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Asfixia lenta, gradual e segura – agonia da Cinemateca Brasileira

Graças à negligência da União, casa pode se transformar em local de abate de um tesouro audiovisual

Eduardo Escorel | 22 jul 2020_10h30
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Quando começo a escrever, o número de contaminados pelo novo coronavírus já passou de 2 milhões, e mais de 76 mil pessoas morreram, no Brasil, vítimas da Covid-19. 

Terça-feira da semana passada (14/7), o ABRAÇAÇO na Cinemateca Brasileira, com direito a show de laser, estava marcado para começar às 16h. Exatos dezoito minutos depois, foi publicada no site da Ancine – Agência Nacional do Cinema – a informação que estava prorrogada a “consulta pública da Análise de Impacto Regulatório – AIR – sobre a obrigatoriedade legal de meia-entrada”. Dois eventos díspares, embora relacionados à atividade cinematográfica, simultâneos por acaso, que pareciam ocorrer em planetas diferentes, não em duas cidades de um mesmo país.

A nova manifestação em frente à sede da Cinemateca, em São Paulo, com imagens e textos projetados nos tijolos da fachada, era outro protesto do corpo técnico de funcionários especializados, em greve por não receberem salários desde abril,  a partir da iniciativa do Grupo de Trabalho da Apaci – Associação Paulista de Cineastas, que mobilizou as demais organizações participantes. O ato reiterava a advertência pública sobre o risco que correm, tanto o acervo de filmes, fotografias, documentos e livros ali preservados, quanto as instalações físicas, incluindo o laboratório de restauro e os armazéns climatizados, equipados e construídos com recursos públicos consideráveis. 

De parte da Ancine, sediada no Rio de Janeiro, o comunicado sobre a meia-entrada era mera providência burocrática rotineira, inútil no momento em que o circuito de salas de cinema permanece fechado. De um lado, havia empenho pessoal em reparar a injustiça feita aos servidores e impedir a destruição do mais importante patrimônio audiovisual do país; de outro, prova do alheamento em relação ao que realmente importa neste momento – obtenção de meios para garantir a sobrevivência da Cinemateca Brasileira e de produtores, diretores, atores e técnicos.

Durante a manifestação em frente à Cinemateca, uma frase projetada – “Não deixe nosso patrimônio virar CINZAS!” – foi um apelo em defesa da vida. Uma súplica pela preservação do acervo guardado no antigo Matadouro Municipal de São Paulo, na Vila Clementino. O que um dia foi abatedouro de animais, após nove anos de reformas iniciadas em 1988, transformou-se ao longo dos vinte anos seguintes em órgão vivo e atuante, guardião de bens materiais – matrizes e cópias – e da memória do mundo, difusor de conhecimento, centro de pesquisa, dotado, a partir de 2002, da capacidade técnica de ressuscitar filmes. É concebível que entidade cultural desse porte seja condenada por negligência da União a se tornar local de abate do tesouro audiovisual ali recolhido? Quem responderá por esse massacre? Estaremos fadados a testemunhar, além da morte de milhares de novas vítimas da Covid-19, a perda da preciosa representação visual e sonora das facetas do mundo registradas em película, vídeo, arquivos digitais e fotos, preservadas na Cinemateca? 

FOTO: Cinemateca Acesa

 

Diante da perda trágica anunciada, que talvez ainda possa ser evitada, há prioridades que se sobrepõem a outras providências – assegurar sem demora as condições mínimas indispensáveis para que a Cinemateca Brasileira seja resgatada do abandono em que se encontra, ou seja, que os funcionários especializados tenham seus salários atrasados pagos, as dívidas com prestadores de serviço sejam quitadas e a instituição recupere, assim, capacidade de assegurar a sobrevivência de seu patrimônio. Frente a esse objetivo, não é hora de debater o perfil institucional da Cinemateca, nem é admissível ter de assistir a disputas políticas entre a Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo e a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto – ACERP. Intolerável também é a inação do desgoverno federal que, em última instância se traduz em uma sentença de morte. É preciso um gesto de grandeza, à altura do que está em jogo. Que se equacionem de imediato as demandas prementes do corpo técnico e da instituição para evitar que o estado do doente se agrave e ele venha a falecer.

No dia seguinte ao ABRAÇAÇO na Cinemateca Brasileira, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública em face da União, representada pela Procuradoria-Regional da 3ª Região, com sede em São Paulo. O documento de 83 páginas ratifica que “a Cinemateca Brasileira corre sério e iminente risco de dano irreparável por omissão e abandono do Governo Federal, o qual é responsável pela manutenção e preservação da Cinemateca Brasileira…” e deixa claro que “a responsabilidade da União pela preservação e manutenção da Cinemateca Brasileira decorre da Constituição da República e da legislação infraconstitucional, uma vez que a Cinemateca Brasileira se constitui em acervo patrimonial histórico-cultural pertencente à União, …”.

Após minuciosa e bem fundamentada exposição dos fatos que levaram à crise atual, reproduzida na íntegra por Ana Paula Sousa no portal Filme B, a petição conclui pleiteando, em resumo, que seja determinado à União providenciar (1) no prazo de cinco dias a renovação emergencial do contrato de gestão com a ACERP pelo período de um ano com o consequente repasse orçamentário que estava previsto e alocado para execução do contrato de gestão da Cinemateca Brasileira para o ano de 2020, no valor de 12.226.969  reais, em favor da ACERP; (2) em sessenta dias a reestruturação, manutenção e implantação do Conselho Consultivo da Cinemateca (a ser integrado por pessoas com demonstrado conhecimento profissional em Cinema), assegurando seu direito e autonomia para nomear a diretoria da instituição. 

No dia seguinte (15/7) ao ABRAÇAÇO, foram divulgadas declarações gravadas da dupla formada pelo ministro do Turismo e o secretário da Cultura. Depois de ir à Cinemateca em 23 de junho, o ministro havia anunciado: “Nossa missão é restabelecer e dar vida nova à instituição. Juntos vamos superar esta fase”. Passadas três semanas, porém, nada de concreto havia sido feito, demonstrando, conforme a petição do MPF afirma, que o desgoverno federal não tem o sentido de urgência que a questão requer. Desconsidera o fato de a instituição estar entre a vida e a morte. Não é por nada, afinal, que o atual ocupante temporário do gabinete presidencial, no terceiro andar do Palácio do Planalto, trata a pandemia com descaso e que tenhamos nos tornado o segundo país do mundo em número de contaminados e mortos.

Além de errar o nome da Cinemateca Brasileira, que chamou de “Cinemateca do Brasil”, o ministro afirmou no comunicado da semana passada que o assunto Cinemateca “tem sido tratado com seriedade e respeito aqui na pasta […] nós sempre agimos da forma mais transparente possível. Estamos empenhados na realização de contratos emergenciais e, paralelamente, vamos fazer um novo chamamento público […] Quero aproveitar este momento para reafirmar o nosso compromisso de continuar com a mesma postura que adotamos desde que a Cinemateca passou a ser uma responsabilidade da Cultura. Nós estamos à disposição para trabalhar juntos em busca de uma solução que esteja dentro da legalidade…”. Considerando os antecedentes, no entanto, é preciso que essas palavras sejam traduzidas a tempo em ações concretas, evitando serem vãs.

Ao secretário de Cultura coube tão somente declarar em tom belicoso estarem “dispostos a sentar para discutir o assunto e encontrar um caminho. O governo federal, por meio da Secretaria de Cultura e do Ministério do Turismo não medirá esforços para valorizar a Cinemateca, o seu acervo e principalmente o patrimônio público que é este importante espaço da nossa cultura”.

É sintomático, e preocupante, que a dupla não tenha dito nada sobre a situação do corpo técnico de funcionários que está sem receber salário, sendo esse um aspecto central da questão a resolver. Tampouco parecem preocupados com a urgência do problema. Finalmente, deixam de lado a necessidade de respeitar a autonomia da Cinemateca Brasileira, contando com a participação do Conselho Consultivo da instituição nas decisões a tomar. O que se pode recomendar ao ministro e ao secretário é que leiam com cuidado a petição do MPF, usando-a como roteiro para fazer o que se requer e deixem de insinuar que a União não é responsável pela situação. Se ambos foram capazes disso poderão ter do que se orgulhar quando deixarem o governo. 

Creio poder falar não apenas em meu próprio nome, mas também no de muitos de meus colegas e minhas colegas de profissão, profissionais de diversas especialidades – a Cinemateca Brasileira é nossa casa. É lá que guardamos bens preciosos – nossos filmes; foi lá que assistimos a obras fundamentais em nossa formação; é lá que nos abastecemos de imagens de arquivo; é lá que nossos filmes podem ganhar sobrevida. Senhor ministro e senhor secretário, os senhores haverão de entender que abandonar nossa casa é uma ofensa grave feita a nós. Mas mexer com ela exige cuidado. Estejam atentos ao que vão deixar de fazer! E muito cuidado com o que pretendem fazer! 

Estarrecedor, porém, foi o que transpirou de Brasília há dias. Alinhada com a compulsão destruidora do desgoverno da República, a dupla à frente do turismo e da cultura, com anuência do atual presidente, estaria pretendendo cometer ato insano, para não dizer criminoso, verdadeiro abuso de autoridade. Acometidos por um acesso de prepotência, o ministro e o secretário decidiram transferir a Cinemateca Brasileira de São Paulo para Brasília! Medida equivalente a levar a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro para a capital federal. E por que não aproveitar e remover de uma vez o Museu Nacional de Belas Artes? E o Museu Histórico Nacional? Insanidade por insanidade, todas essas se equivalem. Mas além do despropósito da ideia, quem se disporia a transportar filmes em nitrato de celulose sujeitos a autocombustão? Quanto custaria o seguro dessa empreitada? Detentores de direitos dos filmes depositados autorizariam a mudança? Só resta esperar que algum bom senso prevaleça sobre a arrogância ou que sejam tomadas medidas legais para impedir o desgoverno federal de cometer esse desatino.

Em tempo: o ABRAÇAÇO na Cinemateca Brasileira, em 14 de julho, foi manifestação conjunta da APACI – Associação Paulista de Cineastas, dos movimentos #SOSCinemateca, #SOSTrabalhadoresDaCinemateca, #CinematecaAcesa e das entidades de moradores da Vila Mariana agregadas no Cinemateca Viva.

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Não Toque em Meu Companheiro (74’, 2020), de Maria Augusta Ramos, estreou há uma semana (15/7) nas plataformas de streaming NetNow, Oi Play, Vivo Play, FilmeFilme e Looke. O documentário subverte a expectativa de quem admira Justiça (2004) e Juízo (2007), filmes hoje clássicos de Guta Ramos, como ela é conhecida. O procedimento narrativo da diretora se alterou ao longo dos últimos treze anos, período em que realizou cinco longas-metragens, passando a admitir imagens de arquivo, gravações estritamente documentais fora de seu controle, uma palestra de Marilena Chaui e até uma entrevista de Luiz Gonzaga Belluzzo. A partir da demissão de 110 funcionários da Caixa Econômica Federal, ocorrida em 1991, Não Toque em Meu Companheiro arma um painel crítico amplo e diversificado das políticas neoliberais do governo Collor e do atual, indicando conexões existentes entre ambos.

Na conversa que Piero Sbragia, Juca Badaró e eu tivemos com Guta Ramos, ela discordou dos meus comentários sobre o filme. Vale a pena ouvi-la. A gravação está disponível em https://youtu.be/uChZz2n882M

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Me Cuidem-se! parte VI, de Bebeto Abrantes e Cavi Borges, continua disponível em https://vimeo.com/436993740. É a última parte, depois da qual será iniciada a montagem do longa-metragem a ser feito a partir do material das seis partes gravadas durante a pandemia.

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Em tempo de notícias falsas, torna-se oportuna a exibição, iniciada em 17/7 no canal Curta!, do documentário inédito Operação Pedro Pan, de Kenya Zanatta e Mauricio Dias. Boato forjado e divulgado pela CIA, a Agência Central de Inteligência americana, no início da década de 1960, levou milhares de crianças e adolescentes a serem enviados por seus pais de Cuba para os Estados Unidos, em uma viagem sem volta. Seis décadas depois, Operação Pedro Pan recupera a experiência traumática de alguns desses e dessas jovens, separados de suas famílias de origem, para serem protegidos das ameaças imaginárias do comunismo cubano. Depois das exibições no Curta!, o filme estará disponível no Now e na plataforma Tamanduá em data ainda a ser confirmada.

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Na plataforma de streaming gratuita da Cinemateca Francesa, estão disponíveis títulos variados, agrupados por realizador ou tema: Jean Epstein; Otar Iosseliani; Raoul Ruiz; Brisseau, l’après-midi; Jacques Rozier; Jean-Claude Biette; Serial; Albatros; Vanguardas e incunábulos; Era uma vez o western; Engajamentos, combates, debates; Aurora negra; 1950; Le plein de super; Henri Langlois e Sessões especiais.

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Esta coluna foi alterada às 17h06 do dia 22 de julho, com a identificação do Grupo de Trabalho da Apaci (Associação Paulista de Cineastas) como organizador do ato em defesa da Cinemateca.

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