Quando, em uma tarde de sol de agosto de 2018, a onça-pintada Atiaia saiu da mata cerrada e cruzou uma via interna do Parque Nacional do Iguaçu (PNI), pesquisadores da unidade de conservação comemoraram. A felina estava acompanhada de seus três filhotes, que, em dois meses, eram vistos pela primeira vez. Atiaia significa “Raio de Luz”, em tupi. Com 2,5 m de comprimento e 70 cm de altura (paleta), é o símbolo de um programa de recomposição da população de sua espécie no parque, considerado o último refúgio de onças-pintadas monitoradas em biomas de Mata Atlântica do Brasil. Hoje, um agosto depois, os destinos de Atiaia e seus filhotes, bem como de todo o ecossistema local, estão ameaçados por dois projetos de lei que ganharam adesão pública do presidente Jair Bolsonaro (PSL).
As duas propostas querem reabrir a chamada Estrada do Colono, uma via de chão batido de 17,6 quilômetros de extensão que atravessa o Parque do Iguaçu, dividindo-o em duas partes. Incorporado oficialmente à malha rodoviária do Paraná na década de 1950, como parte da PR 495, o caminho tem sido ponto de tensão entre defensores da estrada e ambientalistas, justamente em razão do impacto causado à unidade de conservação. Neste período, a rodovia foi fechada três vezes por determinação judicial. A última decisão, expedida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), é de 2001. Desde então, a via permanece interditada.
A Estrada do Colono é lembrada pela população local não só por, no passado, ter servido de caminho a colonizadores e a índios, mas principalmente porque encurtava a ligação entre as regiões Sudoeste e Oeste do Paraná, facilitando o acesso a Foz do Iguaçu e à tríplice fronteira. Pela estrada, o trajeto entre Capanema e Serranópolis do Iguaçu contava cerca de 50 quilômetros. Sem ela, para ir de uma cidade a outra, é preciso contornar o parque e fazer um percurso de 180 quilômetros. Em praticamente todas as eleições na região, o tema volta à baila e vira bandeira para políticos – de candidatos a prefeitos e vereadores a deputados.
Andar pelo Parque Nacional do Iguaçu é ir além de seu cartão-postal mais conhecido, as Cataratas do Iguaçu. Maior área de Mata Atlântica no Sul do Brasil, o parque é coberto por uma floresta fechada, onde o cheiro de terra, folhas e umidade se mistura com os ruídos dos animais. O parque é habitat para mais de 200 espécies de aves, 45 de mamíferos, 48 de répteis e 12 de anfíbios. Entre eles, animais ameaçados de extinção, como o jacaré-de-papo-amarelo e o gavião-real, além da onça-pintada. Na área aberta à visitação, é possível ver quatis e pacas. Para chegar às várias trilhas que dão acesso à mata fechada, só em veículos da concessionária que administra o parque, todos controlados e rastreados por GPS. Atiaia e seus filhotes já deram o ar da graça a turistas mais sortudos. No extremo nordeste do parque está uma área da chamada Floresta Tropical Subcaducifólia, que abriga espécies ameaçadas, como a peroba-rosa, a imbuia e a araucária. Também é possível praticar atividades mais radicais, como rapel, rafting e passeios em botes que chegam bem perto do véu das cataratas. No ano passado, todas essas atividades atraíram quase 1,9 milhão de visitantes, 46% deles estrangeiros. Em 1986, o parque recebeu da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) o título de Patrimônio Natural da Humanidade. O lado brasileiro do parque tem 185 mil hectares, e o argentino, 67 mil hectares, separados pelo Rio Iguaçu.
Agora, sob a política “flexível” do bolsonarismo em relação ao meio ambiente, a Estrada do Colono nunca esteve tão perto de ser reconstruída. Em 23 de maio, em agenda no Oeste do Paraná, Bolsonaro manifestou publicamente apoio político às propostas que querem reabrir a rodovia. Antecipou seu respaldo ao projeto, independentemente de análises técnicas ou de impacto ambiental. “O nosso ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, é um homem que casa o progresso com a preservação ambiental e, por ele, já está dado essa licença. E eu vejo muito pelo lado turístico, né, que o investimento é muito pouco, perto do grande retorno que podemos ter em divisas. Usaram, ao longo das últimas décadas, a questão ambiental pra inviabilizar, em grande parte, pedaços do Brasil”, disse Bolsonaro, segundo o portal G1.
O aceno positivo do presidente alvoroçou políticos paranaenses. Autor de uma das propostas de reabertura da estrada, o deputado federal Vermelho (PSD) anunciou que vai pedir regime de urgência na tramitação da matéria no Congresso. O projeto de lei número 984/2019 propõe a alteração da Lei de Unidades de Conservação, criando uma modalidade chamada “estrada-parque”, na qual a Estrada do Colono passaria a se encaixar. O parlamentar argumenta que o fechamento da via foi “uma injustiça histórica” e que a reabertura “contribuirá com a preservação da fauna e da flora dessa unidade de conservação, elevando, inclusive, o nível de consciência da população”.
A proposta de Vermelho pega carona em outro projeto, apresentado em 2010 pelo então deputado federal Assis do Couto (PDT). A diferença é que o texto do pedetista impede o asfaltamento da via e prevê a implantação de guaritas e sinalizadores para controlar o acesso de veículos, além de passagens subterrâneas para animais. A matéria chegou a ser aprovada na Câmara, mas estava parada no Senado desde 2013. Foi desengavetada nesta legislatura, a partir da articulação do senador paranaense Alvaro Dias (Podemos). Para o senador, a reativação da estrada, reivindicação antiga da região, ampliaria a preservação e contribuiria para o turismo. “Seria uma estrada preservacionista, não depredadora. Estão previstos todos os requisitos e cuidados que uma estrada moderna, uma estrada-parque exige. Não haverá impacto ambiental. Não tenho dúvida de que haverá maior preservação com a estrada do que há hoje, sem ela. Vai conquistar a população para a preservação”, disse o senador, destacando que a lei abriria caminho para estradas-parque em outras unidades de conservação.
Tanto em Capanema e Serranópolis quanto nos outros municípios que circundam o parque, a reabertura da estrada tem recebido apoio maciço da população, de associações comerciais e grupos de empresários. O movimento, intitulado “Estrada Ecológica Caminho do Colono”, mobiliza a internet, com páginas em redes sociais e templates que os usuários podem incluir em fotos de perfil. A população participa e vai a atos públicos. Não chega a ser novidade: em episódios passados, moradores chegaram a acampar no Parque do Iguaçu para defender a manutenção da estrada. Apesar de se tratar de um parque federal, a Assembleia Legislativa do Paraná também tem tratado do tema. Criou uma “frente parlamentar” com adesão de 24 dos 54 deputados estaduais. Em agosto, a Casa promoveu duas audiências públicas – uma em Capanema; outra em Medianeira – com participação de dez deputados estaduais, além de Vermelho, “convidado especial”. Não foram convidados representantes do Ministério Público Federal (MPF), da Polícia Federal (PF) nem ambientalistas. Deputados de oposição ao governo federal, como Professor Lemos e Luciana Rafagnin, ambos do PT, aderiram à causa. O governador Ratinho Júnior (PSD) enviou como representante o secretário-chefe da Casa Civil, Guto Silva. “Na semana passada, estivemos aqui e ele [Ratinho] falou de pronto: ‘Pode contar comigo [para a reabertura da estrada]. Eu vou aportar recursos se for necessário, eu vou apoiar se for necessário’”, afirmou o secretário na audiência de Capanema.
Em 16 de agosto, na tarde seguinte à primeira audiência, equipes da Rede Nacional Pró Unidades de Conservação (Rede Pró UC) e do Observatório Justiça & Conservação sobrevoaram o parque, especificamente o trecho por onde passava a Estrada do Colono. A bióloga Angela Kuczach, diretora-executiva da Rede Pró UC, diz que a rodovia foi devorada pela floresta, como já mostravam imagens divulgadas em julho pelas duas organizações. “Ao falarmos da reabertura, a gente está falando, em primeiro lugar, de desmatamento de Mata Atlântica. Não é uma graminha cobrindo a estrada. É uma floresta. Árvores com oito metros de altura de um parque mundialmente reconhecido pela sua importância”, disse Kuczach. “Imagine a cena que iria para o resto do mundo: tratores e patrolas entrando no Iguaçu e derrubando a floresta de um patrimônio da humanidade. Seria um desastre”, definiu.
O reconhecimento internacional pela Unesco só foi concedido depois de a Estrada do Colono ter sido fechada pela primeira vez, por força de decisão judicial. Na ocasião, o governo do Paraná se preparava para asfaltar a BR-163, que passa ali perto, e estenderia a pavimentação à estrada. Diante da reação de ambientalistas e de entidades da sociedade civil, o Ministério Público Federal instaurou ação civil pública contra o asfaltamento. Moradores de municípios próximos fizeram manifestações pela manutenção da via. Ainda assim, a Justiça Federal determinou o fechamento da estrada. Em 1998, moradores dos municípios próximos reabriram ilegalmente a Estrada do Colono. A Unesco incluiu o Parque Nacional do Iguaçu na “Lista do Patrimônio Mundial em Perigo”. Só em 2001, quando a Justiça garantiu, mais uma vez, a interdição definitiva da estrada é que o selo internacional foi referendado.
“A manutenção do parque como Patrimônio Natural da Humanidade só ocorreu quando a Unesco constatou que a Estrada do Colono voltou a ser fechada. A reabertura pode colocar tudo isso a perder. Seria desastroso, porque este certificado internacional ajuda a fazer do turismo o grande negócio que é hoje”, aponta o médico veterinário Clovis Borges, diretor-executivo da ONG Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental e conselheiro do Observatório Justiça & Conservação. “Todo o trabalho de preservação seria diretamente impactado”, acrescenta Borges, mestre em zoologia e que há anos acompanha os conflitos em torno da estrada desde a década de 1980.
Entre os afetados pela reabertura da rodovia estariam não só Atiaia e seus filhotes, mas toda a população de onças-pintadas, que voltou a crescer a partir de um programa de monitoramento contínuo e de estudos dos hábitos da espécie no Parque do Iguaçu. Esses felinos começaram a ser rastreados – por meio de radiocolares – e pesquisados em 1990 pelo biólogo Peter Crawshaw Junior, que desenvolveu seu projeto de doutorado pela Universidade da Flórida na unidade de conservação. Estimava-se, então, uma população de 68 onças no parque. Quando a Estrada do Colono foi reaberta, em 1997, o número chegou a cinco. Os pesquisadores contam que, no início dos anos 2000, era raro achar rastro dos felinos no parque. Só a partir de um trabalho de pesquisa, de conservação e proteção do parque é que as onças voltaram a ter condições de se reproduzir. O censo realizado pelo projeto Onças do Iguaçu aponta que o número de indivíduos monitorados saltou de oito, em 2008, para 22, em 2016. Agora, os pesquisadores estimam que a comunidade de onças no Parque do Iguaçu passe de trinta animais.
“Somadas às que estão no lado argentino do maciço, separado pelo Rio Iguaçu, teremos mais de cinquenta indivíduos, população viável mínima [necessária para continuar se reproduzindo e garantindo a continuidade da espécie]. A Estrada do Colono certamente quebraria este equilíbrio”, avalia Crawshaw Junior, analista ambiental aposentado do ICMBio e um dos fundadores do Onças do Iguaçu.
Um dos principais impactos diz respeito à divisão que a Estrada do Colono faria no parque, o que interferiria diretamente nos hábitos das onças – inclusive de reprodução. Atiaia, por exemplo, vive na faixa oeste da reserva, na área próxima às Cataratas do Iguaçu. Ao completar 2 anos, seu filhote macho, o Vivá, tende a passar pelo processo que os biólogos chamam de “dispersão”: deve procurar regiões maiores, bem afastadas da mãe – do outro lado do traçado original da estrada –, onde ele possa ter um ambiente de caça e conviver com duas ou três fêmeas. As outras duas crias de Atiaia, as fêmeas Indira e Teçá, tendem a criar núcleo próprio, com seus filhotes, mas sem se deslocar tanto quanto o irmão. “Macho e fêmea só ficam juntos no período do cio. A divisão do parque certamente interferiria nesse encontro”, resumiu Crawshaw Junior. “O corte provocado pela reabertura da Estrada do Colono inibiria todo esse processo, colocando toda a população de onças em risco. Para a manutenção da espécie, é preciso ter uma área de mata intangível, não aberta à passagem ou à visitação”, acrescentou Kuczach. “Que Atiaia e seus filhotes sejam o nosso símbolo. Atiaia é ‘Raio de Luz’. Temos que manter aceso esse facho de luz, que é a esperança da manutenção da população de onças no Parque Nacional do Iguaçu”, concluiu.
Os pesquisadores se preocupam com o impacto que a circulação de veículos dentro da unidade causaria. Além do chamado efeito de borda – degeneração a vegetação do entorno para bem além das margens da rodovia – provocado pelo tráfego, a reativação da estrada aumentaria os riscos de atropelamentos, sobretudo de animais menores, como pacas, queixadas e veados, presas das onças. Na avaliação dos especialistas, isso traria consequências diretas para o equilíbrio da cadeia alimentar do ecossistema. A estrada também tornaria o Parque do Iguaçu mais vulnerável à ação de caçadores e à extração ilegal de palmito – conforme alertou a Polícia Federal ao longo dos últimos anos. Em ofício datado de maio de 2012, o então superintendente da PF no Paraná, José Alberto de Freitas Iegas, avaliava que a via facilitaria “a prática de crimes ambientais”. Ainda segundo a PF, a rodovia “seria mais um complicador no que se refere ao controle de nossas fronteiras”, porque dificultaria “uma ação policial eficiente” e poderia ser usada como rota por criminosos, facilitando o transporte de “mercadorias ilícitas, armas, munições e drogas”.
Por fim, ambientalistas e pesquisadores afirmam que falar em estrada-parque é apenas distorcer a expressão parkway, criada nos Estados Unidos. Lá, essas vias são abertas em consonância com uma política ambiental para ampliar a preservação e servir como ponto controlado de visitação. Já a estrada-parque do Colono seria apenas a reativação de uma passagem, sem preocupação com a preservação do parque. “Isso é um invencionismo bastante grosseiro, sem sustentação técnica e que pode abrir precedentes perigosos para abertura de estradas em outros parques nacionais. É o sujeito pintar o muro de verde e dizer que é sustentável”, afirma Borges.