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    ILUSTRAÇÃO DE PAULA CARDOSO

questões artísticas

Ascensão e queda de um ex-Van Gogh

Tela do Masp atribuída ao pintor holandês tem autoria revista e inspira debate sobre valor artístico

Amanda Nogueira | 20 out 2019_10h11
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Por mais de um século, a tela Natureza-Morta com Prato, Vaso e Flores (1884-1885) teve a vida de um quadro de Vincent van Gogh (1853-1890). Foi paparicada, admirada e tornou-se uma das obras do mestre holandês no acervo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp). Sua chegada ao Brasil, em julho de 1954, foi notícia no vespertino Diário da Noite, jornal dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, criador do museu. Uma festa no salão da biblioteca do Palácio Itamaraty, no Rio de Janeiro, recepcionou o Van Gogh e outras obras adquiridas pelo Masp na mesma época, como esculturas em bronze de Degas. O ministro das Relações Exteriores, Vicente Rao, apresentou as peças a governadores, diplomatas, parlamentares, “cavalheiros e damas”, em meio a discursos e um “fino buffet num ambiente de elegância e intelectualidade”, narrou o Diário da Noite. 

Nos anos 1970, Natureza-Morta mereceu um dos cavaletes de vidro projetados por Lina Bo Bardi. Antes de serem substituídos por paredes em 1996, os suportes cristalinos permitiam que as obras fossem exibidas como se flutuassem no saguão. Assim, o visitante primeiro olhava os quadros, entre eles a natureza-morta com um prato branco, um vaso azul e flores cor-de-rosa. Depois, no verso do cavalete, verificava o autor. A ideia era primeiro apreciar a obra, para depois saber sua autoria. Já no século XXI, o óleo sobre tela com 2 cm de profundidade, 45,50 cm de largura e 54 cm de altura integrou a mostra Passagens por Paris: Arte Moderna na Capital do Século XIX, em cartaz de 2013 a 2015 no Masp. As 51 obras foram organizadas em blocos no segundo andar do museu, dedicado à coleção permanente. A sequência começava com pinturas de Degas, passava por Renoir, Manet e Cézanne até chegar a Van Gogh e suas andanças pela capital francesa. Lá estava o quadro do vaso azul.

É certo que ele nunca teve a projeção de outras obras de Van Gogh pertencentes ao próprio Masp, como A Arlesiana (1890) e O Escolar (1888), que retratam personalidades que o pintor conheceu na cidade francesa de Arles. Era um Van Gogh menor, mas sempre um Van Gogh. 

A história desse quadro começou a mudar em 2016. O Masp negociava emprestar O Escolar para uma exposição que seria realizada em 2018 pelo Museu Van Gogh em Amsterdã. Autoridades da instituição brasileira receavam que a obra estivesse frágil demais para viajar. A solução foi convidar uma restauradora do museu holandês para vir ao Brasil avaliar as condições das peças, e a instituição estrangeira mandou também sua curadora. Era uma oportunidade inédita para o Masp avalizar sua pequena coleção de Van Gogh. As especialistas analisaram as obras sem suas molduras e sob microscópio no estúdio de conservação. Coletaram amostras para determinar o conteúdo das camadas inferiores e identificar pigmentos comparando-os com informações obtidas em obras autênticas. Natureza-Morta viajou para Amsterdã de carona com O Escolar. As duas obras permaneceram na Holanda entre março de 2018 e maio deste ano.

Em julho do ano passado, veio a resposta sobre a natureza-morta: “Na nossa opinião, essa não é uma obra autêntica de Vincent Van Gogh”, escreveu Marije Vellekoop, chefe de coleção e pesquisa do museu holandês, em e-mail ao diretor-artístico do Masp, Adriano Pedrosa. “Tendo sido possível analisar Natureza-Morta com Prato, Vaso e Flores em nosso museu, podemos apenas concluir as rejeições acima, em primeiro lugar baseado nas consideráveis discrepâncias estilísticas entre sua pintura e as naturezas-mortas do período de Van Gogh em Paris, data historicamente atrelada à pintura”, diz o parecer.

Os técnicos do Museu Van Gogh concluíram que as flores retratadas pelo artista nessa mesma época podem ser caracterizadas por pinceladas vívidas, detalhes de impasto (uso de camadas espessas de tintas para criar texturas) e um foco nos efeitos colorísticos, enquanto Natureza-Morta foi pintada de maneira mais branda e em cores naturalistas suaves. “Além disso, o uso da espátula para pintar as pétalas das flores no canto inferior direito e em outros lugares não é típico de Van Gogh, cujo uso do instrumento é escasso e não foi encontrado em outras flores de natureza-morta.”

Ainda que os argumentos não sejam categóricos, não restou outra opção ao Masp a não ser concordar que os tons do quadro são mais sóbrios, e as pinceladas, mais comedidas do que seria esperado. “Na discussão de autoria sempre vai ter quem concorde ou discorde, é muito mais uma questão de quem o Masp escolhe para ser a autoridade nesse assunto”, explica Cecília Winter, responsável pelo núcleo de acervo, conservação e restauro do museu brasileiro. “O Museu Van Gogh, no caso, é a autoridade máxima. Do mesmo jeito que aqui, quando a gente vai dar um título a uma obra do [Candido] Portinari, a gente consulta o Projeto Portinari.”

Diante da autoridade do museu que leva o nome do mestre holandês, o Masp retirou o nome que se destacava no campo de autoria. Desde julho do ano passado, a natureza-morta admirada no cavalete de vidro, exposta no Itamaraty, tornou-se um ex-Van Gogh. Em seu site, o Masp informa que o quadro já foi atribuído ao holandês, mas agora é de autor desconhecido.

 

Incertezas sobre autoria pairam sobre o quadro desde os anos 1970, quando ele foi excluído da terceira edição do catálogo raisonné (que reúne a obra completa de determinado artista) de Van Gogh. Logo após a primeira edição da publicação, o autor do catálogo, o holandês Jacob Baart de La Faille, descobriu um esquema de falsificações de Van Gogh. De La Faille lançou o suplemento Os Falsos Van Gogh, reunindo 176 obras inautênticas – mas Natureza-Morta não estava entre elas.

Com a morte de De La Faille, os editores da terceira edição do catálogo suprimiram o quadro. Os motivos para tal revisão não foram revelados, mas, a partir de então, a tela ficou fora dos principais índices de Van Gogh e da quarta edição do catálogo raisonné, publicada pelo historiador da arte Jan Hulsker em 1978. Em uma carta enviada ao Masp em 1977, Hulsker perguntou a Ettore Camesasca, colaborador do museu paulista na gestão de Pietro Maria Bardi, sobre a existência de oito Van Gogh que um parente seu teria visto na instituição. Camesasca, autor da ficha técnica e do histórico dos principais quadros do Masp, respondeu que o Masp contava apenas com cinco Van Gogh, Natureza-Morta entre eles. Sobre Natureza-Morta, afirma ser “aquela [obra] que Van Gogh pintou em Nuenen [na Holanda], naquele inverno de 1884 e 1885, sob a influência de mestres holandeses do século XVII, de acordo com a opinião de De La Faille”. “Pode parecer estranho se comparada com as que Van Gogh pintou em Paris em 1886, então ficamos com a opinião de De La Faille.” 

O historiador de arte Felipe Martinez, autor de uma dissertação de mestrado sobre as obras de Van Gogh no acervo do Masp, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp em 2015, diz que o quadro não foi pintado na Holanda, e sim em Paris. Segundo ele, o mestre holandês pintou muitas naturezas-mortas entre 1886 e 1888, durante sua estadia parisiense, e diz que a tela seria desse período. “Em uma das poucas cartas da época que sobreviveram, o pintor diz à sua irmã que estava pintando flores para treinar o uso da cor. Elas também tinham um propósito comercial, já que Vincent buscava criar gêneros mais vendáveis.” Martinez afirma que Natureza-Morta pertenceu a um cliente da Goupil & Cie, empresa de comércio de obras de arte em que Theo van Gogh trabalhava, e que, no começo do século XX, já depois da morte do artista, foi vendida por 270 francos. A Vinha Encarnada (1888), único quadro de que se tem notícia de que o artista teria vendido em vida, custou 400 francos. 

Luciano Migliaccio, curador-adjunto do Masp, também traz algumas pistas para reconstituir o percurso do agora ex-Van Gogh. Segundo ele, depois da morte do pintor holandês, uma grande galeria parisiense, a Bernheim-Jeune, organizou, em contato com a viúva de Theo, a primeira exposição post mortem de Van Gogh. Natureza-Morta teria sido adquirida pelo Barão Blanquet de Fulde, um importante colecionador. Depois disso, em 1907, a casa de leilões Hôtel Drouot vendeu a tela a Leon Oronsdi, colecionador reconhecido no círculo parisiense pelas obras de pintores impressionistas e de vanguarda. Oronsdi, por sua vez, vendeu a tela a um alemão chamado Reber, que teria exibido o quadro pela primeira vez ao público em uma exposição em 1912. Reber vendeu a obra ao marchant nova-iorquino Knoedler, de quem o Masp a adquiriu em 1954 por 4,5 milhões de cruzeiros (cerca de R$ 3 milhões), graças a uma doação de Ricardo Fasanello. “Podemos reconstruir todo o percurso do quadro. É bem documentado, sempre passou pela mão de colecionadores importantes. É possível que todos comprassem algo falso sem ter a mínima dúvida sobre essa obra?”, questiona Migliaccio. “Sempre foi tratada como um Van Gogh, inclusive por colecionadores e galeristas que entendiam do assunto.”

Os especialistas do Museu Van Gogh afirmam que a proveniência relativamente precoce do quadro não é garantia de autenticidade, já que são muitas as obras erroneamente atribuídas ou falsificações claras descobertas a partir de 1900. Mas perder um Van Gogh dói um pouco, e os historiadores brasileiros rebatem. “As razões principais para a rejeição da atribuição são de natureza estilística e estão baseadas no olhar dos especialistas, que julgaram a obra estranha ao estilo do pintor. De fato, ela não faz pensar nas pinturas mais famosas de Van Gogh, mas é bom lembrar que os anos de Paris são marcados por intensa experimentação e variação”, diz Martinez. “Se a pintura não foi feita por Van Gogh, deve-se a um erro de atribuição não só de De La Faille, mas também da galeria Bernheim-Jeune.” 

“A atribuição de autoria de um quadro se constrói a partir de diversos elementos”, afirma Migliaccio. “Os especialistas do Museu Van Gogh acham que estilisticamente o quadro não é da qualidade que se esperaria de um Van Gogh. A gente pode concordar e dizer que de fato não é um dos quadros mais belos. Apresenta características que colocam dúvidas sobre a técnica usada, mas a gente não pode ignorar outros argumentos. O quadro tem uma descendência”, diz. Migliaccio, assim como Martinez, afirma ser comum que pintores alterem seu estilo ao longo da vida. Ambos, no entanto, concordam que a decisão do Masp em revisar a autoria é, mais que compreensível, prudente.

O debate sobre a autoria de peças fomenta o debate e a pesquisa da história da arte, mas também impacta valores comerciais das obras, ainda que estas pertençam a museus. No caso de Natureza-Morta, as dúvidas eram antigas, e a casa de leilões Sotheby’s se recusou a orçar a obra após ela ter sido retirada do catálogo raisonné de Van Gogh. A última estimativa foi feita pela Christie’s em 2017, avaliando Natureza-Morta em US$ 3 milhões – quase nada perto de O Escolar, avaliado em US$ 80 milhões.

O caso não é isolado, e tampouco definitivo. Somente neste ano outras duas naturezas-mortas do período parisiense do autor foram reabilitadas. Pertencentes a museus americanos, tiveram a autoria questionada e foram retiradas de exibição. Com uma investigação mais técnica, peritos descobriram pinturas em camadas inferiores, prática comum de Van Gogh. Uma delas, inclusive, era um autorretrato do artista. Sem a mesma sorte, Natureza-Morta com Prato, Vaso e Flores permanece reclusa, mantida em uma das duas reservas técnicas do Masp, que juntas abrigam mais de 10 mil obras. Não há previsão para que seja exposta novamente. Depois de anos de reconhecimento e glamour, vive agora o infortúnio de ter se tornado um ex-Van Gogh.

 

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