A vida na caserna tem sua etiqueta própria. Um sargento da Força Aérea Brasileira sabe, por exemplo, que deve ter no guarda-roupa ao menos sete tipos de farda, cada um adequado a um tipo de ocasião. Há modelitos desenhados para o dia a dia no quartel, para eventos de gala, para desfiles comemorativos. Deve-se atentar para o cinto de lona, a túnica branca, a luva de pelica, o boné azul-barateia. A compra desses adereços, assim como sua conservação, é responsabilidade individual do militar. Como, no entanto, uma farda completa não sai por menos de 300 reais nas lojas especializadas, as Forças Armadas oferecem uma ajuda de custo. Todo oficial, quando é promovido ou completa três anos na mesma patente, recebe um benefício conhecido como auxílio-fardamento.
Foi assim com Jeferson Santana da Silva, um potiguar de 48 anos. Tempos atrás, quando completou três voltas ao Sol no cargo de primeiro-sargento da Aeronáutica, recebeu o dinheiro do auxílio-fardamento (o valor é equivalente ao soldo). Mais três anos se passaram, mais um contracheque caiu na sua conta. Até aí, tudo normal. Meses depois de receber esse segundo auxílio, porém, Silva foi promovido a suboficial. Esperava, com isso, receber um novo auxílio-fardamento. Não foi o que aconteceu. Em vez de 4.677 reais – o valor do soldo de um suboficial na época –, ganhou somente 888 reais. Sentiu-se lesado e recorreu à Justiça, abrindo um processo contra a Força Aérea na 3ª Vara Federal do Rio Grande do Norte.
Silva argumentou que a lei é clara: a Medida Provisória 2.215, sancionada em 2001 pelo governo Fernando Henrique Cardoso, diz que todo militar, quando promovido, tem direito ao benefício. A União rebateu o argumento, alegando que em 2002 o mesmo governo FHC baixou um decreto que impede que militares recebam dois auxílios-fardamento em menos de um ano. A ideia era tapar uma brecha da lei anterior, que permitia pagamentos duplos como o de Silva. Em vez de receber o auxílio completo pela segunda vez, ele deveria embolsar somente a diferença entre seu soldo atual e o anterior – no caso, os 888 reais.
Valores miúdos, mas o processo foi longe. Silva perdeu a disputa na primeira instância, depois apelou para a Turma Recursal e ganhou. Os juízes entenderam que a MP de 2001 continuava valendo e não podia ser sustada por um decreto. Como a União já tinha vencido processos semelhantes, recorreu então à Turma Nacional de Uniformização (TNU), pedindo que a Justiça decidisse, afinal, o que valia: se era a medida provisória ou o decreto. A TNU decidiu: valia a medida provisória. Vitória para Silva e para muitos militares Brasil afora.
Em uma última cartada, a União recorreu ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal, alegando que a TNU estava interferindo no Poder Executivo, mas a tese não colou. A decisão final veio pelas mãos da ministra Cármen Lúcia, que, em abril do ano passado, negou o recurso da União. O processo tramitou em julgado, e Silva conseguiu, finalmente, receber o segundo contracheque que tanto queria para custear as fardas.
O STF, que pode analisar somente questões constitucionais, não julgou o mérito da discussão. Mas, ao avalizar a decisão da TNU, encerrou de vez o imbróglio jurídico.
Ou assim parecia.
Casos como o de Jeferson Silva não são novidade no Judiciário. A duplicidade da lei, no que diz respeito ao auxílio-fardamento, faz com que muitos militares recorram à Justiça para tentar abiscoitar um salário extra. Quando decidiu processar a Aeronáutica, Silva contratou os serviços de Lívia Teixeira Lima, advogada de Natal que já abriu ações desse tipo para uma centena de militares. Mas nenhum caso tinha ido tão longe quanto o de Silva.
Lima pensava que agora, com o aval da mais alta Corte brasileira, não haveria razão para litígios. Estava enganada. Em 12 de maio do ano passado, um mês depois da decisão de Cármen Lúcia, circulou no Exército um memorando com a tarja “urgentíssimo”. O texto, ao qual a piauí teve acesso, é assinado pelo subsecretário de Economia e Finanças do Exército, o general de divisão João Alberto Redondo Santana, e foi enviado para diferentes repartições militares. Ele diz que, “mesmo após decisões proferidas sobre o tema pela Turma Nacional de Uniformização (TNU) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mantém-se a aplicação integral do art. 61 do Decreto 4.307/2002”. Em outras palavras, o general disse que, embora a Justiça tivesse descartado o decreto de 2002 para casos como o de Silva, o Exército continuaria a se respaldar nele e não pagaria auxílios duplicados.
Em julho, o mesmo aconteceu na Aeronáutica. Em um memorando interno, a consultoria jurídica da FAB alegou “ausência de eficácia persuasiva” na decisão da TNU, concluindo, a partir daí, que não deveria pagar o auxílio duplicado. Procurada pela piauí, a Marinha disse o mesmo: as decisões da TNU e do STF não têm o efeito de mudar a aplicação da lei.
Como o Supremo não deu propriamente uma ordem às Forças Armadas, elas não estão desacatando a Justiça. Trata-se de um drible, feito sob orientação da Advocacia-Geral da União (AGU). Os advogados do governo federal entendem que a decisão do STF diz respeito apenas a Silva e outros militares que abriram processos na Justiça. Não tem efeito erga omnes, eles dizem – isto é, não se aplica a todas as pessoas submetidas a um determinado ordenamento jurídico. Isso significa que, se o militar entrar na Justiça reivindicando o auxílio duplicado, ele vai levar a bolada pra casa. Se não entrar, não vai.
Lima, que ainda está brigando pelo dinheiro de uma dezena de outros militares do Rio Grande do Norte, considera isso um absurdo. “Se foi reconhecido pelas instâncias superiores que o decreto [de 2002] extrapolou os limites regulamentares, não há razão para que a administração militar continue aplicando esse dispositivo em prejuízo dos militares.”
No Brasil, há duas correntes de pensamento que batem cabeça nos tribunais. De um lado, os juristas que entendem que precedentes jurídicos não podem servir de fonte para o direito administrativo – ou seja, uma decisão pontual não afeta as regras que valem para todos. Do outro, os que defendem uma coerência entre as duas esferas. Para Lima, partidária da segunda corrente, é uma questão de “eficiência”. Se as Forças Armadas acatassem logo o entendimento da Justiça, não haveria “judicializações desnecessárias”, ela argumenta.
A AGU, por motivos óbvios, se filia à primeira corrente de pensamento. Em nota enviada à piauí, o órgão afirmou que a decisão da TNU – referendada pelo STF – “não vincula a Administração Militar, produzindo efeitos apenas em relação às partes que tenham instado o Poder Judiciário”. Em outras palavras: os militares insatisfeitos que processem a caserna.
Uma rápida consulta ao orçamento federal ajuda a entender a motivação da AGU. O auxílio-fardamento consumiu, no ano passado, 407 milhões de reais do Ministério da Defesa. É mais do que a pasta gastou com tecnologia da informação (90 milhões de reais), telecomunicações (53 milhões) e assistência ambulatorial e hospitalar (46 milhões), para citar algumas rubricas. Desde 2018, o auxílio custou 2,2 bilhões aos cofres públicos.
Casos como o de Jeferson da Silva, em que o pagamento do benefício e a promoção de cargo acontecem no mesmo ano, são excepcionais. Individualmente, não fazem cócegas no orçamento do governo. Mas, considerando que o Brasil tem hoje 360 mil militares na ativa, a soma de casos excepcionais acaba pesando nos cofres da Defesa.
A AGU afirma não ter uma estimativa de quanto seria gasto caso o pagamento duplicado do auxílio-fardamento se tornasse regra, mas diz que já respondeu a cerca de 1,4 mil ações judiciais similares à de Silva. Se todos esses processos envolvessem a mesma cifra (4.677 reais), estariam em disputa aproximadamente 6,5 milhões de reais do erário. A piauí encontrou litígios dessa natureza em tribunais de ao menos onze estados brasileiros.
Procurado pela piauí, o gabinete de Cármen Lúcia não comentou a decisão da ministra nem a reação da União. Jeferson da Silva, pivô dessa pequena crise da República, hoje na reserva da Aeronáutica, não quis ser entrevistado.