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    Da esquerda para a direita, a assessora Christiane Corrêa e o ministro Marcos Pontes ao lado de participantes de evento no Ministério da Ciência e Tecnologia: sociedade chegou ao governo - Foto: Divulgação MCTI

questões de poder

As incríveis aventuras do ministro-astronauta

Pontes nomeou para cargo de confiança sócia com quem mantém rede de empresas para venda de bonecos, livros, palestras motivacionais e viagens ao espaço

Marta Salomon | 30 out 2020_14h51
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A oportunidade de ver com os próprios olhos que a Terra é redonda, num passeio até a estratosfera, é uma das experiências que a Marcos Pontes Aventuras Incríveis, agência de turismo do ministro-astronauta, oferece a bordo de um caça supersônico MIG-29 na Rússia. Quem se dispuser a pagar 33,3 mil dólares pelo voo de 45 minutos terá direito, segundo documento sobre opções de pacotes de viagens, a um “briefing” do ministro da Ciência e Tecnologia e a um certificado assinado por ele. A passagem aérea para a Rússia não está incluída no preço.

Marcos Pontes continua sócio da agência de turismo de aventuras e da Portally Serviços e Comércio de Artigos Diversos, duas empresas que integram uma rede maior de CNPJs montada em torno da fama do primeiro brasileiro a ir ao espaço. Pontes também levou sua sócia, Christiane Gonçalves Corrêa, para a equipe do ministério. Não há impedimento legal a que um ministro mantenha negócios privados ou leve um sócio para trabalhar a seu lado no governo. 

Só em diárias para acompanhar o ministro em viagens de trabalho, pagas a Christiane Corrêa pelo contribuinte, o Portal da Transparência registrava, até 23 de outubro, gastos de 266,6 mil reais. Esse dinheiro seria mais do que suficiente para pagar, mesmo com o dólar em alta, pela experiência de desfrutar de uma “bonita visão da curvatura terrestre”, anunciada pela agência de turismo do ministro e sua assistente.

Na foto de apresentação da empresa de turismo de aventura, em sua página na internet, a sócia aparece ao lado de Pontes. Ela também estava ao lado dele na entrevista em que o ministro comentou detalhes dos testes clínicos com o vermífugo nitazoxanida no enfrentamento de casos precoces do novo coronavírus, no sábado, 24. Os testes clínicos mostraram não haver diferença na redução dos sintomas após cinco dias de terapia entre os voluntários que tomaram o remédio e os que tomaram um placebo, mas a propaganda estava feita, com respaldo do Palácio do Planalto.

A presença de Christiane Corrêa ao lado de Pontes é constante. Mesmo sem ser fluente em inglês ou espanhol, segundo informa seu currículo acadêmico na plataforma Lattes, a sócia fez companhia ao chefe em viagens aos Estados Unidos, Índia, China, Israel e Espanha. Também visitou a Antártica, em julho de 2019.

Por integrar a comitiva do ministro em missão oficial à França, Áustria, Emirados Árabes, Catar e Suíça, “com o objetivo de participar de reuniões com autoridades governamentais das áreas de ciência, tecnologia e inovação, com dirigentes de instituições de pesquisa e com representantes de empresas inovadoras”, na segunda quinzena de junho de 2019, a assessora recebeu 52,4 mil reais em diárias. Christiane Corrêa não esclareceu à piauí qual teria sido sua participação nesses eventos.

 

Duas semanas depois de ter a indicação para ministro anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro, Pontes transferiu a administração da agência de turismo de Christiane para um terceiro sócio, Marcos Palhares, que também é conselheiro da Fundação Astronauta Marcos Pontes e “palestrante motivacional” como o ministro. Tanto Pontes como Christiane mantiveram direito a pró-labore mensal da agência. Eles detêm, juntos, 70% das ações da empresa de turismo.

A sócia transferiu-se para Brasília com Marcos Pontes, em janeiro de 2019; e, antes de terminar o primeiro mês do governo Jair Bolsonaro, já fazia sua primeira viagem internacional a Israel. Inicialmente nomeada assessora especial do ministro, Christiane foi promovida em 11 de setembro deste ano a secretária de Articulação e Promoção da Ciência  – cargo de confiança nível seis, o mais alto no governo federal, com direito a salário de 16.944,90 reais. Essa secretaria não existia até então. 

Um decreto editado por Bolsonaro exige, nas nomeações para os níveis mais altos de cargos de confiança, experiência mínima de cinco anos em atividade correlata ou três anos em outro cargo de confiança, ou, ainda, mestrado ou doutorado. A sócia do ministro é graduada em Comunicação Social e habilitada a exercer a atividade de relações públicas. Questionada sobre qual dos requisitos mínimos para ocupar o cargo ela preenchia, Christiane não respondeu à piauí. Consultada, a Controladoria Geral da União (CGU) informou que não deve permanecer no cargo em comissão ou função de confiança pessoa que não preencha os requisitos definidos no decreto 9.727, de 2019. A nomeação foi assinada pelo chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto.

Com base em dados da Receita Federal e em consulta a documentos arquivados na Junta Comercial de São Paulo, é possível identificar Christiane como sócia de quatro empresas que levam o nome do ministro ou têm parentes dele como sócios. A pedido da piauí, a consultoria de inteligência de dados Lagom Data traçou a teia de relações empresariais que envolve o ministro Marcos Pontes, Christiane Corrêa e familiares de ambos.

Pontes (de amarelo) e a equipe da agência de turismo; Christiane está de camiseta rosa – Foto: Divulgação

 

Além da Agência Marcos Pontes de Turismo de Aventuras Ltda e da Portally Eventos e Produções Ltda, que ainda têm Pontes entre os sócios, a rede de empresas inclui a Marcos Pontes Engenharia e Eventos Ltda e a Chris McHilliard Editora Ltda. Pontes saiu das duas últimas empresas em 2012, deixando como sócias em seu lugar a mulher, Francisca de Fátima Cavalcanti Pontes, e a filha, Ana Carolina Pontes. Christiane mantém-se sócia das quatro empresas. A assessora Christiane Corrêa foi questionada pela piauí sobre suas atividades empresariais, mas não respondeu às perguntas. Pontes tampouco quis comentar.

Enquanto a agência de turismo oferece pacotes exclusivos no espaço, na terra, no ar e no mar, a Portally Eventos e Produções cuida do comércio varejista de suvenires. A agência de turismo também oferece palestras motivacionais de Marcos Pontes, temporariamente suspensas. A página na internet dá acesso à loja da Fundação Astronauta Marcos Pontes, a astroshop, onde são oferecidos bonecos Marquinhos, chaveiros, relógios com o nome de Marcos Pontes estampado e exemplares dos livros É possível, Missão Cumprida, Caminhando com Gagarin e O céu não é o limite, entre outros escritos por Pontes e editados pela Chris McHillard Editora.

As propostas de orçamento de viagens são assinadas pelo próprio Marcos Pontes. “Seja bem-vindo à minha Agência para Turismo de Aventuras, ou, como eu gosto de dizer, aventuras para a vida. Tenho certeza que sua vida será outra depois dessa experiência”, diz a mensagem que antecede as opções de pacotes.

Voar num caça subsônico por aproximadamente meia hora custa entre 10,2 mil dólares, na Eslováquia, e 14,5 mil dólares, na Suíça, sem exigência de brevê. Na Rússia, a agência oferece voos de 45 minutos, com direito a manobras de combate, acrobacias e subida à estratosfera, no caça supersônico MIG-29. O pacote mais caro sai por 33,3 mil dólares. A proposta de “investimento” inclui ainda uma opção de acompanhamento do astronauta Marcos Pontes, ao custo de 15 mil dólares a diária, mais refeições, passagens e hospedagem.

Pontes não é o primeiro ministro do governo Bolsonaro com atividade empresarial paralela. Em fevereiro deste ano, a Comissão de Ética Pública do Planalto arquivou denúncia contra o secretário especial de Comunicação Social, Fabio Wajngarten, por suposto conflito de interesse pela posse de 95% das ações da FW Comunicação & Marketing. A empresa recebia dinheiro de emissoras de tevê e agências de publicidade contratadas pelo governo federal.

Pontes foi ao espaço em 2006 e, no mesmo ano, o então tenente-coronel passou à reserva. Em 2007, foi alvo de um inquérito policial militar para apurar o exercício ilegal de comércio, prática proibida a militares, enquanto estava na ativa. Em agosto de 2018, o Supremo Tribunal Federal considerou prejudicado um recurso do Ministério Público Militar para levar adiante a quebra dos sigilos bancário e fiscal do astronauta, porque o eventual crime já havia prescrito.

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