Um dos responsáveis remotos pela existência deste blog é o professor Gonçalves, que durante muitos anos lecionou Português no Colégio Padre Antônio Vieira, ali no Humaitá. Gonça, como o chamávamos em off e ele fingia não saber, era um zagueiro cadeirudo e esforçado nas peladas de sábado no estreito e comprido campinho da escola, mas batia um bolão de segunda a sexta em suas aulas. Filho de portugueses, torcia para o Vasco, gostava de autores clássicos, nos torturava com algum José de Alencar – creio que mais por obrigação curricular do que por gosto – e era fã de carteirinha de Machado de Assis. As lições de regência e concordância,que teimo em desrespeitar a cada post, os belos livros que ele indicava e o apuro nas redações que nunca deixou de exigir estão na origem do blog.
Entretanto, o Colégio Padre Antônio Vieira não era feito só de professores Gonçalves. Por um ou dois anos, tivemos aulas de Ciências com uma figuraça chamada Canindé. Pele morena, olhos miúdos, bigode fino e cavanhaque ralo, conjunto que o deixava parecido com Toshiro Mifune em , Canindé era impaciente, desleixado e estava se lixando para o fato de os alunos aprenderem ou não. Quem quisesse, que se esforçasse; quem não quisesse, que se danasse.
A primeira aula depois de uma prova, quando o professor Canindé cantava as notas de cada um de nós, era uma algaravia. Boa parte da turma recebia o que ele chamava de “comparecimento”. Significava que, por ter feito a prova e para não perder de zero, o aluno ganhava nota 1. Pedro Assinger: comparecimento! Ricardo Cerrone: comparecimento! Roberto Assaf: comparecimento! Jorge Murtinho: comparecimento! Depois, para explicar em casa, o bicho pegava. Apesar do Padre Antônio Vieira ser um colégio de ricos, as famílias dos quatro citados eram de classe média e eles estavam lá às custas de enormes sacrifícios por parte de seus pais. Mas, na hora, nos divertíamos.
Igual a todas as anteriores, a Copa do Mundo de 2014 está cheia de seleções padrão comparecimento. Não dá para escrever posts específicos sobre elas – nem eu conseguiria, nem ninguém teria o menor interesse em ler. São seleções que, num dia de surpresa absoluta, até podem atrapalhar um ou outro bicho-papão, mas nada além disso.
A Austrália, por exemplo, pratica um esporte que deve ser considerado, no máximo, parente distante do futebol. E ainda caiu no grupo em que estão Espanha, Holanda e Chile. É verdade que na Copa de 2006 conseguiu chegar às oitavas, quando perdeu para a Itália por um a zero, gol de pênalti inventado já nos acréscimos. Mas esse ano, e nesse grupo, não tem escapatória. Comparecimento.
A Colômbia foi uma das maiores decepções da história das Copas. Aconteceu em 1994. Depois de, nas eliminatórias, golear a Argentina em Buenos Aires por cinco a zero, com show de Rincón, Valderrama e Asprilla, desembarcou nos Estados Unidos com uma tremenda marra, só que sequer passou da fase de grupos. E a coisa acabou mal, com direito a assassinato do zagueiro Escobar, que fizera um gol contra na derrota por dois a um para os donos da casa. Esse ano a Colômbia vinha novamente com um certo gás, mas a lesão de Falcão Garcia dá adeus às ilusões. Está num grupo fraco e que permite sonhar (Grécia, Japão e Costa do Marfim), mas não tem como ir além das oitavas. Comparecimento.
Honduras encara sua terceira Copa do Mundo, Costa Rica a quarta. Nenhuma vantagem nisso, já que disputam as eliminatórias com adversários que precisariam suar sangue para se manter na segunda divisão do Campeonato Carioca. É duro ter que aceitar que Honduras e Costa Rica estejam na Copa, e o Ibrahimovic não. Comparecimento.
E o que dizer do Irã, com sua escalação que remete a O Livro dos Mandarins, em que Ricardo Lísias achou mais simples batizar todos os personagens que vivem no Sudão com o mesmo nome: Omar Hasan Ahmad al-Bashir? Acredito que o Irã veio ao Brasil só para reclamar pessoalmente do decote da Fernanda Lima e, se essa acabar se transformando na Copa mais zebrada da história, acertar algumas contas com os Estados Unidos nas quartas de final. Mas nenhum dos dois estará lá.
Por fim, o Equador. Um dos maiores ídolos da seleção equatoriana é o Erazo, zagueiro do Flamengo. Dispensa-se qualquer comentário. Comparecimento.
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