Organizado anualmente entre os meses de junho e julho, em uma Bolonha tomada pelo calor por vezes acachapante, o festival Il Cinema Ritrovato [em tradução livre: O Cinema Reencontrado] tem uma vasta programação, composta por mais de 500 filmes entre longas e curtas-metragens. A edição de 2017 foi a quarta em que tive o privilégio de acompanhar no festival. Uma boa parcela do público é, assim como eu, estrangeira. Há profissionais vindos de todo canto, na maior parte arquivistas, críticos, estudantes, programadores, cineastas ou simplesmente cinéfilos entusiasmados com a possibilidade de reencontrar os clássicos e de descobrir obras-primas esquecidas, muitas delas recentemente restauradas. Há pouquíssimos filmes novos, raras são as estreias badaladas. Como anunciado pelo próprio nome do evento, o festival é um local de encontro com essas obras, quase sempre apresentadas por pessoas envolvidas em sua preservação, mas também por membros da equipe que ainda estejam vivos.
Dividido em 21 mostras, neste ano foram apresentadas retrospectivas de recorte histórico ou dedicadas à cinematografia de um país (Tehran Noir ou A Era de Ouro do Cinema Mexicano), ou a grandes nomes do cinema mundial (Jean Vigo, Robert Mitchum, Projeto Keaton), além da revisão do trabalho de realizadores menos conhecidos como Nicole Vedrès e Helmut Käutner e da investigação das relações da escritora Colette com o cinema. Houve espaço também para discussões e aulas: Bernard Eisenschitz comentando as sobras de montagem e a restauração d’O Atalante, de Vigo, Naum Kleiman sobre Sergei Eisenstein, Dario Argento sobre sua própria obra, entre tantas outras apresentações.
Diante de um programa em boa parte composto por exibições únicas de filmes raros, fazer escolhas é inevitável. Arrisco dizer que todo espectador do festival, ao fazer suas escolhas, é tomado por uma consciência ansiosa, medrosa e quiçá melancólica: ao eventualmente optar por assistir a um filme que se revela “ruim”, podemos perder a chance de ver uma obra-prima. Em 2016, não consegui estar presente para a sessão de The House is Black (A Casa É Negra) realizado pela poeta iraniana Forough Farrokhzad em 1962. Como descreveu Chris Marker em nota do catálogo, Farrokhzad “foi diretamente ao mais insuportável de assistir: lepra, leprosos. E se era necessário o olhar de uma mulher, se é sempre necessário o olhar de uma mulher para estabelecer a distância certa com o sofrimento e o hediondo, sem complacência ou autopiedade, o olhar dela ainda assim transformava esse assunto, e evitando a armadilha do símbolo, conseguia ligar essa lepra a todas as lepras do mundo”. Vendo o filme em casa tempos depois, em uma cópia ruim no YouTube, me restou concordar com Marker e apenas imaginar o impacto desse filme imenso, ampliado pela projeção 35 milímetros em uma sala de cinema.
A forma de apresentação dos filmes é fundamental para a melhor apreensão do contexto de sua produção. Evidentemente não é possível reproduzir as mesmas condições das exibições cinematográficas de 100 anos atrás, mas é notável o esforço dos curadores em Bologna para oferecer ao público o que há de mais próximo do que seriam suas condições originais. Além do DCP (que não foi o formato de projeção predominante em 2017), há ainda projeções 35 milímetros nada triviais: projetam-se cópias de época em technicolor ou utilizando equipamentos do início do século passado, como um projetor à manivela.
Em meio a tantos eventos únicos, uma das projeções mais especiais a que assisti foi justamente aquela que “esgarçava” os próprios limites da exibição cinematográfica. A “performance projetiva” Monument Film concebida pelo cineasta austríaco Peter Kubelka, apresentada em 2014, foi composta por dois filmes complementares – Arnulf Rainer (1960) e Antiphon (2012). Utilizando dois projetores, Kubelka exibia os filmes em sequência, para em seguida projetá-los lado a lado e por último sobrepostos. Como explica o arquivista Oliver Hanley em texto para o catálogo do festival, ao se apropriar do que há de mais primordial no cinema (luz e escuridão, silêncio e som), a performance nos coloca diante da materialidade do aparato cinematográfico de forma gradual e complementar. O monumental estava justamente na construção paradoxal entre o que há de mais essencial no cinema e um elaborado sistema de projeção, que fez o público literalmente vivenciar essa simplicidade.
Olhando em retrospecto para as minhas escolhas na edição de 2017, que acabaram sempre por misturar filmes tão distintos, penso que elas foram muitas vezes pautadas por um interesse no contexto histórico dessas obras, nas quais opções estéticas e modos de produção estão intrinsecamente ligados. Esse foi o caso da projeção de filmes de Douglas Sirk – em cópias da época de seu lançamento nos anos 50 –, em que o contato com All That Heaven Allows (Tudo que o Céu Permite) e suas cores vibrantes e narrativa clássica potencializam o engajamento com um enredo romântico por excelência, que se encaminha para o apaziguamento dos conflitos, incluindo os de classe. No polo oposto da nostalgia, talvez em um dos poucos momentos do festival em que ela é revista de maneira efetivamente crítica, houve as exibições de filmes dos irmãos Lumière realizados em 1897, comentadas pelo historiador Aboubakar Sanogo. Se a discussão da apropriação de corpos negros por olhares brancos no cinema continua atual em 2017 – penso sobretudo no que é proposto pelo filme Corra! de Jordan Peele, cuja narrativa se constrói em torno desses apoderamentos (discussão abordada por Juliano Gomes em seu texto “Vaga carne, ou, a paz veste branco”) –, ela encontra eco em filmes como Repas des Négrillons I & II e Toilette d’un Négrillon I & II. Há 120 anos, uma vila Ashanti foi “recriada” em um parque de atrações em Lyon, onde seus habitantes eram expostos e filmados em situações íntimas, como por exemplo uma mãe visivelmente contrariada que dá banho em seu filho no chão. O próprio título dos filmes reforça o olhar “bestial” adotado por quem filma, sendo négrillon um termo em francês altamente pejorativo para pessoas negras. Aqui, a hierarquização fundamentalmente racista proposta pelo projeto colonial europeu é escancarada no que Sanogo chama de menimal (um jogo de palavras em inglês entre as palavras men – homens – e animal). [1] Diante desse conjunto de filmes, retratos do que há de mais abjeto na história cinematográfica, se torna impossível considerá-la apenas por um prisma celebratório e saudosista.
Seria enorme pretensão tentar resumir neste pequeno texto o resgate da memória proposto pelo Il Cinema Ritrovato. Há ainda as exibições ao ar livre na Piazza Maggiore, os filmes recuperados pelo World Cinema Project, a retrospectiva Cento Anni Fa… Em 31 edições o festival passou de um catálogo de três páginas com uma programação de um punhado de filmes para um catálogo de 500 páginas, com 500 filmes comentados em profundidade. Falar sobre o Il Cinema Ritrovato é inesgotável, assim como é o trabalho cotidiano e silencioso da preservação de filmes, que encontra nesse evento sua vitrine mais prestigiosa. Ao ver a programação de cada ano, muitas vezes me coloco a questão “mas afinal, que filmes são esses?”. A resposta é sempre dada pelos próprios filmes e pelas pessoas envolvidas em preservá-los. Se nem tudo na história do cinema é digno de celebração, o trabalho destas pessoas o é, justamente por nos lembrar disso.
[1] O texto completo de Aboubakar Sanogo para a apresentação deste programa de curtas pode ser encontrado no Catálogo da edição de 2017 do festival, que em breve deverá estar online no site do evento.