Na manhã de sexta-feira (8), a Calle Florida, uma das ruas mais famosas de Buenos Aires, recebeu um turista atípico. Vestindo uma camisa azul de manga curta, Jair Bolsonaro caminhou entre os pedestres enquanto se dirigia ao Hotel Libertador, na Avenida Córdoba, onde vivia, desde a vitória eleitoral, o novo presidente argentino, Javier Milei. A caminhada pelo Centro da cidade, explicou o deputado federal Eduardo Bolsonaro, tinha o objetivo de medir a popularidade de seu pai. A Calle Florida talvez seja um dos maiores pontos de concentração de brasileiros na capital argentina, com suas lojas de roupas e souvenirs. Cercado por turistas curiosos, Bolsonaro parou para fazer selfies e posou ao lado de um uniforme da Seleção Argentina. Estava acompanhado de agentes da Polícia Federal e bolsonaristas, entre eles o ex-caminhoneiro e deputado federal Zé Trovão (PL-SC).
O ex-presidente estava contente. A vitória de Milei deu ânimo à direita latinoamericana, que vivia um refluxo nos últimos anos – em 2019, o peronista Alberto Fernandez venceu a eleição na Argentina; em 2021, Gabriel Boric foi eleito no Chile com uma plataforma progressista; no ano seguinte, foi a vez de Gustavo Petro, na Colômbia, e Lula no Brasil.
Antes de sair às ruas naquela manhã, Bolsonaro deu uma longa entrevista à Rádio Mitre, veículo de comunicação do Grupo Clarín. Sublinhou o que, segundo ele próprio, são as semelhanças que compartilha com Milei: ambos começaram como vozes solitárias no Parlamento e, quando jogam futebol, costumam ficar no gol. “O triunfo de Milei tem um significado para o mundo. O mundo está dividido entre a esquerda e a direita. Algumas pessoas me diziam que devemos dialogar com os radicais de esquerda. Sou um pouco radical nesse sentido. [As pessoas da esquerda] não são opositores, são inimigos”, disse Bolsonaro, que, no Brasil, tem evitado declarações do tipo. O ex-presidente é alvo de mais de uma dezena de investigações e, em junho, foi declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Se nada mudar, só poderá se candidatar a um cargo público em 2030.
No saguão do Hotel Libertador, edifício construído para hospedar os turistas da Copa do Mundo de 1978, Bolsonaro e sua comitiva foram recebidos pelo ex-presidente Mauricio Macri, representante da direita moderada que, no entanto, entrou de cabeça na campanha ultradireitista de Milei. Os dois ex-presidentes, que conviveram pouco tempo como chefes do Executivo (Macri deixou o poder no final de 2019), subiram juntos até a suíte presidencial, onde Bolsonaro, agora vestindo um blazer, foi recebido pelo novo presidente.
A reunião com Milei começou às 10 horas e se estendeu até um pouco além das onze. Na suíte, um sofá e algumas poltronas foram dispostas em círculo. Bolsonaro e o presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, sentaram-se de frente para Milei, que vestia uma jaqueta de couro. Entre eles, estavam Eduardo Bolsonaro, o senador Ciro Nogueira (PP-PI), o sanfoneiro e ex-ministro do Turismo Gilson Machado e o assessor de Bolsonaro Fabio Wajngarten.
Quem não saiu do lado de Milei, durante todo o encontro, foi Patricia Bullrich, candidata derrotada da chapa Juntos por El Cámbio. Ela será ministra da Segurança do novo governo. Nascida numa tradicional família política, Bullrich integrou os Montoneros, grupo peronista que promoveu a guerrilha armada. Muitos de seus companheiros foram vítimas da ditadura argentina. Agora, passados cinquenta anos, reuniu-se sem constrangimento com um admirador da ditadura brasileira, a qual, ele lamenta, “matou pouco” (deveria ter matado “uns 30 mil”, disse Bolsonaro, número próximo ao de mortos e desaparecidos na Argentina).
“Nem Villarruel diria isso”, comentou um experiente jornalista portenho. Victoria Villarruel é a nova vice-presidente da Argentina. Seu pai, Eduardo Villarruel, e seu tio, Ernesto, atuaram em aparelhos de repressão durante a ditadura. O primeiro se diz orgulhoso do que fez; o segundo foi condenado em 2015, mas teve a condenação suspensa por motivos de saúde. Victoria é conhecida por insinuar que, na Argentina, não se conta a “história completa” da ditadura. Por ora, ela não foi contemplada com nenhum ministério do futuro governo.
“Nós defendemos a liberdade, a democracia, o livre comércio”, disse Bolsonaro em frente ao Hotel Libertador, depois do encontro. No Twitter, onde registrou o encontro, o ex-presidente grafou errado o nome de seu anfitrião, chamando-o de “Miley”. O argentino, por sua vez, disse ter sentido orgulho por receber Bolsonaro, “a quem tanto admiro por sua luta contra a esquerda internacional”. Na suíte presidencial, ao lado de Eduardo Bolsonaro, gravou um vídeo gritando um de seus slogans de campanha: “Viva la libertad, carajo!”
Bolsonaro, Zé Trovão ao lado, foi foto de capa no Clarín de sábado (9). O jornal destacou suas declarações, nada fora do esperado: o ex-presidente se disse “amigo” de Milei e celebrou que suas convicções econômicas vêm da “escola austríaca” – isto é, ultraliberais, tais quais as de Paulo Guedes. O presidente Lula, chamado por Milei de “comunista e corrupto”, não viajou a Buenos Aires. Enviou em seu lugar o chanceler Mauro Vieira.
A posse foi marcada pela ausência de chefes de Estado de grandes potências. Nem Joe Biden nem Xi Jinping foram à Argentina, assim como Emmanuel Macron, presidente da França, e os primeiros-ministros da Alemanha e da Inglaterra, Olaf Scholz e Rishi Sunak.
Sozinha na festa, a ultradireita triunfou. Além da vasta comitiva bolsonarista – eram cerca de cinquenta pessoas, entre parlamentares, governadores e assessores –, estiveram em Buenos Aires o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán (que em 2025 completará dezesseis anos no poder); o presidente do Vox, partido da extrema direita espanhola, Santiago Abascal; e o direitista chileno José Antonio Kast. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, também apareceu. Foi sua primeira viagem à América Latina desde o início da guerra contra a Rússia. Sentiu-se a falta de Donald Trump, que já prepara sua candidatura a presidente no ano que vem, e Giorgia Meloni, primeira-ministra italiana.
Kast, assim como Bolsonaro, foi derrotado nas urnas e se esbaldou em Buenos Aires. Os dois posaram juntos para fotos e jantaram em um restaurante no Puerto Madero, bairro rico da capital, na noite de sexta-feira. Na manhã seguinte, o brasileiro trocou afagos com Orbán, um de seus ídolos e maiores aliados enquanto foi presidente. Abraçaram-se e fizeram um pequeno pronunciamento para uma claque de deputados federais, entre eles Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e Bia Kicis (PL-DF), e influenciadores da extrema direita, como o youtuber libertário Paulo Kogos. “A direita está crescendo não só na Europa, mas em todo o mundo”, tuitou Orbán, referindo-se a Bolsonaro como “meu bom amigo”.
A viagem de Bolsonaro durou cinco dias. Sobrou tempo até para ser tietado por Kogos, um anarcocapitalista que costuma render memes devido a sua visão de mundo exótica. “Todos os esquerdistas num raio de 10 km entraram em síncope”, tuitou o jovem rapaz, ao postar uma foto com o ex-presidente. “O túmulo de Karl Marx sofreu uma rachadura.”
A imprensa estrangeira não foi autorizada a entrar no Congresso Nacional, onde teve início a cerimônia de posse no domingo. As restrições ao trabalho jornalístico foram maiores do que as impostas por Bolsonaro em janeiro de 2019. No palácio presidencial, onde Milei recebeu as delegações estrangeiras, só entraram funcionários da comunicação oficial.
A caminho da Praça do Congresso, muitas bandeiras da Argentina e uma multidão tranquila. As comparações com o bolsonarismo são pertinentes em muitos aspectos, mas há muitas diferenças entre a eleição de um e de outro. Milei não conta com uma militância tão organizada quanto Bolsonaro, e o clima da Argentina de 2023 não é tão belicoso quanto o do Brasil em 2018. Foi uma eleição centrada no debate econômico, como não poderia deixar de ser: nos últimos oito anos, a inflação saltou de 30% para cerca de 140% ao ano.
As palavras de ordem mais presentes, nos cartazes e nos gritos da multidão, eram “Miedo! La casta tiene medo!”, frase repetida à exaustão durante a campanha eleitoral. Num desses momentos, Ángel, um vendedor ambulante que passava perto do Congresso, comentou: “Bullrich não é da casta política? Macri?” Ninguém deu muita bola para sua observação.
A cerimônia no Congresso, onde é feita a troca de faixa presidencial, é realizada tradicionalmente ao meio-dia. Neste ano, começou às onze – na imprensa, comentou-se que a mudança foi recomendada por um astrólogo com quem Milei costuma se consultar. Em vez do tradicional discurso dentro do Congresso, o presidente argentino falou à população que estava do lado de fora, em frente ao edifício neoclássico, remanescente do tempo em que Buenos Aires, enriquecida pela parceria com o Reino Unido e pela alta produtividade da pampa úmida, tinha a ambição de ser uma Paris à margem do Rio da Prata. É essa Argentina, mais mítica do que real, que Milei promete trazer de volta. “Acabou o tempo da decadência, começa o tempo da prosperidade”, prometeu o presidente, no discurso.
Bolsonaro assistia atentamente, sentado na fileira à direita do púlpito – uma honraria reservada apenas a chefes de Estado. Acompanhado do filho Eduardo, o ex-presidente brasileiro foi cumprimentado por simpatizantes de Milei quando se dirigia ao Congresso. À tarde, foi recebido de maneira calorosa na Casa Rosada. Apertou com força as mãos de Milei, que correspondeu, e os dois em seguida se abraçaram, trocando tapas nas costas.
Visto como esperança para a extrema direita internacional e para parte dos argentinos espoliados pela inflação, Milei não terá vida fácil. Comparado a Bolsonaro em 2018, elegeu uma bancada modesta de 38 deputados (de um total de 257) e oito senadores (dentre 72). Seu partido, Libertad Avanza, é hoje o terceiro maior no Congresso. A oposição peronista é mais numerosa, e se irritou com o gesto de Milei, que emulou Donald Trump ao discursar para a multidão em frente ao Congresso. O republicano foi pioneiro ao fazer isso em 2017.
“A vitória na batalha não depende do número de soldados, mas sim das forças que vêm do céu”, disse Milei, ao encerrar o discurso de posse. É uma citação ao Livro dos Macabeus, obra dividida em dois volumes que faz parte do Velho Testamento. Tal qual Bolsonaro, que enquanto presidente recitava aos quatro ventos o Evangelho de João – “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” –, Milei achou um trecho bíblico para chamar de seu.
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