De segunda a sexta, às 15 horas, Emília e Maria Vitória Gomes, mãe e filha, sentam juntas em uma mesa no canto do quarto que dividem e sintonizam o rádio na frequência 104,9, a Rádio Princesa da Serra. Vai começar a aula. Enquanto Maria Vitória, de 4 anos, começa a reconhecer as formas das letras do alfabeto, o “ABC”, como ela chama, Emília Gomes, 20, presta atenção nas lições de ciências, suas favoritas, transmitidas no rádio pelos professores do município de Serra Negra do Norte. “O professor de biologia falou sobre algumas espécies de cobras, rãs e árvores aqui da região, como o juazeiro. Ele falou também do umarizeiro e do angico, que sofreram muito desmatamento, e pediu que a gente plantasse novamente essas árvores”, relata Emília. Mãe e filha vivem na zona rural de Serra Negra do Norte, cidade de pouco mais de 8 mil habitantes a 320 km da capital do Rio Grande do Norte. Desde a suspensão das aulas presenciais por causa da pandemia de Covid-19, no dia 18 de março, é pelo rádio de pilha que Maria Vitória continua o contato com os professores. Foi também por meio do aparelho que Emília, que deixou a escola aos 16 anos, quando casou e engravidou da filha, redescobriu, quatro anos depois, a vontade de voltar a estudar. “No começo foi muito ruim deixar a escola, mas depois eu me acostumei. A aula pelo rádio foi um incentivo muito grande, eu senti que ainda tinha muita coisa para aprender. Agora vou voltar”, conta Emília.
O rádio foi o meio encontrado pela Secretaria de Educação do município para alcançar alunos sem acesso à internet durante a quarentena. Em Serra Negra do Norte, onde a zona rural se estende até a fronteira com a Paraíba, cerca de 160 estudantes, dos 2 aos 16 anos, residem em áreas onde o sinal de internet, muitas vezes, é suficiente apenas para enviar mensagens no WhatsApp de alguns pontos específicos da casa. O secretário de Educação do município, Petrucio Ferreira, contou que, ao ver que as aulas ficariam suspensas por mais tempo do que os quinze dias estipulados inicialmente pelo decreto governamental, começou a procurar formas de alcançar o maior número possível de estudantes, para que eles não ficassem privados das aulas. “O aluno que não tem acesso à internet tem um radinho de pilha dentro de casa. Isso é muito costumeiro, principalmente na zona rural”, contou Ferreira. Ele procurou, então, a única rádio do município, a Princesa da Serra, que ofereceu gratuitamente o horário das 15 horas para as transmissões diárias. O programa, com duração de uma hora, foi batizado de Educa Quarentena e também é veiculado pelo Facebook.
Serra Negra do Norte já utilizava o rádio para fazer a transmissão de outros acontecimentos de interesse público, como as sessões semanais da Câmara de Vereadores. “Praticamente em toda casa que você passar, tem pessoas escutando a sessão da Câmara Municipal às quartas-feiras através do rádio. É uma cultura que se criou no município, tanto na zona urbana como na zona rural”, diz o secretário.
No começo, nem todos acreditavam que o projeto daria certo. A professora de redação Danila do Monte Costa foi uma das que demonstraram ceticismo. “Vou ser bem sincera: quando eu vi, não botei muita fé, não. Eu achava que, pelo rádio, as pessoas não iam acompanhar”, conta Danila. Ela deu uma aula no programa sobre tipos de texto e lançou um desafio aos ouvintes para testar o alcance do meio: divulgou seu número de telefone e pediu que quem estivesse ouvindo enviasse fotos de redações de tema livre para seu WhatsApp, para que ela corrigisse. “De repente, começou a chegar. Eu não esperava que fosse receber tanta coisa. Na hora, eu liguei para Petrucio e disse: o trabalho está dando certo”, conta a professora.
O Rio Grande do Norte foi berço das primeiras escolas radiofônicas do Brasil, instituídas pela Igreja Católica através da emissora que, com o tempo, se transformaria na Rádio Rural. As escolas radiofônicas foram o pontapé inicial para a criação do Movimento de Educação de Base (MEB), que passou a atuar na formação de jovens e adultos. Era um contexto adverso. Na Segunda Guerra Mundial, Natal, capital do estado, foi escolhida como base dos Estados Unidos por causa de sua posição geográfica estratégica, o ponto mais próximo no continente entre América, Europa e África. Enquanto a cidade via, de um lado, a chegada dos americanos que transformavam os costumes da cidade, o resto do estado, com dois terços de seu território em áreas de clima semiárido, amargava uma de suas maiores secas. O resultado foi um grande êxodo rural que, após o fim da guerra, resultou em um elevado contingente populacional analfabeto e em situação de pobreza na capital.
Durante a guerra, o índice de alfabetização na capital do estado era de 56,32%, conta o livro Escolas Radiofônicas de Natal, organizado pela professora das Escolas Radiofônicas do Serviço de Assistência Rural, Marlúcia Menezes de Paiva. Quinze anos depois, a situação pouco mudara: havia apenas dez grupos escolares na capital, e o número de escolas mantidas pela prefeitura caíra de 120, em 1958, para 86, em 1960. Naquele ano, segundo o censo do IBGE, Natal tinha 154.276 habitantes, e mais de 30 mil analfabetos. No interior, a situação era ainda mais grave.
O então bispo auxiliar de Natal Dom Eugênio Sales, que se tornaria cardeal e arcebispo do Rio de Janeiro, função que exerceu entre 1971 e 2001, resolveu trazer para o RN um modelo de escola radiofônica similar ao da cidade de Sutatenza, na Colômbia, visitada por ele anos antes. Surgiram assim as primeiras escolas radiofônicas de Natal, que logo se expandiriam para o resto do estado. A pobreza era tanta que até rádio era artigo de luxo, e os alunos se reuniam em uma sala de aula, com um aparelho no meio, para ouvir as transmissões. O alcance da emissora era limitado, o trabalho era majoritariamente voluntário, e as instalações inadequadas.
O interior potiguar ainda foi palco de uma histórica experiência de educação popular. Foi no município de Angicos que o educador Paulo Freire testou seu método de alfabetização de adultos em 40 horas. A experiência ficou conhecida como “As 40 horas de Angicos”. Com o golpe militar de 1964, as experiências de educação popular, presenciais e pelo rádio, foram interrompidas.
Em 2020, com a pandemia de Covid-19 e sem perspectivas para o retorno das aulas, suspensas pelo menos até o mês de julho de acordo com o decreto do governo do estado, a Secretaria da Educação e da Cultura (SEEC) convocou diretores e membros das unidades regionais de ensino em busca de alternativas. Entre os convocados estava Fabíola Maria Dantas, assessora pedagógica responsável pela Educação de Jovens e Adultos (EJA) na região de Caicó, maior cidade da região do Seridó potiguar, com 67.952 habitantes. Aluna assídua dos cursos de Educação à Distância do Instituto Paulo Freire, Fabíola percebeu que poderia unir duas experiências históricas do Rio Grande do Norte para manter os alunos na escola. Educador reconhecido internacionalmente, Freire, que morreu em 1997, se tornou um alvos dos ataques do governo do presidente Jair Bolsonaro.
“Desde que nasci, tive uma convivência grande com o rádio, e sabia da história do Movimento de Educação de Base da Igreja. Então pensei: por que não reinventar Paulo Freire e reinventar o MEB como estratégia para chegar ao aluno de EJA?”, relata Fabíola. Ela procurou então a emissora local da Rádio Rural, que pertence à Fundação Educacional Santana, criada em 1963 para servir como emissora das escolas radiofônicas na região. A rádio prontamente aceitou realizar as transmissões. Para atingir os alunos, muitos dos quais precisam continuar trabalhando mesmo durante o isolamento, as aulas passaram a ser transmitidas à noite, a partir das 18h50. Os tópicos são divididos nas áreas de ciências humanas, ciências da natureza e matemática e, às sextas-feiras, os professores fazem uma revisão geral dos conteúdos da semana.
Se em Serra Negra do Norte o foco é o conteúdo para ensino fundamental, em Caicó os educadores trabalham a partir do método Paulo Freire, que pressupõe a construção do conhecimento a partir o diálogo e da participação. O programa foi chamado de EJA em Ação. Os professores desenvolvem os conteúdos de cada aula a partir de um tema central, envolvendo as diferentes áreas do conhecimento e provocando reflexões críticas para os ouvintes. “O nome EJA em Ação partiu do livro Medo e Ousadia, de Paulo Freire, no qual ele diz que, diante do medo, a gente ou paralisa, ou mobiliza. Ele nos convida a essa mobilização, e é isso que estamos fazendo”, afirma Fabíola.
Entre os temas discutidos pelos professores está o próprio coronavírus, primeiro tema debatido no programa. Assim como o Educa Quarentena, o EJA em Ação é transmitido pelo rádio e pelas redes sociais da 10ª Diretoria Regional de Ensino e Cultura, da região de Caicó.
Desde o início do programa, cem pessoas procuraram os diretores escolares da região de Caicó para se matricular no Ensino para Jovens e Adultos. “A gente não tem um número de matrículas como esse nem em tempos presenciais após o período do início de aulas”, relata a assessora pedagógica. O plano é expandir o projeto para outras localidades e chegar também ao sistema prisional.
Assim como Emília Gomes, Alexsandra dos Santos, de 51 anos, abandonou a escola ainda jovem para criar os filhos. O marido não gostava que ela dividisse os cuidados com a casa e a família com os estudos e, apesar de gostar de estudar e sonhar em se tornar pedagoga, Alexsandra abandonou a escola no que seria, hoje, o oitavo ano do Ensino Fundamental. “Eu me separei dele e criei meus filhos sozinha. Quando eles cresceram e começaram a trabalhar, tirei mais aquela responsabilidade de cima de mim, e apareceu tempo para eu dedicar para mim”, conta Alexsandra, que, após sofrer uma depressão, resolveu voltar a estudar e, há três anos, se matriculou no EJA em Caicó. “Decidi voltar a estudar e realizar meu sonho de cursar pedagogia. Mesmo que eu não consiga trabalhar na área, eu pelo menos vou estar criando conhecimento”, conta Alexsandra, que trabalha como babá em Caicó.
A conclusão do Ensino Médio estava prevista para o meio deste ano, mas deverá ser adiada por causa da pandemia. Mas Alexsandra não desistiu das aulas: diariamente veste o uniforme da Grupo Escolar Senador Guerra, onde estuda, reúne os cadernos e liga na transmissão do EJA em Ação para dar início aos estudos. Ela acompanha pelo celular, e, quando a rede falha, recorre ao rádio. Nas aulas presenciais, Alexsandra conta que é a “mais animada” da turma. Diz que acha a aula não presencial mais cansativa, mas luta contra o desânimo e segue se preparando para o Enem. Durante o isolamento, incentiva os colegas a, como ela, fazer o acompanhamento diário do programa. “Sinto falta do contato com os professores, com os amigos, mas acredito que, se você não pode fazer uma coisa de uma forma, você tem que se adaptar para fazer de outra. Aprendi que temos que usar as ferramentas que a vida nos proporciona”.