“Escroto” conta como um palavrão? Outro dia, me peguei pensando a respeito, e por motivos tortos. Na acepção primeira dos dicionários, “escroto” é o termo formalmente “correto” para designar o que na linguagem coloquial chamamos de “saco”– a bolsa de pele que abriga os testículos. Talvez porque nomeie um pedaço pouco elegante da anatomia masculina, a mesma palavra converteu-se em um dos mais expressivos xingamentos da língua portuguesa – uma condenação moral definitiva e inapelável, como era “canalha” na crônica e no teatro de Nelson Rodrigues.
Acho mesmo bem curiosa a dualidade da palavra – neutra e objetiva no consultório de andrologia; vulgar e ofensiva no bate-boca de boteco. Mas a pergunta que me levou a essas especulações semânticas era, na origem, estúpida.
Foi quando encontrei “escroto” em O avesso da pele – onde a palavra é usada por Henrique Nunes, o protagonista negro, para qualificar seu patrão assumidamente racista – que me vi transformado em um puritano empedernido, sondando a vulgaridade do termo. Só me detive sobre a palavra porque o romance de Jeferson Tenório está sendo censurado em escolas públicas, e uma das razões alegadas para limitar sua distribuição são os palavrões (embora “escroto” não tenha aparecido na controvérsia). De certo modo, li o livro como um censor.
Deixei-me levar pelo poder insidioso que a censura tem de se impor sobre seus objetos. Em uma conferência de 2012, Salman Rushdie alertou para esse problema: “O censor rotula a obra como imoral, ou blasfema, ou pornográfica, ou controversa, e essas palavras ficam para sempre penduradas, com um albatroz, em torno do pescoço desses marinheiros amaldiçoados: as obras censuradas.”
O albatroz é uma referência a A balada do velho marinheiro (1798), poema do inglês Samuel Taylor Coleridge, no qual um marinheiro que matou uma dessas aves é obrigado, como punição, a carregar a carcaça do animal em volta do pescoço. Rushdie apresenta alguns exemplos de obras marcadas pela censura, como O amante de Lady Chatterley (1928), de D.H. Lawrence, mas não fala do avestruz que penduraram em seu próprio pescoço: a fatwa decretada pelo aiatolá Khomeini, em 1989, contra o autor de Os versos satânicos, publicado no ano anterior.
A censura a O avesso da pele foi, de início, uma episódio municipal. Janaina Venzon, diretora de uma escola pública na cidade gaúcha de Santa Cruz do Sul, protestou, no Instagram, contra a inclusão do romance de Tenório no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), que distribui livros para escolas. No vídeo publicado na rede, ela critica a descrição de situações eróticas em linguagem vulgar (que não é a tônica do livro). Apresenta, como evidência, dois trechos breves do terceiro capítulo. O tema desses excertos é a relação que Henrique Nunes teve com uma mulher branca, e as tensões que as diferenças raciais impuseram ao casal. Mas não é possível saber disso só a partir da leitura de uma frase isolada em que se fala de um “pau negro” e de uma “boceta branca”.
Os livros do PNLD são distribuídos atendendo à demanda das escolas – ou seja, O avesso da pele só chegou à unidade dirigida por Venzon por requisição dos professores, aprovada por ela. Em uma entrevista em vídeo para o GAZ, site jornalístico da região de Santa Cruz do Sul, a diretora afirmou que duzentos exemplares do livro chegaram à escola sem terem sido requisitados. Horas depois da entrevista, mandou uma mensagem corrigindo a informação: o pedido havia, sim, sido feito pela Área de Linguagens da Escola.
No Rio Grande do Sul, a Secretaria Estadual de Educação não entrou na pilha da diretora: manteve a distribuição de O avesso da pele. Mas o caso repercutiu nacionalmente, e então os governos do Paraná, de Mato Grosso do Sul e de Goiás recolheram o livro das bibliotecas. São três estados cujos governadores foram eleitos no embalo do bolsonarismo (ironicamente, O avesso da pele foi incluído no PNLD durante o governo de Jair Bolsonaro). Em Goiás, no ano passado, já se verificara uma situação de censura literária: a Universidade de Rio Verde (UniRV) retirou Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, romance de Marçal Aquino, da lista das leituras do vestibular por pressão do deputado federal Gustavo Gayer, do PL. Também nesse caso a exclusão do livro baseou-se no moralismo mais estreito e tosco: Gayer alega que a obra de Aquino tem “absurdos pornográficos”.
A censura que conhecemos do tempo da ditadura – aquela que tinha seu próprio departamento, com funcionários especializados, e que proibiu Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e Feliz ano novo, de Rubem Fonseca – essa censura acabou. A liberdade de expressão, porém, está longe de ser um princípio absorvido ou sequer compreendido pela sociedade brasileira. A censura pulverizou-se em muitas variedades, algumas delas exercidas por meios judiciais, outras, por formas variadas de pressão social – cancelamentos, boicotes, intimidação online, manifestações para impedir palestrantes indesejados de falar em eventos públicos.
Há censores nos dois lados do espectro ideológico. O cerceamento de bibliotecas escolares, porém, têm sido uma prática típica da direita populista. Ron DeSantis, governador republicano da Flórida, está na ponta de lança dessa tendência. Os limites que seu governo impôs às bibliotecas escolares são tão vastos e vagos que alguns professores e bibliotecários, inseguros sobre quais livros poderiam ou não ser oferecidos às crianças, já se viram compelidos a cobrir as estantes com papel. É uma imagem eloquente do obscurantismo: livros escondidos para que os alunos não possam vê-los.
O PNLD destinou O avesso da pele para o Ensino Médio. O programa federal confere autonomia a escolas e professores, que podem escolher com que livros vão trabalhar. É perfeitamente aceitável que uma escola decida não utilizar a obra de Tenório, optando por outros títulos. A censura só entrou na história porque os livros foram pedidos pela escola de Santa Cruz do Sul – ao que parece, por engano ou distração da diretora –, para serem rechaçados, e com publicidade escandalosa em rede social.
A alegação de que O avesso da pele é impróprio para adolescentes, baseada em termos chulos que aparecem só quatro vezes em um livro de 192 páginas, não para em pé. “É uma forma de subestimar o adolescente. Como se esse adolescente não tivesse acesso à internet, a conteúdos proibidos”, ponderou Jeferson Tenório, em entrevista ao GAZ.
Os “conteúdos proibidos” estão mais acessíveis, de fato. Antes do Pornhub, éramos obrigados a buscá-los até no lugar mais improvável: a biblioteca.
Da janela da sala de aula, víamos, sobre a elevação suave de uma colina, a igreja e o austero cemitério luterano. Perto da igreja, em um prédio baixo, funcionava a biblioteca municipal. No horário do recreio, às vezes subíamos até lá para buscar livros. Naquela distante década de 1980, Estância Velha, cidade gaúcha do Vale do Rio dos Sinos onde passei parte da infância e quase toda a adolescência, não tinha livraria. Não sei se tem hoje.
Na biblioteca, o título mais cobiçado era O fã-clube. Publicado em 1974 pelo americano Irving Wallace, já era um best-seller defasado no tempo em que eu cursei a sétima série do Primeiro Grau, como então se chamava o Ensino Fundamental. Mas a notícia passava de uma turma para outra na Escola Estadual 8 de Setembro (atual Colégio Estadual 8 de Setembro): aquele livro tinha cenas fortes de sexo. Muitos o retiravam só para ler as passagens mais picantes.
Eu li a coisa toda.
O fã-clube narra a história de quatro homens que sequestram uma estrela de cinema e a confinam em uma casa isolada para forçá-la a fazer sexo com eles. A atriz encontra meios de manipular seus captores – e no final tem sua vingança. Olhando em retrospecto, acho um tanto perturbador que os coleguinhas buscassem com tanta ânsia as passagens do livro que descreviam estupros. Talvez eu possa colocar essa patologia na conta da repressão sexual da ditadura, então em seus anos finais…
Não gostei muito de O fã-clube. Mas eu não lia coisa muito melhor nesse tempo: quase só best-sellers vagabundos, que eu imaginava serem livros “adultos”. Meu escritor favorito então era o australiano Morris West, hoje um nome completa e justamente esquecido. Demoraria uns bons anos para que eu descobrisse outras possibilidades na mesma biblioteca, começando por Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa e chegando a Franz Kafka e Jorge Luis Borges.
Nas aulas de Língua Portuguesa, a primeira leitura obrigatória na sétima série foi O tronco do ipê (1871), de José de Alencar. Depois de trabalhar com esse questionável clássico, a professora nos deu a liberdade de escolher os próprios livros (um por bimestre, creio), desde que apresentássemos uma detalhada ficha de leitura sobre cada um deles. Ninguém ousou trabalhar com O fã-clube.
Esse descolamento entre os objetos culturais que os alunos buscam e aqueles que a escola exige é inevitável – e, em certa medida, desejável: a educação existe para mostrar aos educandos aquilo que eles ainda não conhecem. Mas lamento que um livro ruim como O fã-clube tenha nos mobilizado mais do que aquilo que líamos em sala de aula.
O livro O avesso da pele inventa uma outra sala de aula. Henrique Nunes, o protagonista do romance, é um desencantado professor de uma escola pública na periferia de Porto Alegre. Ele reencontra a alegria de sua profissão quando, de improviso, consegue relacionar o cotidiano violento de seus alunos aos assassinatos que dão o impulso inicial à narrativa de Crime e Castigo (1866). Consegue transmitir aos alunos o entusiasmo que sente pelo romance de Dostoiévski, e torna os dramas de consciência de Raskólnikov presentes, palpáveis. Até que a violência real vem ao seu encontro: Henrique é morto em uma abordagem policial. Sua história é narrada pelo filho, Pedro.
Em um livro muitas vezes amargo no seu retrato do racismo, da violência e das precariedades sociais brasileiras, o episódio do professor que encanta uma turma difícil com a leitura de trechos de um clássico russo faz soar uma nota romântica um tanto simplista. Mas gostaria de acreditar que o feito de Nunes ainda é possível. Para tanto, um professor precisaria de uma compreensão íntima do que a literatura pode oferecer ao jovem leitor, e do que ela nunca pretendeu oferecer a ninguém. O ímpeto de barrar o acesso do estudante a livros “imorais” ou “vulgares” talvez nasça dae falta dessa compreensão.
Em entrevista ao Estadão, a diretora Janaína Venzon reconheceu méritos em O avesso da pele (“a obra é elogiável quanto à discussão sobre o racismo estrutural”), mas diz que suas “terminologias” (suponho que esteja falando dos palavrões) vão “ao desencontro” do “trabalho pedagógico” que a escola desenvolve. A obra não serviria para “construir a questão da boa conduta, dos valores éticos”.
Compreendo a preocupação da educadora com a formação dos alunos. O que considero equivocado é a ideia de que um livro possa servir à deformação do caráter. Transparece aqui a noção de que a literatura é um receituário de boas maneiras. Não é: a ficção nos convida a entender (o que não é o mesmo que aprovar) até o ponto de vista de vilões, canalhas, assassinos – como Macbeth, Meursault e o já citado Raskólnikov. De resto, os adolescentes não são essas criaturas impressionáveis que se deixam influenciar por tudo o que leem ou veem. Até porque com frequência eles já leram e viram mais do que supomos: tenho certeza, por exemplo, de que os poucos palavrões empregados pelos personagens de Jeferson Tenório não lhes são estranhos.
“Oh! Sejamos pornográficos / (docemente pornográficos)”, diz Carlos Drummond de Andrade no poema Em face dos últimos acontecimentos, de Brejo das almas (1934), seu segundo livro. Na última entrevista que concedeu, para o jornalista Geneton Moraes Neto, o poeta mineiro lembraria que esses versos foram usados para atacar, de forma indireta, seu amigo e chefe Gustavo Capanema, ministro da Educação do governo de Getúlio Vargas: “Uma das coisa que diziam era o seguinte: ele [Capanema] é um ministro que tinha, como chefe de gabinete, um poeta que dizia ‘sejamos pornográficos’. Era o conselho que eu dava às moças e aos rapazes do Brasil: a pornografia…”
Não há nada de realmente pornográfico no poema, mas o moralista tacanho não compreende essa ironia. Ele se escandaliza com as palavras e usa o escândalo para motivar o pânico moral, sua arma na guerra política. A censura viceja nessa matéria escrota: a combinação de ignorância, santimônia e má-fé.