Tradução de Rogerio Galindo
A guerra russa na Ucrânia é uma guerra planetária. Embora ocorra num único país, o conflito tem implicações para o mundo inteiro. Um dos primeiros atos da Rússia em sua tentativa de tomada do país foi ocupar a usina de Chernobyl, local do mais grave acidente nuclear do mundo. Mais recentemente, em um provável ato de sabotagem, os gasodutos Nord Stream 1 & 2, que ligam a Rússia e a Alemanha, emitiram aquela que talvez seja a maior descarga de metano (um gás mais perigoso do que o dióxido de carbono para o efeito estufa) já documentada. Sabotagem ambiental tem se tornado algo rotineiro durante os sete meses de guerra na Ucrânia. As tropas de Vladimir Putin atualmente ameaçam bombardear a maior usina nuclear da Europa. A invasão russa de um Estado soberano é uma das facetas de uma violação que ameaça a integridade ambiental do planeta.
E, no entanto, a tentativa russa de tomar o controle da Ucrânia não está saindo conforme o planejado. À medida que as cidades e províncias voltam a ser controladas pela Ucrânia, elas vão sendo “desocupadas”, uma expressão que sugere uma restauração da soberania territorial. Além de identificar as vítimas sepultadas em valas comuns e de reconstruir hospitais, fábricas, escolas e casas, há uma tarefa enorme pela frente: tornar o solo arável e o ar respirável, libertar as cidades grandes e pequenas dos perigos representados pela radiação, por vazamentos químicos e explosivos, e por reservatórios de água insalubres tornados perigosos pela contaminação com mercúrio e pela proximidade com as valas comuns. Bombas são meios de conquista territorial, mas podem também ser usadas para causar um grau de devastação em que formas de vida antes existentes não podem mais voltar. Essas consequências, dentre outras, precisam ser incluídas num “algoritmo da desocupação” que pode permitir a um país encontrar seu caminho após uma tentativa de aniquilação.
Mas não é apenas nas zonas de guerra que vemos a precariedade incitada pelo extremismo político. Com o extrativismo desenfreado e os ecossistemas do planeta cada vez mais instáveis, a possibilidade real de restaurar a vida após a ocupação é um desafio planetário. Isso nos obriga a fazer conexões entre circunstâncias aparentemente díspares, que são também cenas de uma corrida alimentada por autocratas para aparentemente sabotar a vida planetária.
Neste domingo, 30 de outubro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva irá enfrentar o atual presidente de extrema direita, Jair Bolsonaro, num segundo turno que muitos brasileiros consideram ser “a eleição mais importante para o país desde a ditadura militar”. Desde o começo de seu mandato, em 2019, Bolsonaro deu a garimpeiros, madeireiros e criadores de gado liberdade para desmatar a Amazônia brasileira. Depois de cortadas, as árvores são deixadas para secar em clareiras. Quando estão secas, são queimadas, limpando trechos de terra para o agronegócio. Dados de satélite mostram desmatamento em escala industrial. Os incêndios florestais atingiram os maiores níveis desde junho de 2007; em agosto deste ano, a Amazônia viu queimar uma área equivalente ao estado de Alagoas. A carnificina se retroalimenta: quanto mais incêndios, mais seca a floresta; e quanto mais seca a floresta, mais incêndios. E essas queimadas ilegais ocorrem cada vez mais em reservas indígenas onde, sob pressão implacável, os habitantes da floresta “sobrevivem à ocupação de [seus] territórios”. Como nesses locais a emissão de dióxido de carbono é significativamente menor, esses moradores prestam “um serviço não apenas para a Amazônia como também para o mundo”. Porém, sob o bolsonarismo, líderes indígenas que resistiram à ocupação foram assassinados impunemente.
O Brasil já tem um “algoritmo” para parar a aniquilação. Entre 2004-12, utilizando seu sistema de alertas de desmatamento, o país reduziu o desmatamento em surpreendentes 80%. Ao longo do caminho, também conseguiu diminuir drasticamente suas emissões de carbono. E esses sistemas tecnológicos que tornaram tudo isso possível podem se tornar ainda mais efetivos nas ações de proteção e reflorestamento. Nesse cenário desejável, um Lula reeleito nomeia lideranças qualificadas para os principais ministérios e órgãos de proteção aos indígenas e ao meio ambiente, como o Ibama, responsável pelo combate à atividade madeireira ilegal. Não apenas o ecossistema do crime ambiental seria desmantelado, mas a rastreabilidade da cadeia de suprimentos de commodities seria fortalecida. Até mesmo tratores e escavadeiras utilizados em crimes ambientais poderiam ser equipados com GPS para detectar operações em áreas proibidas. Nesse cenário, as práticas indígenas de “fazer florestas” ajudariam a moldar o futuro.
Os autoritarismos de hoje restringem tanto a democracia quanto um planeta habitável. Mas os sinais de um mundo pós-Putin e pós-Bolsonaro estão aparecendo nesse horizonte tenebroso. À medida que fica sem opções, o líder russo aumenta sua ameaça nuclear. À medida que o tempo se esgota para aqueles que agem ilegalmente na Amazônia brasileira, eles estão em uma “corrida contra o tempo para destruir a floresta”. Em ambos os casos, vemos atores desesperados, sedentos de poder, recorrendo a violações ambientais em escala planetária.
Enquanto a necropolítica dos autocratas segue adiante, também avança a corrida para reparar mundos destruídos. A Ucrânia e a floresta amazônica ficam a um mundo de distância entre si. No entanto, as pessoas que defendem a democracia e as florestas estão se tornando parte integral de uma luta maior e comum por um planeta habitável, para o qual não há outra opção a não ser desocupar.
* Link para o livro recém-publicado de Adriana Petryna em inglês: Horizon Work: At the Edges of Knowledge in an Age of Runaway Climate Change