Fazer análises no calor dos acontecimentos é sempre um desafio: as chances de deixarmos passar variáveis importantes são enormes. Todavia, aceitando o risco, o Sete de Setembro de 2021 será lembrado por muitos anos pela tentativa de Jair Bolsonaro de sair das cordas institucionais e transformar sua força, que não é pequena como muitos julgam, em energia e capacidade de imposição de um regime antidemocrático. O ambiente político-institucional, que já era tenso, entrou na fase do imponderável, quando qualquer vento mais forte pode virar um furacão que abale os precários pilares da democracia brasileira.
Entre as correntes de ar que podem provocar tal furação, as polícias, sem dúvida, compõem aquela que ganhou contornos dramáticos nas últimas semanas ao constatarmos que parcelas significativas sobretudo de PMs do serviço ativo interagem em ambientes bolsonaristas radicalizados. O risco de essas parcelas serem abduzidas para teses golpistas foi mapeado e analisado. E gerou múltiplas e, por vezes, indignadas reações.
Contudo, se considerarmos os desdobramentos político-institucionais da ação das polícias no Sete de Setembro ocorridos até a publicação deste artigo, felizmente veremos que os alertas disparados pela mídia e por analistas de diferentes segmentos e matizes democráticas parecem ter contribuído para a autocontenção e para o isolamento do radicalismo político entre os integrantes da ativa de tais corporações.
Mas, a meu ver, essa não é a grande novidade desta crise. Aqui, o que houve foi mais um capítulo de adaptação e fortalecimento das polícias, de que falarei mais adiante. Por ora, a novidade ficou por conta de uma postura proativa dos Ministérios Públicos, inclusive nos seus ramos militares, na cobrança de respeito incondicional das regras do jogo e da institucionalidade.
O MP, de forma incomum porém resoluta, buscou reduzir a discricionariedade e a autonomia das polícias militares, indicando que qualquer leniência seria objeto de investigação e responsabilização dos comandos e dos policiais. O problema saiu do terreno das condutas individuais para se transformar em problema institucional.
Pelo confuso modelo constitucional de governança e controle das polícias do país, os Ministérios Públicos estaduais acabam por focar sua atenção prioritária nos aspectos de conduta individual dos policiais e não cobram a existência de métricas, manuais e procedimentos que possam servir de baliza para a avaliação das instituições policiais. E, quando tais instituições não são escrutinadas por nenhum outro órgão público, ou quando têm seus padrões operacionais aceitos, reforçam-se níveis elevados de autonomia das polícias sobre a definição de seus próprios mandatos e interpretações acerca de lei e ordem.
Se é verdade que o MP não pode dizer como uma operação policial será realizada, ele pode cobrar protocolos que digam como isso será feito e, posteriormente, fiscalizar o cumprimento das normas e regulamentos. É isso que foi feito nos últimos dias.
Diante das pressões dos Ministérios Públicos e do despertar dos governadores para a urgência de assumirem o comando político da situação, as polícias mostraram um nível de competência técnica altíssimo no controle de manifestações e distúrbios civis (com exceção da ainda mal explicada liberação da Polícia Militar do Distrito Federal para que manifestantes dessem uma “voltinha” na Esplanada dos Ministérios na noite do dia 6).
E isso explica algo para que o antropólogo Roberto Kant de Lima chama atenção desde os anos 1980: o fato de que padrões de ética policial e judicial orientadores do comportamento da polícia e da Justiça no Brasil não são conformados pela lei ou por qualquer tipo de norma institucional explícita, como protocolos. Kant de Lima é professor da UFF (Universidade Federal Fluminense) e um dos decanos nos estudos sobre administração de conflitos no Brasil e na criação de cursos para policiais nas universidades públicas. Segundo sua análise, os padrões de ética policial, que não são homogeneamente definidos no meio policial, são tornados explícitos apenas quando têm lugar situações ruidosas envolvendo agentes dessas instituições. E nada mais ruidoso do que a explicitação de que 1/3 dos policiais militares com perfis em redes sociais interagem em ambientes bolsonaristas radicais. Para o antropólogo, a “ética policial” serve de fundamento para o exercício de uma interpretação autônoma da lei e como tal imprime à aplicação desta uma característica peculiar, própria das práticas policiais.
O conceito de ética policial de Roberto Kant de Lima pode ser usado, portanto, para sustentar o argumento de que os padrões éticos das corporações fazem com que os critérios de policiais para a atuação institucional constituam um “código de honra”, a que todos os policiais são forçados a obedecer e a fazer obedecer ao lidarem com criminosos, administrarem ordem pública ou em suas disputas internas. Uma ética definida relacionalmente e como balizadora dos rumos a serem seguidos.
Entretanto, como efeito associado, um ethos corporativo avesso à responsabilização dos agentes públicos potencializado pelo bolsonarismo tem ganhado força e justificado a afirmação que fiz, provocativa por certo, de que cerca de 120 mil policiais estariam convertidos para “discursos golpistas e autoritários, que aceitariam rupturas institucionais sem maiores constrangimentos éticos ou morais”.
Em suma, enquanto temos que conviver com o galope golpista de Bolsonaro, a “setembrada”, como a piauí apelidou a atual crise, revelou a enorme capacidade de adaptação das polícias aos ventos da política. Não à toa, minha leitura é que o dia termina com as polícias militares fortalecidas pela eficiência técnica na gestão de multidões ensandecidas, o que as faz credoras de maiores atenções dos governadores, e, ao mesmo tempo, pela convergência de visões de mundo com o universo bolsonarista — o que as recoloca como as grandes fiadoras da ordem social.
Se a ação do MP e a disposição dos governadores forem passageiras, a excessiva autonomização das polícias e o seu consequente insulamento – prejudiciais às próprias corporações – sairão reforçados. Por isso, o esforço é o de jogar luz sobre a importância de ter, em democracias, mecanismos mais robustos de prestação de contas e responsabilização (accountability) do poder de polícia.
O Sete de Setembro mostrou, em conclusão, o anacronismo do sistema de governança das polícias no Brasil. Mais que isso: em situações como a que estamos vivendo, com sucessivas tentativas de cooptação dos policiais pelo bolsonarismo, explicitou a urgência de um projeto de reconstrução democrática do país que, efetivamente, encare uma reforma das polícias não como vingança ou revanche, mas como oportunidade de virarmos a página do obscurantismo e valorizarmos polícias modernas, capazes de garantir direitos que conformam a ordem social inaugurada em 1988.