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    Severiano Melo, no interior do Rio Grande do Norte, possui mais beneficiários do Auxílio Emergencial que habitantes Intervenção de Paula Cardoso sobre foto de Gabriel Amorim

questões de políticas públicas

Auxílio, fartura e incerteza

Cidade com 139% de adesão ao benefício de 600 reais vive boom de novos negócios

Lianne Ceará | 06 nov 2020_16h00
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Foi para alcançar o sonho de cursar enfermagem que Kananda Oliveira, 19, se mudou de Severiano Melo para Mossoró, ambas no Rio Grande do Norte, em 2017. Duas horas de viagem separam o campus da universidade da cidade onde ela nasceu e se criou. Com a pandemia e as aulas presenciais suspensas, Kananda preferiu voltar para sua casa. Sem trabalho fixo, viu no auxílio emergencial a primeira oportunidade de ganhar uma renda “fruto do seu suor e trabalho”. Começou um pequeno negócio virtual, vendendo camisetas femininas. No seu primeiro investimento, conseguiu vender sessenta blusas em menos de um mês e, desde então, tem aumentado os pedidos, e as vendas continuam crescendo.

Machucado pela seca, o município de Severiano Melo tem fontes de renda incertas. A atividade econômica mais importante é a cajucultura – e, quando há chuva, a terra do caju, como é conhecida na região, registra fartura na colheita e aquece sua economia. Os agricultores esperam com ansiedade o período chuvoso dos meses do início do ano e, mais ainda, as chuvas de agosto a outubro, a chamada chuva do caju. Em outubro, a cidade comemora com a tradicional festa do caju, agradecendo pela colheita. Neste ano, apesar da boa época chuvosa, a pandemia não permitiu que a comemoração acontecesse. 

Severiano Melo é uma cidade marcada pelo êxodo populacional. No último censo do IBGE, em 2010, a cidade de Kananda tinha 5.752 habitantes; hoje a estimativa é de 2.088. A explicação para essa redução é a saída da população em busca de estudo, emprego e renda. Mas muita gente mantém o título de eleitor na cidade mesmo depois de se mudar e, com isso, Severiano Melo tem mais eleitores registrados – 6.482 – que habitantes. Pelo mesmo motivo, o número de beneficiários do Programa de Auxílio Emergencial – 2.910 – também supera a população. Há beneficiários que já não vivem na cidade, mas, no programa assistencial, deram como endereço oficial a cidade de Severiano Melo.

Desde abril, o auxílio é como uma redenção em cidades mais pobres, principalmente no Norte e Nordeste, suprindo a queda na renda causada pela paralisação do comércio com a pandemia do novo coronavírus. Um estudo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) notou que o programa teve impacto maior nas localidades que registram um número mais alto de cadastrados através de programas sociais que, normalmente, são cidades mais pobres do Norte e Nordeste. Os estados com maior percentual de adesão ao auxílio em relação ao número de habitantes são Sergipe (66%), Piauí (40%), Bahia (39%), Pará (38%) e Maranhão (38%), segundo dados do Ministério da Cidadania. Todos os estados do Nordeste estão, pelo menos, nas quinze primeiras colocações. Em cinco unidades federativas – São Paulo, Rio Grande do Sul, Distrito Federal, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul -, foi notado que o valor destinado pelo auxílio não cobriu a perda de renda.

Ecio Costa, professor de Economia da UFPE e um dos autores da pesquisa, avalia que o programa cumpriu seu papel mas que, ao contrário de um programa de renda mínima, tende a suprir as necessidades em período curto de tempo. “O auxílio foi concebido para atender uma necessidade urgente. É diferente de um programa de renda mínima. O governo federal tem tentado implantar um desses programas no ano que vem, mas isso pode trazer impactos na economia e na estabilidade do país que já está comprometida”, ressalta.

Em Severiano Melo, assim como nos municípios que conseguiram movimentar a economia com o programa, a maioria dos 2.910 favorecidos pelo auxílio se cadastrou por meio dos programas sociais, acumulando os dois rendimentos. Só 573 beneficiários se inscreveram pelo aplicativo. A mãe de Kananda sempre foi dona de casa por causa de uma doença cardíaca e é beneficiária do Bolsa Família, por isso, desde a primeira parcela, as duas foram contempladas. “Só consegui capital para iniciar meu negócio a partir do auxílio, antes disso não imaginava que pudesse abrir uma loja virtual. Ainda mais porque muitas pessoas saem da cidade pela falta de oportunidade e acabam não voltando por achar emprego lá fora”, relata a filha. Se o desemprego de jovens atinge 30% em todo o país, numa cidade pequena com poucos horizontes à vista, a realidade é ainda mais angustiante. Kananda, com seu negócio online de camisetas, por enquanto vai driblando um futuro comum à juventude da cidade: ser sustentada pela família e não chegar à universidade. 

Mônica Alves, professora e proprietária de uma padaria, sempre morou em Severiano Melo. Este ano, viu seu negócio ir na contramão da crise e se expandir. O que antes era apenas uma fábrica de bolachas sem atendimento de balcão, se tornou uma panificadora com fabricação própria de bolos, pães, tortas e as tradicionais bolachas. Em setembro, a professora adquiriu as máquinas e o local de uma padaria que estava fechando, e, para essa vitória, Mônica declara um aliado: o aumento de vendas durante a pandemia. “Não sentimos os reflexos da pandemia no âmbito financeiro, a gente conseguiu dar uma levantada nos nossos negócios. As vendas aumentaram”, conta. Apesar da matéria-prima com alto custo, o auxílio deu uma injeção de ânimo no comércio da cidade. Com dinheiro na mão, cresceu a demanda e, com ela, a oferta.

A população de Severiano percebe a pulverização de novos serviços, dentre eles, delivery de comidas caseiras e lojas online de diversos segmentos. “A autonomia dos profissionais se intensificou, muita gente passou a trabalhar para si mesmo. Principalmente no ramo de alimentação, abrindo lanchonetes em casa mesmo ou vendendo por delivery”, pontua Mônica. 

O futuro, no entanto, gera anseios e incertezas. As parcelas do auxílio estão previstas para acabar em dezembro e o fim já preocupa comerciantes e beneficiários. Com o encerramento do programa, a economia pode demorar ainda mais a se recuperar, como explica Costa: “Certamente o fim do auxílio traz um impacto na recuperação da economia, porque esses recursos nas mãos das pessoas é destinado pro consumo e traz aquela sensação de aquecimento econômico de curto prazo.” Kananda já conseguiu cobrir os investimentos que fez, tem se planejado para continuar a manter o seu negócio mesmo quando a renda do auxílio não for mais uma garantia e espera que os clientes de Severiano permaneçam com o poder de compra. Em contrapartida, sem muito otimismo para janeiro, Mônica anseia que o investimento alto na padaria seja compensado. “Acho que vai dar uma desacelerada. O comércio vai sentir, vai sofrer, sim”, reflete. Entre anseios e inseguranças, a previsão é que a boa safra vivida pelo comércio local inicie 2021 com mau tempo – e não só na terra do caju.

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