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Austerlitz – colapso da memória

Filme registra os passeios turísticos aos campos de concentração e mostra a falta de cerimônia dos visitantes, que fazem selfies nos fornos crematórios

Eduardo Escorel | 14 out 2016_11h32
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É preciso um esforço considerável, além de grande disponibilidade de tempo, para enfrentar o gigantismo do Festival do Rio e conseguir assistir a algum filme da sua eclética programação. No domingo à tarde, a escolha recaiu em Austerlitz, de Sergei Loznitsa, documentário que estreou em setembro no Festival de Veneza.

Ao tomar emprestado o título do grandioso romance de W.G.Sebald, publicado em 2001, Loznitsa estabelece um elo entre sua própria “crise existencial” e Jacques Austerlitz, o protagonista do relato ficcional do autor alemão, conforme declarou ao The New York Times. Diante do crematório de Buchenwald (um dos maiores campos de concentração estabelecido na Alemanha, perto de Weimar, em 1937), Loznitsa se deu conta de que ele mesmo “era como um turista”. E ao mesmo tempo pensou, em meio à pesquisa de campo para o projeto de um filme sobre assassinatos em massa na Ucrânia, durante a Segunda Guerra: “Como posso ser? Como posso ficar aqui? Era como em um romance de Kafka. Eu não posso estar neste lugar. E minha pergunta é: como podemos preservar a memória? De forma geral, é possível compartilhar a memória?”

Na tentativa de decifrar esses enigmas, a camera de Loznitsa observa detidamente hordas de turistas em dois outros campos de concentração, também na Alemanha – Sachsenhausen, nos arredores de Berlim, e Dachau, ao norte de Munique. Ao longo desse aparente dia único de visita, a observação das levas de visitantes que vêm e vão, sempre em longos planos fixos, sugere o movimento das marés, impressão acentuada pelo oscilação entre momentos menos ruidosos e os de maior turbulência sonora.

Com a camera mantida à distância, não há sinais de que as pessoas observadas percebam que estão sendo gravadas. Elas usam roupas leves, com predomínio de shorts e camisetas, algumas estampadas com “Cool Story, Bro” ou “Jurassic Park”. É primavera ou verão e ninguém demonstra compreender o significado do lugar em que se encontra.

Sem narração em off, muito menos quaisquer entrevistas, além das imagens em preto e branco há tão somente som ambiente que permite ouvir algumas frases esparsas, principalmente dos guias turísticos (“Não se preocupe, esta não é a última vez que você poderá comer”, avisa, por exemplo, uma guia).

O olhar de Loznitsa não privilegia as instalações do campo em si. A camera se concentra mais nas atitudes ligeiras dos próprios turistas, na expressão dos seus rostos, sem revelar muito do que estão vendo. Conforme descrito no romance de Sebald, o olhar inquiridor de Loznitsa é tal qual “o encontrado em certos pintores e filósofos que exclusivamente olhando e pensando procuram penetrar a escuridão que nos cerca”.

O espectador, por sua vez, é induzido pela duração e fixidez dos planos a também perscrutar as imagens e aguçar os ouvidos – a olhar e pensar na tentativa de “penetrar a escuridão” que os cerca.

Sergei Loznitsa
Sergei Loznitsa

É só próximo ao fim do filme que a camera de Loznitsa oferece o ponto de vista dos visitantes. Por instantes, eles deixam de ser vistos de frente, passando a ser gravados de costas para a camera. É um dos momentos paroxísticos de Austerlitz, no qual os turistas são vistos diante dos fornos crematórios.

A falta absoluta de reverência dos visitantes observados por Loznitsa, e a ausência de qualquer ritual na visita, parecem confirmar a preocupação expressa por W.C.Sebald, em Austerlitz, com “a dissolução da nossa capacidade de lembrar, o colapso, l’effondrement […] que está em curso, correlato à propagação inexorável de dados processados”, e também com “a manifestação oficial do desejo progressivamente inoportuno de romper com tudo que ainda possui alguma conexão viva com o passado.”

Os visitantes estão mais preocupados com seus selfies do que qualquer outra coisa, como Austerlitz nos mostra diante do portão gradeado que abre e fecha filme, onde está reproduzida a infame frase Arbeit Macht Frei (o trabalho liberta), encontrada, entre outros campos de concentração, no de Auschwitz, na Polônia.

Cena final igualmente paroxística que um crítico americano chegou a considerar uma citação dos irmãos Lumière – “turistas saindo da ‘fábrica’ infernal” – na qual está flagrado “o uso de cair o queixo mais grosseiro imaginável de um ‘pau de selfie’.”

Nota: O post acima foi corrigido em 2 de fevereiro de 2017. A expressão “campos de concentração e extermínio” que havia três vezes no original, e estava errada, foi substituída por apenas campos de concentração.

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