Ao longo da vida dos artistas, ou nas décadas que seguem sua morte, os altos e baixos das reputações, dos sucessos e da fama, são quase sempre imprevisíveis, e pode ser fascinante acompanhar trajetórias pontuadas de acasos que ressuscitam carreiras, ou as derrubam, muitas vezes sem qualquer relação com o talento (ou mesmo a genialidade) do criador.
Observa-se muitas vezes um movimento natural de refluxo após a morte do artista, sobretudo quando sua fama foi grande, quase como se a posteridade se obrigasse a uma postura revisionista.
Com frequência, quanto maior a fama, maior a reação. Não raro, ocorre uma reavaliação positiva após algumas décadas de ocaso, mas para a maioria o esquecimento vem de vez, rápida ou progressivamente.
O compositor popular Assis Valente é um caso curioso que se encaixa à perfeição no padrão incerto da evolução da fama dos artistas, mas revela-se também fruto de peculiaridades que tornam sua carreira singular. Uma biografia recente, com boa acolhida, desfez alguns mitos de uma vida sofrida e lamentável, à qual o próprio Assis Valente pôs fim, pouco antes dos 50 anos, em 1958. O personagem é interessante: elegante, vaidoso, com talento para várias artes, Assis dizia ter sido roubado em criança de seus pais biológicos e criado em outra família baiana, da qual saiu para ser limpador de vidros de farmácia, artista de circo e, finalmente, fabricante de dentaduras. Foi a profissão de protético que o sustentou nas décadas seguintes, mais segura que os direitos autorais variáveis de suas inúmeras composições.
Fascinado com o Rio de Janeiro, começou vendendo belos desenhos para as capas das revistas ilustradas dos anos 1930, mas logo desenvolveu um talento musical que o levou a compor músicas e letras gravadas pelas maiores vozes de seu tempo: Francisco Alves, Orlando Silva, Mário Reis e, sobretudo, Carmen Miranda, para quem compôs a famosa . Os rumores são muitos a respeito de Assis Valente: talvez homossexual enrustido, (o que sua biografia recente contesta), ou cocainômano, vício que teria destruído os últimos vinte anos de sua vida. Em todo caso, é certo que tenha tentado várias vezes o suicídio antes da ingestão final de formicida. Uma vez o fez de forma espetacular: dezessete anos antes de sua morte, pulou do alto do Corcovado. Para sua sorte (ou azar) a copa de uma árvore o salvou, setenta metros abaixo, deixando-o apenas com algumas costelas quebradas.
Assis Valente compôs muitas músicas que estão no inconsciente coletivo brasileiro. Cai, cai, balão, Boas Festas e Boneca de pano figuram entre as mais conhecidas, e expressões suas como “Sossega, leão”, “Gente bronzeada”, e “Deixa estar, jacaré” são repetidas por gerações sucessivas que não tem ideia de sua origem.
A vida atribulada e trágica, com picos de sucesso e longos períodos de decadência, deram a Assis Valente uma noção clara da fragilidade da fama, mas sua posteridade é ainda mais interessante. Esquecido na década que seguiu-se à sua morte, voltou a ser admirado e gravado no fim dos anos 1960 pelo astros da emergente MPB: Nara Leão, Chico Buarque e Caetano Veloso. A música na qual botava maior fé para sua volta à fama, em 1940 (e que Carmen Miranda recusara-se a gravar), Brasil Pandeiro, tornou-se, na voz dos Novos Baianos, um dos maiores sucessos dos anos 1970.
Cultuado pelos conhecedores da MPB, a apreciação póstuma de Assis Valente, agora um clássico, continua flutuante, mas a recente e competente biografia ajuda a entronizá-lo numa posição de destaque, cada vez mais sólida, entre os grandes criadores da música popular brasileira.
A peça reproduzida nesta página é a partitura do samba Maria boa, impressa num folheto de marchas de carnaval publicado pela prefeitura do Rio de Janeiro, em 1955. A folha leva uma dedicatória, algo nostálgica, de Assis Valente, em 1956, quando sua fama era já declinante: “Ao Antonio… a Maria boa dos carnavais antigos”