram que parar. Estão abandonadas.

A primeira quadra esportiva é anexa à Unidade Escolar Vicente Delmiro, na Comunidade Quilombo, zona rural do município. A única evidência de que algo estava sendo construído ali é a existência de alguns muros contíguos de tijolo. Também há algumas poucas barras de metal, mas tudo foi tomado pelo mato, que chega a quase três metros. A segunda quadra fica no outro extremo da cidade, no povoado Montanha. Ali, a construção se limita a seis muros de concreto: três de um lado, três de outro, formando o que seriam os extremos da quadra. Mas onde deveria estar a obra há um matagal. 

Muros de concreto e um matagal onde deveria haver uma quadra esportiva, em Altos (PI) — Foto: Vitória Pilar

 

Ao ser questionada pela piauí, a assessoria do prefeito de Altos alegou que a culpa pela paralisação das obras é da administração anterior, que teria executado mal a obra. Quando Maxwell da Mariinha assumiu a prefeitura, não era financeiramente viável retomar uma construção nessas condições de degradação, afirmou a assessoria. O FNDE também foi procurado para esclarecer o porquê de novos recursos não terem sido liberados para concluir as obras em Altos e em José de Freitas, mas não respondeu aos contatos da reportagem. O espaço segue aberto para manifestações.

“A gente não tem ideia se um dia vai ter quadra. Por enquanto a gente fica aqui encarando essas paredes”, lamenta José Mesquita, de 65 anos, que trabalha como vigia e faz-tudo da Unidade Escolar Deputado Prado Junior. Foi a família de Mesquita que, vinte anos atrás, doou o terreno para a construção da escola, situada ao lado da construção abandonada. Hoje, segundo ele, estudam no colégio mais de duzentas crianças que poderiam ser beneficiadas pela obra. “Tem campinho de terra aqui, mas seria bom uma quadra, né?”

Dono de uma mercearia nos arredores da escola, Camilo Rodrigues, de 38 anos, é cético quanto à possibilidade de a obra ser concluída. “Só fingiram que iam trazer a quadra pra cá”, afirma, sentado numa cadeira de plástico em frente à lojinha. Seus dois sobrinhos, de 8 e 9 anos, estudam no colégio. Ele conta que a construção não engatou em nenhum momento. “Essa quadra só foi derramamento de dinheiro. Derramamento de dinheiro no bolso de alguém, né?”, ironiza Rodrigues. “Eita Piauí que não tem jeito.”

 

* Reportagem atualizada às 19h15 do dia 15/04/2022 para incluir posicionamento da prefeitura de Altos.

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