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questões de gênero

Assassinos íntimos

Análise inédita sobre trezentos processos de feminicídio mostra que em 87% dos casos os réus são companheiros ou ex-companheiros das vítimas

Felippe Aníbal | 18 fev 2021_08h07
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No banco do passageiro do carro dirigido pelo marido, Cleonice de Paula Proença só pensava em chegar logo à delegacia de Fazenda Rio Grande, na região metropolitana de Curitiba, na manhã de 3 de janeiro. Minutos antes, tinha recebido uma mensagem do delegado pedindo que fosse encontrá-lo. A angústia de Cleonice se arrastava por treze dias: desde 21 de dezembro, procurava pela filha, Ana Paula Proença, de 25 anos, desaparecida. No meio do caminho, Cleonice recebeu uma ligação de um repórter de um programa policialesco de tevê, que lhe trouxe a má notícia: Ana Paula estava morta. Tinha sido enterrada em uma cova rasa, em uma espécie de oficina improvisada, no quintal da casa em que morava. O marido dela confessara o crime.

O caso de Ana Paula Proença segue um padrão revelado por um estudo recém-publicado pelo Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) analisando trezentos processos relacionados a feminicídio em tramitação no estado desde março de 2015 – quando essa categoria jurídica passou a constar do Código Penal como qualificadora em homicídios cometidos contra mulheres, em razão de serem mulheres. Em 87% dos processos (248 casos), os réus são homens que mantinham ou mantiveram relação amorosa com as vítimas. São maridos, ex-maridos, companheiros, ex-companheiros, namorados e ex-namorados. Em segundo lugar, em 26 casos (9%), os homicidas eram parentes das vítimas, em diversos graus.

A publicação também revela que, em 65% dos crimes, os assassinos tinham entre 18 a 39 anos de idade. Mas há feminicidas em todas as faixas etárias: 3% dos processos têm como réus homens com mais de 70 anos. Os autores dos crimes, em sua maioria, são brancos (56%), seguidos por pardos (35%), pretos (8%) e amarelos (1%). O levantamento também destaca que a extensão do relacionamento entre assassinos e vítimas é bastante variável, “com tempos de relacionamento muito diversos, desde os seis meses de namoro até mais de trinta anos de casamento”.

“O feminicídio é um indicador para avaliarmos as políticas de atendimento à mulher. Quando as políticas falham ou não são acertadas, vão resultar, lá na frente, em feminicídio. A lesão corporal pode ser escondida. O feminicídio, não. O corpo chega ao IML, na delegacia…”, disse a desembargadora Priscilla Placha Sá, que coordenou o levantamento. “É um tipo de crime que tem muitas microfacetas, mas, na maioria, são casos em que o assassino tinha um relacionamento, entre aspas, de natureza afetiva com a vítima. Eu ponho aspas porque se fosse, realmente, afetiva, não teria matado. A rede dessas mulheres tem que estar atenta, porque, na maioria das vezes, há pistas no comportamento”, acrescentou.

No caso de Ana Paula Proença, a família não teve ou não percebeu as pistas. Cleonice nunca se deu conta de que o casamento de sete anos da filha não ia bem ou que o então genro, Adriano Meinster, de 35 anos, pudesse chegar a tal extremo. Hoje os detalhes do crime provocam uma sensação de culpa na mãe. Segundo as investigações, Meinster matou Ana Paula por asfixia – com um golpe semelhante a um mata-leão – no início da manhã de 21 de dezembro, depois que ela descobriu no celular do marido a troca de mensagens dele com uma amante. O filho do casal, de dois anos de idade, estava em casa no instante do crime. O corpo foi colocado em uma cova de pouco mais de 30 cm de profundidade e coberto com uma camada de cal, antes de ser enterrado. Em um terreno vizinho, os investigadores encontraram um cachorro morto, que eles acreditam ter sido colocado ali por Meinster, para dissimular odores que pudessem ser exalados pelo cadáver de Ana Paula.

“Se eu tivesse percebido, talvez tivesse evitado. Mas não tinha como. Nada indicava…” lamentou Cleonice. “Nenhuma mãe merece ver o que eu vi. Nenhuma mulher merece passar pelo que a minha filha passou. Foi o momento mais difícil da minha vida. Eu estou vivendo porque tem o meu neto. Mas ele [Meinster] tirou um pedaço de mim. Quero que ele pague pelo que fez. Um homem não é dono da mulher, para fazer o que quiser, matar desse jeito…”, disse.

Após assassinar a mulher, Meinster enviou mensagens à sogra, se passando por Ana Paula e usando o celular dela. À noite, desceu a Itapoá, no litoral catarinense, com o filho e a amante. Antes da viagem, colocou película nos vidros do carro e trocou os quatro pneus, pagando com cartões de crédito de Ana Paula Proença, em gastos que passaram de dois 2 mil reais. Ele dizia à sogra que a moça tinha desaparecido após ter saído de casa em razão de uma discussão. A polícia passou a desconfiar de Meinster no dia seguinte ao desaparecimento. Ao ser ouvido, ele apresentou um comportamento que o delegado Ademair Braga descreveu como “de frieza”, incompatível com quem procurava pela mulher desaparecida. A amante também foi ouvida e relatou que Meinster estava “estranho” durante a viagem.

Na sequência das investigações, a polícia analisou imagens das câmeras de segurança de vizinhos e verificou que elas não registraram Ana Paula Proença saindo de casa no dia 21 de dezembro – contradizendo as declarações de Meinster. Além disso, os investigadores descobriram que o sistema de câmeras da residência do casal tinha sido desligado em 18 de dezembro, uma sexta-feira, e só foi religado na segunda-feira, já depois do desaparecimento de Ana Paula – o que pode indicar premeditação. Em 2 de janeiro, o delegado Braga recebeu uma ligação do advogado de Meinster, dizendo que o suspeito se entregaria e revelaria onde estava o corpo dela. Mas Braga já tinha se adiantado e pedido a prisão preventiva, que foi concedida pela justiça. 

“Pedi a prisão preventiva até para termos o efeito pedagógico, para não termos aquela imagem de que um homem mata uma mulher, se apresenta com um advogado e sai da delegacia pela porta da frente”, disse Braga. “O Adriano [Meinster] é um sujeito que nunca tinha ido a uma delegacia sequer por perda de documentos. Era um homem ‘padrão’, mas que tinha esse comportamento incrustado, de que pode agredir a mulher e se livrar disso. Isso não pode acontecer”, acrescentou.

 

Segundo o levantamento do TJ-PR, em 75% dos casos a Justiça decretou a prisão preventiva dos acusados. Em 61%, os suspeitos foram presos em flagrante. A Justiça aceitou denúncia oferecida contra Adriano Meinster, por homicídio duplamente qualificado (feminicídio e asfixia), por ocultação de cadáver e fraude processual. Ele segue preso, respondendo à ação penal. Meinster não nega o crime, ao contrário, é réu confesso. Seu advogado, Claudio Dalledone Júnior, disse que vai esperar a conclusão da primeira fase da apuração judicial para definir a tese jurídica que vai embasar a defesa.

O dossiê do TJ-PR também detalha as condições em que os crimes ocorrem, revelando métodos cruéis usados pelos acusados. A qualificadora “por asfixia, com emprego de veneno, fogo, explosivo, tortura ou outro meio insidioso ou cruel” está em 21% dos casos – atrás de “à traição ou por emboscada” (43%), “por motivo fútil” (37%) e “por motivo torpe” (22%). Já a ocultação de cadáver aparece associada ao feminicídio em 3% dos processos.

“Em dezembro de 2009 e em 2013, eu trabalhei em casos idênticos a esse, da Ana Paula. Eu não diria que os casos estão aumentando, mas que está havendo um cuidado maior na catalogação desses crimes. Uma coisa é certa: o combate aos casos, o empenho das redes em todas as esferas e a modificação de legislação que tipificou o feminicídio como qualificadora, somente tudo isso pode gerar uma modificação da cultura”, observou o delegado Braga. 

Fruto de uma luta de décadas do movimento feminista, a inclusão do feminicídio no Código Penal como qualificadora do homicídio ocorreu por meio da lei 13.104, de março de 2015. Conforme o texto aprovado pelo Congresso, a qualificadora se define como o homicídio cometido “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. Essas se configuram a partir de ao menos uma das duas condições: em casos de violência doméstica ou quando há “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Para quem trabalha com direito penal, apesar dos avanços trazidos pela lei, a redação dessa segunda condição tornou o enquadramento subjetivo.

“Tecnicamente, o texto está mal colocado, o que vem provocando uma confusão na aplicação da qualificadora. Uma coisa é um feminicídio. Outra é um assassinato de mulher. Cabe aos operadores do direito definirem os limites sem paixões, com técnica, para que a doutrina venha a consolidar a questão, sem ir para um lado ou para outro”, opinou Dalledone Júnior.

A desembargadora Priscilla Placha Sá acrescenta outros pontos. Além de aspectos técnicos relacionados à aplicação da qualificadora, ela menciona que o texto deixa de fora, por exemplo, as mulheres transgênero. Apesar disso, a magistrada coloca a tipificação penal do feminicídio como um marco histórico. “Embora eu trabalhe com uma perspectiva de contenção do sistema punitivo, eu acho que nomear um fenômeno, chamar a letalidade contra mulheres de feminicídio, foi um avanço dos mais grandiosos que a gente teve neste século em relação a direitos e garantias. Demos nome àquilo que acontece. Hoje, uma menina de 12 anos sabe o que é feminicídio”, definiu.

Outro aspecto que chama a atenção – e que foi diagnosticado pelo levantamento do TJ-PR – é a predominância masculina em quase todas as esferas penais. Em 69% das investigações de feminicídio, a autoridade policial era do sexo masculino. Na promotoria, 55% dos processos foram conduzidos por homens, 25% por mulheres e 20% por homens e mulheres (nesses casos, houve mais de um promotor ao longo do processo). Em relação à defesa, 59% dos processos foram defendidos por homens, 21% por mulheres, 8% por homens e mulheres e em 12% não foi possível identificar o gênero do defensor. Na magistratura, a proporção foi mais equilibrada: 29% homens, 29% mulheres, 10% homens e mulheres e 32% indeterminado.

“Não significa que devamos ter só mulheres nessa rede ou que os homens que estão ali necessariamente terão um comportamento inadequado. Mas a gente tem que levantar como bandeira coletiva uma formação a partir da perspectiva de gênero. Desde o ano passado, o TJ-PR, por exemplo, já está formulando um curso de capacitação e formação em gênero para quem atua na temática de defesa e proteção à mulher”, disse a desembargadora.

Uma estimativa feita pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública a pedido da revista Época projetou que, a cada ano, mais 2 mil crianças fiquem órfãs no Brasil, em razão de a mãe ter sido vítima de feminicídio. O levantamento leva em conta as 1.206 mulheres assassinadas em razão do gênero em 2018 – último ano com dados consolidados. “É muito difícil para a criança. Como ele vai crescer sem mãe e com o pai preso. Vai saber que o pai matou a mãe…”, disse Cleonice Proença, referindo-se ao seu neto de dois anos. Do dia do crime até 11 de fevereiro, o menino permaneceu sob responsabilidade dos avós paternos. Desde então, a criança está na casa de Cleonice, que conquistou a guarda.

“Nos primeiros dias depois do acontecido, ele chorava muito. Pedia a mãe, pedia o pai. Agora, eu e meu marido nem falamos mais o nome dela [Ana Paula] pra ele não ficar mexido, não pedir a mãe. Ele estava em casa quando a minha filha foi morta. Imagine como não está a cabecinha dele”, disse Cleonice. “Quando ele crescer, a gente vai contar que a mãe dele era uma mulher boa, trabalhadeira e que o amava muito. Quanto ao pai, eu espero que ele pague. Que a justiça dos homens faça a parte dela”, completou.

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