Imagem: Choque Photos
A vida é um palco iluminado. E eu vivia vestido de doirado, palhaço das perdidas ilusões. Muito da obra poética do Orestes Barbosa letrista apóia-se sobre a denúncia romântica das aparências ilusórias. Há um jogo contínuo entre verdade e mentira, fundo e superfície. O paradoxo é que tal verdade só pode ser apreendida pelo reflexo fugidio da aparência. As imagens mentem – mas é preciso passar por essa mentira para se ter acesso à verdade. O mundo revela-se de modo indireto, rebatido em superfícies. O olhar jamais é direto, desimpedido, mas sempre mediado por alguma película, algum impedimento leve que não chega a bloqueá-lo. A musa suburbana da canção homônima revela seu sorriso por trás da veneziana. Em outro marcante momento do letrista, a quem Mário Lago definia como o “cenógrafo do samba”, o interior do apartamento elegante é dominado por lindos biombos ornados de crisântemos doirados. Nada mais distante do design limpo, com móveis “pé-de-palito”, que seria a marca dos modernos apartamentos a partir dos anos 1950. Ainda assim, os biombos mantém a lógica da semi-transparência, de membranas que separam sem isolar – a lógica romântica do acesso indireto, ou seja, do símbolo. A linguagem é um meio insuficiente na tentativa de representar a verdade, o absoluto, que ela cerca tateantemente, de forma fragmentária. Na clássica Chão de estrelas, a lua fura o telhado de zinco para salpicar de estrelas o chão do barraco – abrindo assim um caminho verossímil (pois as estrelas literalmente estão projetadas no piso) para o impressionante tu pisavas nos astros distraída, sem saber que a ventura dessa vida é a cabrocha o luar e o violão – a ousada rima interna, convergência perfeita de fato semântico com fato fonético, combinando-se inusitadamente com a velha e batida trinca das noites de serestas (cabrocha, luar, violão); muito avançado e muito mofado.
Do mesmo modo, na preciosa Óculos escuros, a verdade (sempre triste) só pode ser revelada depois que os olhos são cobertos pelo objeto que dá título à música. É no momento em que a musa tenta disfarçar seu sentimento que o narrador pode melhor flagrá-lo, obter uma rápida revelação, num dos versos mais bonitos de nossa música: teus óculos escuros colocaste, e me fitaste, tentando assim o pranto disfarçar. Mas eu vi pelo vidro enfumaçado, do outro lado, o cristal de uma lágrima rolar. Aqui, a melodia miúda de Valzinho, discreta e nuançada, traz uma atmosfera de delicada nostalgia para os versos de Orestes. É uma das letras menos rebuscadas de sua lavra, simples e direta, sem imagens gongóricas, sem escorregões passadistas, perfeita. A presença dos óculos escuros trazem um inequívoco charme moderno. Não à toa seria recriada pelo “príncipe da sutileza”, Paulinho da Viola. Mais uma vez, o disfarce faz parte da própria revelação. Talvez por conta disso Orestes seja um exímios criador de imagens poéticas, ainda que teime constantemente em denunciá-las como ilusórias. Em Imagens – que revela a consciência que ele tinha delas – a lua é gema de ovo no copo azul lá do céu, e o beijo é fósforo aceso na palha seca do amor. Como escreveu Carlos Rennó, “raramente no âmbito da palavra cantada o sentido plástico impregnou tanto o conjunto de uma obra”.
Algumas vezes, contudo, as imagens saem do controle. Deixam de ser mediadoras, tornando-se mais reais do que a realidade; tornam-se alucinações. Na grande época do samba-canção, em torno dos anos 1940-50, compositores exploraram o viés alucinatório do sofrimento amoroso. Mas nenhum com tanto brilho e inventividade quanto Orestes Barbosa. A mulher que ficou na taça talvez seja o exemplo mais eloquente dessa tendência em sua obra: a sombra colorida da mulher sendo projetada no cristal lento e sedento do copo; o embriagado amante sorvendo o líquido (absinto?) como se pudesse com isso afogar a visão; a miragem se agigantando assustadoramente em todas as dimensões da existência, numa alucinação total: Quanto mais bebida eu ponho, mais cresce a mulher no sonho, na taça e no coração. Uma canção impressionante. Mas ainda mais interessante, nesse sentido, é Arranha-céu, parceria de Orestes com Sílvio Caldas. Nela, o aparato romântico do letrista, que nasceu no fim do século XIX (1896), é posto a serviço de um personagem novo: a cidade moderna.
É fascinante o modo como Orestes enquadra a excitabilidade contínua do novo ambiente metropolitano – marcado por vitrines, letreiros, luzes artificiais – com a velha lente romântica: Nesses delírios nervosos dos anúncios luminosos que são a vida a mentir. As ilusões ganham novo alcance num espaço urbano que se oferece cada vez mais ao olhar como imagem de superfície, como “mentira”, como um espetáculo – que nada mais é do que o “monopólio da imagem”, nas palavras de Guy Debord. Do alto de um arranha-céu o narrador observa as luzes da cidade, enquanto aguarda – cansado de olhar as reclames – sua amada ser trazida (ou não) pelo elevador, o sobe-e-desce mecânico servindo como metáfora dos momentos de expectativa e frustração que embalam a espera amorosa. As imagens modernas são sentidas romanticamente: são delírios nervosos, mentira; mas não há mais nada por trás delas. Trata-se do cruzamento de dois mundos distintos, enquadrado a partir do lirismo plástico de Orestes. A partir de então, cada vez mais ficariam borradas, na experiência urbana, as fronteiras entre verdade e ilusão, imagem e realidade.