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    Ilustração: Carvall

questões militares

As esquinas em que os generais se perderam

O Haiti e a Amazônia foram palcos de um experimento de reaproximação do Exército com a imprensa e com a democracia; diálogo foi interrompido

João Paulo Charleaux | 07 mar 2023_08h00
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Em 2010, parecia que o Exército tinha tomado jeito. Os militares brasileiros beijavam crianças e salvavam miseráveis dos escombros de um terremoto no Haiti. Vestiam capacetes azuis e, embora andassem em tanques e portassem fuzis, eram conhecidos como tropas de paz. Lula pôs, em seu primeiro mandato, alguns generais – entre os quais Heleno, Santos Cruz e Rêgo Barros, que mais tarde se transformariam em bolsonaristas ou algo pior – para comandar a mais ambiciosa aventura militar brasileira desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) ou a Guerra do Paraguai (1864-1870). A Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti) deu, durante 13 anos, de 2004 a 2017, um sentido de vida, além de prestígio, patente e muito dinheiro para membros do Exército que até então eram ridicularizados por passar a vida pintando meio-fio no Brasil – uma caricatura cruel, mas que pegou e é engraçada.

Os militares tinham massacrado jornalistas por 21 anos, durante a ditadura. Penduraram Herzog pelo pescoço, torturaram o Serjão e outros tantos, destruíram redações de jornal, tocaram o terror. Mas, no comando da Minustah, mais de 30 anos depois do golpe, eles começaram a colocar repórteres em jatinhos, junto com coronéis e generais, e a levar essa mesma imprensa, sem custo algum, com hospedagem, comida e passagem garantidas, para conhecer o Haiti, para observar de perto o quanto o Exército tinha se tornado bacana.

Posso dizer porque fui um deles. Em 2010 eu trabalhava na editoria Internacional do Estadão. Sob a ditadura, o jornal tinha se notabilizado por publicar receitas de bolo no noticiário político – a saída encontrada para protestar de forma cifrada contra a censura, que cortava das páginas do jornal as notícias que os generais não queriam ver impressas nas rotatórias. Passados 25 anos do fim do governo militar, agora éramos convidados a viajar junto com os generais – e tudo bancado. Não só eu, é claro, mas muitos de meus colegas, de diversos jornais, revistas, rádios e tevês. Não era uma operação corrupta de cooptação dos jornalistas. Era uma operação de relações públicas que obedecia ao objetivo militar legítimo e bem definido de ganhar corações e mentes para facilitar o desenrolar da ambiciosa missão de paz cujo comando a ONU havia delegado ao Brasil. Os jornais, pobres, agradeciam a carona, de bom grado. Os repórteres, como eu, ávidos por sair um pouco das redações, davam graças a Deus. Muitos chegaram ao extremo de transformar a estadia de uma semana em Porto Príncipe em livro, onde relataram suas supostas aventuras, omitindo ou minimizando o detalhe pouco heroico de que ficavam o dia inteiro sob proteção permanente dos militares. Eram repórteres flácidos, vergonhosamente fantasiados de soldados, vivendo uma infância tardia às custas do interesse público de saber o que acontecia no Caribe. De sacanagem, alguns militares se referiam a esses jornalistas como “caçadores de borboletas”. Eu não caí nessa. Tenho meus próprios ridículos para passar.

É difícil encontrar reportagens críticas à Minustah. Tudo andava bem para todos: os militares tinham sua guerra, finalmente. Os jornais, empobrecidos, podiam contar a lorota de que tinham enviados e mais enviados no exterior. E os repórteres faziam um bate-volta de uma semana ou, às vezes, menos – dormíamos em contêineres com ar condicionado, mas voltávamos com relatos de valentia para contar em palestras; menos eu, que, ainda mais sordidamente, prefiro ser amado por fazer rir, expondo anonimamente meus colegas em artigos como este.

Aquele negócio era uma usina de bondades. Os militares brasileiros falavam inglês, pegavam crianças haitianas no colo, ajudavam orfanatos, faziam pontes, erguiam hospitais, tiravam gente debaixo de ruínas, eventualmente davam a vida – ou, vá lá, se matavam por isso, como aconteceu no sinistro caso do general Urano Bacellar, que meteu uma bala na própria cabeça quando tinha nas mãos o comando da missão, em janeiro de 2006, sendo seguido por gesto semelhante pelo soldado Geraldo Barbosa Luiz, de apenas 21 anos, que disparou contra si mesmo um fuzil FAL 7,62, mas cujo caso ficou menos conhecido. O rapaz de Ponta Porã se matou em 2013. 

A moçada chegava ao extremo de tirar a própria vida, mas não era vista no noticiário tirando a vida de ninguém. “Morrer, se preciso for; matar, nunca”, é a frase atribuída ao Marechal Rondon, não é? Pois estava ali esse ideal de soldado brasileiro, dando a vida para salvar os haitianos, e as tevês estavam dispostas a emocionar o público mostrando essas histórias. É óbvio que a verdade não era bem essa – o próprio Santos Cruz, general que comandou as forças brasileiras em solo haitiano, de 2007 a 2009, e que, dez anos depois, viria a ser ministro-chefe do governo Bolsonaro –, disse em depoimento num vídeo institucional do Exército sobre a Minustah que nunca viu na vida tanto volume de fogo quanto naqueles dias, quando dava combate às gangues de Porto Príncipe. Mas o noticiário não estava interessado nos soldados brasileiros que matavam. A história era pesada demais para os familiares dos militares que, dias antes, tinham sido mostrados no horário nobre, chorando e balançando lenços brancos ao ver seus meninos partindo de navio da Marinha para o longínquo Haiti.

Era coisa de se ver, como o Exército Brasileiro tinha sido competente em reverter a tal ponto a relação negativa que tinha com os jornalistas desde a ditadura. Muitos, como eu, queriam acreditar que, a despeito da operação meramente publicitária, tinha havido de fato uma mudança geracional. As cabeças eram outras, tudo era página virada ou coisa do tipo. Mesmo que o passado tenebroso tivesse apenas sido varrido para debaixo do tapete, parecíamos todos dispostos a aceitar o fato de que tudo havia mudado.

O primeiro comandante da Minustah foi Augusto Heleno, o sujeito que, anos mais tarde, viraria o mais bolsonarista dos ministros de Bolsonaro, chefe de um GSI (Gabinete de Segurança Institucional) sobre o qual paira a suspeita de ter minado por dentro a segurança da Praça dos Três Poderes, para que militantes de extrema direita cagassem lá dentro, no dia 8 de janeiro de 2023. O general está quieto desde então, mas, quando voltou do Haiti, falava bastante. Eu dei uma palestra com Heleno, em São Paulo, em 2006. A conversa foi com jornalistas envolvidos na cobertura internacional. Se existe alguma dúvida de que a aproximação do Exército com a imprensa funcionava e era boa, a fala de um dos participantes, ao final do encontro, dá a medida do quanto: “Ele (Heleno) conseguiu quebrar um pouco aquela imagem de truculência que geralmente temos do Exército Brasileiro e mostrou que a instituição está cada vez mais preparada para esse tipo de missão no exterior.” Taí.

Heleno contou um dia, em outra palestra, como ele e os homens dele sentaram fogo numa gangue de haitianos. A Cruz Vermelha chegou a preocupar-se à época com informações que circulavam sobre uma igreja atacada e também sobre combatentes que eram alvejados quando tentavam recolher seus companheiros feridos ou mortos. Ataques a lugares de culto e a socorristas, sejam eles combatentes ou não, podem ser violações ao direito da guerra. Não é possível saber detalhes, nem se foram apenas bravatas de palestrante. Ninguém foi atrás disso porque a sensação era de que os militares brasileiros eram essencialmente bons, a missão era justa e a página do Exército cruel, do Exército da ditadura, estava sendo virada. A boa vontade era geral.

Em minha passagem de uma semana em Porto Príncipe, eu me desatachei do Exército e, junto com o fotógrafo Tiago Queiroz, fui a uma universidade haitiana. Recolhemos ali relatos de estudantes que se queixavam de terem sido espancados por soldados brasileiros. Além dos relatos, nos trouxeram cápsulas deflagradas de bombas de gás lacrimogêneo e de granadas de luz e som, além de cartuchos de balas de borracha. Na parede da frente da Faculdade de Etnologia tinha um buraco. Os meninos disseram que tinha sido um tiro de fuzil, um disparo de munição real.

Havia uma enorme favela de barracos de plásticos na frente da universidade. Eles tinham sido montados ali como abrigo temporário das vítimas do terremoto. O local se chamava Campo de Marte, mesmo nome do terreno que fica atrás da Torre Eiffel, em Paris. No meio das casas de lonas, o fotógrafo que me acompanhava encontrou uma menina com um talho no rosto. Os haitianos disseram que o talho, que ia da testa ao meio da cara, tinha sido aberto por uma bomba lançada pelas tropas brasileiras, no dia em que ocorreu a operação na universidade.

Voltamos à base militar naquela noite. Pedimos uma audiência, uma entrevista, com o comandante do 1º Batalhão de Infantaria de Força de Paz, responsável pelo grupo envolvido naquela operação. O nome dele era Rêgo Barros, militar que nove anos depois, em janeiro de 2019, viria a se tornar o primeiro e único porta-voz da Presidência da República no governo Bolsonaro. Barros sairia do Planalto meio brigado com o chefe e, depois disso, o cargo dele – que consistia em tentar peneirar os disparates que Bolsonaro vomitava – foi extinto.

Quando ainda no Haiti, ele nos recebeu com cortesia em sua sala de comando. Inicialmente, disse não saber das queixas contra a operação. Confrontamos as informações mostrando as fotos que continham os números de série das cápsulas deflagradas. A conversa evoluiu melhor a partir daí. O general deu sua versão e nós publicamos a coisa toda em papel jornal, no dia seguinte: “ONU investiga ação do Brasil no Haiti.” O editor nos deu um alto de página. Decidimos estampar uma foto grande da menina que teve o rosto rasgado. Ela tinha a idade do meu filho: 7 anos à época.

Naquele momento, o episódio foi considerado “grave” pelo porta-voz do representante da ONU no Haiti, Edmond Mulet. No texto, notei que “a denúncia interferiu no clima da tropa brasileira, habituada a elogios feitos à sua atuação” no país caribenho. A magia trincou, mas não se quebrou. Larguei a investigação do episódio porque saí do Estadão. Anos depois, em São Paulo, reencontrei o general Rêgo Barros. De curiosidade, enviei e-mail à ONU pedindo informações sobre a conclusão do inquérito interno. Disseram não ter encontrado nada de errado na apuração dos fatos relativos à Faculdade de Etnologia.

Os casos depreciativos para ação na Minustah no Haiti só ganharam atenção mais tarde. Primeiro, por meio de histórias de abusos sexuais, relatadas por mulheres haitianas, anos depois. Depois, pela descoberta de que foram as tropas da ONU que levaram uma epidemia mortal de cólera ao Haiti, no fim de 2010.

A desmobilização das tropas brasileiras ocorreu em outubro de 2017. A operação no Haiti foi cavada por governos do PT e o know-how das tropas, de trabalhar em contextos de violência urbana, em favelas, contra milícias e gangues, foi aplicado mais tarde, sobretudo em operações do tipo GLO (Garantia da Lei e da Ordem), dentro do Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, onde Temer decretou intervenção federal em fevereiro de 2018. O presidente acidental botou um general chamado Braga Netto para comandar o negócio. Mais tarde, esse militar se tornaria candidato a vice-presidente da República na chapa de Bolsonaro, depois de ter ocupado os cargos de ministro-chefe da Casa Civil e de  ministro da Defesa. Quando interventor, ainda no Rio, dizia-se dele ser discreto e avesso aos holofotes. A cara fechada escondia a ambição de protagonismo político, como viu-se mais tarde.

É difícil dizer que no período dessa lua de mel que marcou os 13 anos da Minustah havia de fato um progresso nas relações entre autoridades civis e militares, porque mesmo avanços mais antigos, conseguidos ainda durante os anos FHC – presidente que criou o Ministério da Defesa e delegou o comando político das três Forças às autoridades civis – foram revertidos mais tarde, de maneira progressivamente daninha, primeiro com Temer, depois com Bolsonaro. O ponto é que pelo menos havia um clima melhor, de boa vontade. Talvez tenha havido muita ingenuidade envolvida também, é certo, o que se explica pelo sentimento de urgência de parte de uma nova geração que queria ver o país concluir o eterno ciclo da redemocratização. A cobertura positiva e cooperativa da Minustah era parte disso.

Mas o Haiti é uma das pernas. A outra é a Amazônia. Durante muitos anos – de forma especial nos anos Lula – o Exército foi desligando unidades militares do Sul e Sudeste para abrir novas fronteiras na floresta. O movimento obedecia à percepção de que a ameaça percebida da Argentina tinha se extinguido. A nova fronteira dos interesses ameaçados do Brasil era a Amazônia.

Alguns dos personagens chave dessa transição nunca completa e exitosa – da transição da pós-ditadura para a real democracia – estavam ligados a postos de comando no Haiti, como Heleno, Rêgo Barros e Santos Cruz. Outros, como Villas Bôas, estavam empenhados na Amazônia. Villas Bôas é o general que fez um post no Twitter em abril de 2018 com ameaças mais ou menos veladas ao Supremo Tribunal Federal, sugerindo que poderia haver um novo golpe ou coisa parecida se os juízes dessem o habeas corpus que Lula, então preso em Curitiba, tinha pedido. Os juízes não deram o que a defesa de Lula pedia. O petista não concorreu em 2018 e o Bolsonaro ganhou a eleição. Aí, Villas Bôas virou alguma coisa no mesmo GSI que estava sob comando do Heleno e todo o resto da turma haitiana subiu no bonde.

Eu conheci Villas Bôas quando ele era ainda comandante do 1º Batalhão de Infantaria de Selva. É de lá que vem o grito “selva!”, que os patriotas bolsonaristas incorporariam mais tarde, acampados na frente de quartéis Brasil afora exibindo toda sua valentia e seus perdigotos, suas panças e seus bonezinhos camuflados, além de outros apetrechos “táticos” comprados em anúncios do Instagram.

Quando conheci Villas Bôas ele ainda não estava numa cadeira de rodas acoplada às máquinas que minimizam o impacto devastador de uma doença degenerativa que o acometeu com o passar dos anos. Ainda no comando da Amazônia, ele desfilava com garbo diante de um telão no qual nos mostrava um mapa da floresta salpicado de logotipos de grandes empresas nacionais e estrangeiras que, segundo ele, eram donas ou pelo menos cobiçavam jazidas de minerais ocultas sob territórios indígenas. Pensei ter ouvido nióbio. A paranoia já estava plantada naquele tempo, mas ainda não tinha subido a rampa do Palácio do Planalto.

O mais surpreendente é que eu não estava num tipo de encontro secreto, mas numa sessão informativa pública em Manaus, numa palestra a jornalistas e estudantes de jornalismo munidos de gravadores e de blocos de anotação. Assim como ocorrera no Haiti, tínhamos todos viajado à Amazônia a convite do Exército Brasileiro, com tudo pago. Eu era membro da equipe de coordenação de um curso livre de reportagem que buscava fazer a transição entre a faculdade de jornalismo e as redações de verdade. O chamado Repórter do Futuro – o nome é horrível – foi escola de uma boa parte dos jornalistas que hoje fazem a diferença. Um dos módulos desse curso foi justamente sobre a Amazônia e a viagem a Manaus e a alguns pelotões de fronteira era parte do curso.

Mas o mais impressionante é que o Exército Brasileiro tinha se tornado parceiro dessa coisa. O módulo era feito em parceria entre os militares e uma empresa de comunicação chamada Oboré. O dono da empresa é o jornalista Sergio Gomes da Silva, um azougue comunista que passou meses como preso político, tendo sido tão brutalmente torturado nos anos 1970 que, ainda hoje, faz tratamentos médicos para amenizar os reflexos da surra de caibro que recebia nas costelas, entre outros carinhos. Os torturadores fizeram nele um curativo com durex. É um milagre que o Serjão esteja vivo porque ele não era um alvo muito diferente do Vlado, que acabou dependurado numa cela.

Era com o Serjão que o Exército do Villas Bôas fazia parceria para levar jornalistas e estudantes de jornalismo à Amazônia, mais ou menos na mesma época que levava repórteres ao Haiti. A operacionalização ficava a cargo do CCOMSEx (Centro de Comunicação Social do Exército), sediado no quartel-general da Força, em Brasília. Um dos contatos no Ccomsex nessa época era o coronel Luiz Felipe Carbonell, que se tornaria mais tarde, já na reserva, secretário estadual de Segurança Pública no Paraná, sob a gestão do governador Carlos Massa Ratinho Junior, o filho do Ratinho pai.

Eu me lembro de ter perguntado ao Serjão como era possível que o mesmo Exército que tinha se envolvido na prisão e na tortura dele estivesse agora de braços abertos, dentro da Oboré, almoçando junto, dando risada, organizando viagens conjuntas, botando o logotipo no mesmo material e o mais importante: discutindo abertamente o papel que os militares brasileiros tiveram no golpe e na ditadura. Tudo era discutido de forma franca e livre: “Por que vocês fizeram isso? Por que deram um golpe? Por que não assumem os erros, não viram a página, não fazem um plano para regenerar essa imagem, para liquidar esse passivo?”

Lembro que eu mesmo fazia essas perguntas a militares como Carbonell. O coronel era alguém que viajava ao meu lado, com quem eu conversava sobre tudo. As respostas podiam ser insuficientes, institucionais, evasivas, diplomáticas, chame como quiser, mas nós conversávamos. Não eram conversas em off, em segredo. Ele ia até onde o Exército conseguia ir. Podia ser pouco, mas era perceptível o desejo de sentar-se à mesma mesa, de cicatrizar, de encontrar um idioma possível pelo qual pudéssemos reatar. Eu não era ninguém, não representava a imprensa, mas ele via em mim esse mesmo mundo ao qual o Serjão pertence e eu via nele o mundo ao qual os torturadores do Serjão pertencem. E nós tentávamos nos alcançar.

O Sergio me dizia alguma coisa como: “Eu estou onde sempre estive, quem se mexeu foram eles.” De fato, o Serjão continuava sendo comunista, jornalista, ex-prisioneiro político. Ele não tinha se movido um milímetro do lugar que costumava ocupar nos anos 1960 e 1970. Mas o Exército tinha vindo na direção dele. E os dois tinham encontrado um lugar comum onde trabalhar.

As pontes funcionavam e apontavam em boas direções. Mas alguém apareceu com paus e pedras para destruir a pinguela precária que usávamos para nos visitar mutuamente. É difícil determinar de onde partiram esses trogloditas ou se eles sempre estiveram à espreita. Não sei se estávamos o tempo todo dormindo com o inimigo. É complicado determinar em que medida os próprios militares estavam ou não convencidos de que essa abertura, essa aproximação, era válida. Talvez tudo tenha sido um experimento fracassado, um negócio que foi tentado por uma facção modernosa, mas acabou descartado depois de uns anos. Difícil saber.

A impressão que eu tenho é de que houve um estampido forte bem na hora em que as mãos iam se tocar. As duas partes estendiam os braços muito lentamente e a muita custa e, no momento em que a ponta dos dedos médios se encostariam, explodiu alguma coisa. Todo mundo saiu correndo para dentro do mato. E aí apareceu o Bolsonaro trazendo do mangue essas pessoas, agora trajadas para uma guerra absurda.

O estampido pode ter sido a Comissão Nacional da Verdade, instituída em 2011 pela Dilma, e concluída em 2014. Não considero que a Comissão, em si, tenha sido o estouro, mas a composição dela, talvez. É possível que os militares tivessem topado uma Comissão mais neutra, se é que isso existe. Mas instituí-la no mandato de uma ex-guerrilheira foi visto como revanchismo. Já expressei esse ponto de vista a ex-membros da Comissão. Eles discordam de mim de maneira frontal, até irritadiça. Talvez estejam certos: o problema não foi a Comissão, não foi a possibilidade, ainda que muito remota, de derrubar a Lei de Anistia de 1979 e, com isso, ressuscitar de forma pública e estrondosa os fantasmas da ditadura, arrastando seus nomes e sobrenomes numa lama de infâmia.

Talvez os militares com os quais viajávamos e pensávamos conversar tão abertamente em anos recentes estivessem apenas escondendo seus próprios ruídos subterrâneos, seus ressentimentos, seu compromisso atávico com a opacidade e a truculência. Essa possibilidade me parece plausível quando me lembro do último almoço que tive com um general importante, no Clube Círculo Militar, em São Paulo. É alguém com quem simpatizo há muitos anos. Eu estava às vésperas de me mudar para Paris. Levei de presente uma biografia do De Gaulle, um herói da resistência francesa contra o fascismo. Bolsonaro já era presidente e já tinha se enroscado com Macron em desavenças. A França figurava como uma das contenções internacionais aos disparates do presidente brasileiro. O livro tinha, portanto, uma mensagem, que foi captada.

Lá pela sobremesa – pudim, da minha parte, provavelmente – meu interlocutor fez um comentário aparentemente solto: disse que já não era possível aguentar que nossas crianças fossem educadas pela Rede Globo, que há anos transmitia no horário da tarde uma série, Malhação, em que havia uma erotização precoce e relações homossexuais. Então, é isso – essas coisas estavam lá o tempo todo e, em confiança, elas apareciam na superfície, denunciando, quem sabe, que todo o esgoto que explodiu depois sempre esteve fermentando. Não foi a Comissão de Anistia, não foi algo que fizemos de errado do lado de cá, do lado dos democratas, para tentar dar um nome.

O Rêgo Barros deixou de ser porta-voz de Bolsonaro. Tentei falar com ele, assim que rompeu com o presidente, mas não deu certo. Soube que o Heleno teria interesse em conversar comigo – um outro militar, amigo em comum, me mostrou um dia uma mensagem enviada por ele, Heleno, quando já era membro do governo Bolsonaro. No textinho de celular, o general dizia ter confiança e apreço pelo meu trabalho. Mas eu não levei adiante. Talvez tenha me faltado estômago. Coisa parecida ocorreu com outro personagem, o Sergio Etchegoyen, braço direito do Temer e cabeça de ponte de todo esse desembarque militar no Poder Executivo. Trocamos mensagens. Em algum momento propus entrevista, mas os militares pareciam uma tartaruga, cada vez mais com a cabeça para dentro. Cortaram contatos com a imprensa.

De lá para cá, a história é sabida: Bolsonaro colocou um número recorde de militares em postos civis de seu governo – o TCU (Tribunal de Contas da União) contava 6.157 deles em 2020, contra 2.765 ao final do governo Temer. Os primeiros aderentes foram os generais mais velhos, da reserva, como Heleno, Santos Cruz, Luiz Eduardo Ramos e Braga Netto.

Como jornalista – então fazendo um trabalho de gênero “explicativo”, no Nexo, onde vinha trabalhando como repórter especial – eu queria determinar em que medida o protagonismo dessa turma correspondia a um embarque formal, do Exército como tal, na gestão política dos assuntos civis no Brasil. As perguntas que eu fazia às minhas fontes eram: “o Exército embarcou no governo? É um envolvimento institucional? Como separar uma coisa da outra? Isso não compromete a instituição? Não a partidariza? Não a politiza?” As respostas, sempre de bastidor, eram invariáveis: “Não. São pessoas da reserva fazendo carreira política. O Exército é uma instituição de Estado, que nada tem a ver com isso.”

Eu fui ouvindo esse papo no telefone por um longo tempo e transmitia essas respostas aos meus editores, aos donos do jornal, tal como as recebia. Fazia isso com certa incredulidade. Afinal, nenhum repórter quer ser fiador de mentiras contadas por fontes em off. Como repórter, a gente desconfia o tempo todo de tudo o que nos é dito, mas àquela altura não tinha muito como contestar; quer dizer, tinha má vontade com essa versão de um Exército despolitizado e neutro, mas não tinha uma contraprova, não tinha como confrontar a informação que nos chegava, vindo de gente muito próxima do comando operacional das Forças.

Os dados do TCU mostravam que 43% dos militares lotados na máquina governamental estavam em quadros comissionados. Tudo aquilo era muito inédito em democracia, e à primeira vista, parecia mesmo que se tratava de militares da reserva que migravam para a carreira política seduzidos por salários mais altos, por bajulação, por motorista, por carro oficial, gabinete, palácio e outros luxos e mordomias.

Esse fenômeno estava mais ou menos restrito a militares da reserva porque havia um certo pudor, além de leis que impunham distanciamento e quarentena para o pessoal da ativa. Mas, se havia mesmo algum tipo de contenção, ela não durou nada. Pazuello é um bom exemplo de mau exemplo: o sujeito assumiu em maio de 2020 o Ministério da Saúde. A justificativa era técnica: um oficial de intendência, “especialista em logística”, como alardeava o capitão-presidente, funcionaria bem à frente da pasta. Não só não funcionou como, em maio de 2021, exatamente um ano depois de ter assumido o cargo, Pazuello subiu seu corpanzil sobre um carro de som, num comício político de Bolsonaro no Rio de Janeiro, expondo ao Brasil duas excrescências: o militantismo político de um alto membro das Forças Armadas e sua péssima forma física. Ambos os fatos nos fazem pensar na leniência dos órgãos de controle militar em relação a seus membros. Aparentemente, podem tudo, pois Pazuello fez do Exército o trampolim para a carreira política, tendo sido eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro, em 2022. Ou seja: o comício com Bolsonaro era de fato um comício, o general era general da ativa, a norma proibia, mas tudo se deu com enorme deboche da imprensa, dos órgãos de controle e da opinião pública.

Se é verdade que, como diziam minhas fontes, o Exército não estava envolvido como tal no varejo da política brasileira, Pazuello deveria ter sofrido punição exemplar. Em vez disso, ele foi catapultado pela impunidade, o que contribuiu para os eventos de 8 de janeiro, em Brasília, quando outros militares – da ativa e da reserva – envolveram-se na tentativa frustrada de golpe de Estado. Como bem notou Elio Gaspari, numa de suas colunas de jornal, foi a primeira vez que o Batalhão da Guarda Presidencial falhou em sua missão de proteger o palácio presidencial. Isso nunca tinha acontecido antes, desde a Independência do Brasil.

Não vai haver uma grande mesa de debate nacional sobre todo esse tema. Ficam os militares contando sua versão de um lado e os civis, para dizer de alguma forma, produzindo seus artigos e papers acadêmicos do lado contrário. São mundos que não voltarão a se falar tão cedo. Tem um diálogo interrompido aí. No meio dele, ficam pessoas como eu, querendo reabrir uma antiga caixa com pecinhas de quebra-cabeça, chamando leitores para dar uma olhada e dizer se acham que esses encaixes formam alguma imagem que faça sentido.

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