Justamente na semana de finados, ocorreu na política social brasileira fato no mínimo extravagante: o Bolsa Família ressuscitou. Sim, no fim da noite de 5 de novembro de 2021, em edição Extra do Diário Oficial, o governo editou o Decreto nº 10.851, reajustando as linhas de pobreza e os valores de benefícios do Bolsa. É fato que, em termos legais, a Medida Provisória do Auxílio Brasil fixou o fim do Bolsa Família para 8 de novembro, mas, na prática, o último pagamento do programa ocorreu em 29 de outubro. Então por que reajustar, aos 45 do segundo tempo, um programa que perderia seu amparo legal em dois dias? O entendimento dessa decisão passa pela bagunça orçamentária na qual nasce o Auxílio Brasil e nas manobras necessárias para viabilizá-lo.
Em 9 de agosto de 2021, o governo enviou ao Congresso a MP no. 1.061/2021, definindo que o Bolsa Família daria lugar ao Auxílio Brasil em noventa dias. Ainda que a MP não defina os valores das linhas de pobreza e dos benefícios do novo programa, o governo se comprometeu em zerar toda a fila de espera do Bolsa Família (hoje em cerca de 2 milhões de famílias) e a pagar um benefício familiar mínimo de 400 reais por mês, até dezembro de 2022, o que implicaria, segundo as informações oficiais, elevar o orçamento anual dessa transferência de renda de 34,7 bilhões para cerca de 85 bilhões de reais.
Uma primeira manobra para viabilizar o valor do Auxílio Brasil foi fatiá-lo em dois – o permanente e o temporário –, de forma a inseri-lo nas exceções da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (Lei Complementar no. 101/2000). A LRF define que novas despesas de caráter continuado, de duração maior que 24 meses, precisam ser quantificadas e ter a indicação de sua fonte de custeio (Art. 17). Tornando parte do Auxílio Brasil uma despesa temporária, o governo se livra de cumprir essa determinação. Ainda assim, havia o compromisso de que o Auxílio Brasil permanente nasceria com valores maiores que os do Bolsa Família – e aí entra a ressurreição. A LRF excetua da necessidade de compensação financeira o reajuste de benefício de seguridade social, de forma a preservar seu valor real (art. 24), mas isso não poderia ser aplicado diretamente ao Auxílio Brasil, pois é um novo programa, com novos benefícios. Logo, o governo forneceu um último suspiro ao Bolsa, reajustando-o dentro da exceção da LRF, de forma a possibilitar que o Auxílio Brasil use esse orçamento ampliado como fonte de compensação financeira. É certo que o governo não precisava cair nesse enrosco, se houvesse se planejado minimamente para implementar o Auxílio Brasil, mas faz algum tempo que o planejamento abandonou a Esplanada.
O último suspiro do Bolsa foi também marcado por uma atualização acanhada das linhas de pobreza e extrema pobreza, que definem quem entra no programa. Desde seu último reajuste, fixado em maio de 2018, a inflação acumulada pelo INPC foi de 20,81%, porém, enquanto a recomposição do valor médio do benefício atingiu 17,84%, a das linhas ficou em 12%. Se aplicada a mesma correção às linhas, a de extrema pobreza passaria de 89 para 105 reais e a de pobreza, de 178 para 210 reais, mas elas ficaram, respectivamente, em 100 e 200 reais.
Essas diferenças parecem pequenas, mas impactam diretamente dois aspectos. Primeiro, a elevação da linha de extrema pobreza implica aumento no gasto com o Benefício de Superação da Extrema Pobreza, o complemento pago para garantir que nenhum beneficiário do programa fique abaixo da linha da extrema pobreza. Segundo, linhas de pobreza menores geram menores filas – uma linha de pobreza defasada é sempre uma maneira de o poder público fechar os olhos para a pobreza real. Fato é que o orçamento necessário para a recomposição integral dessa despesa de caráter continuado pela inflação provavelmente não caberia no teto de gastos, tal como não coube a promessa de zerar a fila atual do programa – a fila e o complemento orçamentário para levar o valor do benefício para 400 reais ficaram dependentes do programa temporário.
O teto fixa um limite anual de despesas primárias para o Poder Executivo. Na prática, a inclusão ou expansão de uma despesa requer o corte ou exclusão de outra, a não ser que tal despesa entre nas exceções ao teto. Pois, se para sair do enrosco da LRF é preciso um benefício temporário e se, para viabilizá-lo, é preciso alterar o teto, a racionalidade indicaria uma alteração direta e transparente no teto, excetuando dele o próprio programa temporário. Isso permitiria criar o benefício temporário até o fim de 2023, possibilitando, ao próximo governo, algum tempo para se planejar e atuar tanto em relação a esse benefício quanto em alterações coerentes sobre o teto de gastos.
Mas os chefes da Esplanada preferiram trilhar o caminho tortuoso da PEC 23/2021, a PEC dos Precatórios. A PEC 23 impõe um limite para o pagamento de dívidas judiciais da União com a população, estados e municípios. Ela basicamente crava, no texto constitucional, a gourmetização do famigerado “devo não nego, pago quando puder”. A fixação desse limite de pagamento e a mudança na fórmula de correção do teto pela inflação abrirão espaço fiscal de 90 bilhões de reais. Mas, afinal, porque abrir 90 bilhões de espaço no teto sob a justificativa de criar um benefício temporário aos mais pobres que consumirá cerca de 50 bilhões de reais adicionais? Para usar a proteção social como escudo que justifica a ampliação de diversos outros gastos, entre os quais estão os bilhões de reais reservados para o “orçamento secreto”, já considerado inconstitucional pelo STF.
Está hoje bastante clara a incapacidade da regra do teto de lidar com os desafios atuais do empobrecimento de parcela expressiva da população, tal como já estava, desde 2016, sua insustentabilidade para a manutenção de nossa proteção social num patamar minimamente aderente à Constituição de 1988. Mas a manobra de alterar o teto para deixar de pagar os precatórios faz exatamente o que não se deve fazer com uma regra: dar um jeitinho, viver de aparências. Os agentes econômicos entendem essa manobra como um sinal de alerta: essa âncora não segura esse barco, que está navegando num mar de instabilidade fiscal. E isso acaba por reduzir parte dos ganhos que a extensão do benefício social poderia proporcionar aos mais pobres, gerando inflação e aumento das taxas de juros mesmo num cenário de elevado desemprego.
Se a PEC 23 não passar no Senado, o Executivo buscará criar a fatia temporária do Auxílio Brasil por meio de créditos extraordinários. Outro jeitinho. Conforme a Constituição (art. 167), créditos extraordinários são valores adicionais, que não estão presos ao teto, mas devem ser usados em situações urgentes e imprevisíveis, como em casos de calamidade pública. Foram esses créditos que permitiram pagar o Auxílio Emergencial, comprar vacinas e atuar sobre a urgente e imprevisível pandemia de Covid-19. A pobreza atual é absolutamente urgente e a pobreza é, sempre, uma calamidade. Mas acreditar, após mais de um ano de pandemia, que nossos níveis de pobreza de 2021 seriam imprevisíveis é atestar a incapacidade completa do governo.
Os chefes da Esplanada tiveram três anos para planejar e desenhar a ampliação das transferências de renda cortando subsídios pouco efetivos e isenções tributárias não justificadas, e reorganizando programas sociais mal avaliados. Tiveram três anos para conduzir um debate sobre o aprimoramento do teto falido, que sinalizasse credibilidade. Mas optaram por improvisos na criação de um Auxílio Brasil fatiado em dois, com sua metade temporária terminando junto com o atual governo.
Com isso, e paradoxalmente, o governo transforma um programa de segurança mínima de renda num poço de insegurança, sob uma justificativa remendada, sem transparência, estulta e descompromissada com os níveis inaceitáveis de fome e pobreza que ora nos atingem. Infelizmente, faz todo o sentido: corre à boca miúda em Brasília que, em 1º de janeiro de 2019, quando o planejamento se despediu da Esplanada, não foi embora sozinho. Levou consigo a transparência, a competência, a idoneidade e o compromisso com a população. Resta-nos esperar que essa despedida, ela sim, seja somente temporária.