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    Ararinhas-azuis em cativeiro na Associação de Conservação dos Papagaios Ameaçados (ACTP): neste sábado elas voltam à natureza Foto: Reprodução Facebook/ACTP

anais da ornitologia

Azul da cor do Sertão

Após 22 anos sumidas da natureza, ararinhas-azuis voltam neste sábado ao seu hábitat

Roberto Kaz | 10 jun 2022_15h18
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O evento só não é sem precedentes porque de fato houve um precedente. O ano era 1995. Havia uma última ararinha-azul solta na natureza, nas imediações do Riacho da Melancia, uma região da Caatinga a duas horas de carro de Juazeiro, na Bahia. Na falta de um parceiro da mesma espécie, a ave acabara se juntando a uma maracanã – um psitacídeo de tamanho e hábitos parecidos, porém muito mais numeroso na caatinga. Biólogos do Ibama elegeram então uma ararinha-azul de cativeiro, que vivia num aviário em Recife, para uma missão um tanto suicida. No dia 17 de março daquele ano, a ave, uma fêmea, seria solta, na esperança de que pareasse com o último animal selvagem, constituísse família e, quem sabe, repovoasse a Caatinga, qual Noé com sua arca. Em vão: três meses depois, a ararinha recém-liberta desapareceu – não se sabe se por obra de algum caçador, ou de algum animal que a tenha predado (houve também boatos de que ela tenha sido eletrocutada num fio de alta tensão). Sozinha, a última ararinha voltou a viver com uma maracanã, até também sumir de vista, dali a cinco anos. Em 2000, quando só havia ararinhas em cativeiro, a espécie foi declarada extinta na natureza.

Corta para 3 de março de 2020. Após um bem-sucedido programa de reprodução no Catar e na Alemanha, 52 ararinhas voam em dois aviões fretados, com destino ao aeroporto de Petrolina (poderiam ter vindo em um único voo, mas optou-se por dividi-las em dois grupos para evitar o pior cenário na hipótese de um dos aviões cair). Chegando ao Brasil, o grupo foi avaliado no aeroporto e escoltado, pela Polícia Federal, até um enorme centro de reprodução erguido no Riacho da Melancia – exatamente onde a espécie vivia antes de ser praticamente aniquilada. E é lá que todos os animais permanecem desde sua chegada. Ou melhor, quase todos, porque oito serão soltos neste sábado, 11 de junho, em uma nova tentativa – essa bem mais planejada e ambiciosa – de repopular o Sertão com uma das espécies mais carismáticas da ornitologia.

O bem-sucedido caso de regeneração da cyanopsita spix tem nome e sobrenome: Cromwell Purchase, um biólogo sul-africano de 44 anos, que dedicou a última década à reprodução da espécie – primeiramente in vitro, e depois in natura. “Quando comecei havia menos de cem ararinhas vivas em cativeiro”, ele lembrou, em uma conversa recente no aviário onde estão os animais, no Riacho da Melancia. “Comecei reproduzindo cinco por ano, até que o processo se aperfeiçoou. Hoje já fazemos mais de trinta por ano.” A espécie conta com 261 animais, segundo a última contagem oficial, de dezembro de 2021.

Cromwell Purchase é um homem alto, magro e sério, que colecionava aves desde criança, quando vivia na África do Sul. “Sempre tive paixão por psitacídeos, mas sobretudo pela ararinha-azul, que já era um animal muito raro.” Por escassa que era, a ararinha já estava associada a poder e status. No Brasil, o empresário Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados (e criador do Museu de Arte de São Paulo, o MASP) contava com uma ararinha para chamar de sua – assim como o marechal Tito, que comandou a resistência da Iugoslávia aos ataques nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Cromwell atribui a mítica em torno da ave à coloração de sua penugem. “Azul é uma cor muito rara. Me diga quantas espécies na natureza são azuis”, desafiou.

Para além da caça e do tráfico, a ararinha-azul ainda contava com um segundo adversário: o bode – animal magro e resistente como o sertanejo, que chegou à região no século XIX, junto com as primeiras plantações. Criado solto, alimentando-se de toda sorte de planta, o bode acabou diminuindo drasticamente a quantidade de caraibeira, favela e pinhão, de onde vinha a principal fonte de alimento da ararinha. Pressionada pela sanha humana e pela falta de alimento, a ave acabou padecendo. Fim do primeiro ato. 

 

O segundo ato dessa história tem um personagem inusitado (mas nem por isso imprevisível): Saud bin Muhammed Al Thani, um dos sheiks do Catar. Em 1997, ao assumir o posto de ministro da Cultura, Al Thani foi incumbido de montar coleções de arte que fizessem jus ao poderio econômico do país, minúsculo em tamanho mas enorme em reservas de petróleo e gás. Adquiriu quadros, esculturas, relíquias, fósseis e um outro símbolo de poder e status: animais exóticos. Em 2002 recebeu um casal de ararinhas-azuis de um colecionador filipino chamado Antonio de Dios (“colecionador” é um termo eufemístico, dado que o comércio da ave não é legalizado). Tomou tanto gosto pelo bicho que três anos depois já havia conseguido mais de trinta, de outros dois colecionadores. Criou uma fundação preservacionista – a Al Wabra –, construiu viveiros extremamente bem equipados e, em 2010, contratou um jovem biólogo sul-africano chamado Cromwell Purchase.

“Eu tinha acabado de terminar meu PHD em nutrição e fisiologia de aves”, contou Purchase. “Não queria me inscrever no edital da Al Wabra, mas acabei fazendo por insistência da minha mulher.” Uma vez no Catar, Purchase passou a aperfeiçoar a inseminação artificial das ararinhas, até então muito incipiente, como ocorre com os pandas. “Comecei fazendo cinco por ano, e foi crescendo exponencialmente. No ano passado nasceram cinquenta, e de forma natural.”

Purchase e as ararinhas teriam prosseguido no Catar, não houvesse o sheik morrido, em 2014. Quatro anos depois, a coleção, já com 120 ararinhas, foi transferida para Berlim, onde fica a ACTP, sigla em inglês para Associação de Conservação dos Papagaios Ameaçados, do colecionador alemão Martin Guth. A transferência recebeu o apoio do ICMBio, que supervisiona o caso há dez anos, por se tratar de um animal endêmico do Brasil. Como contrapartida, o instituto propôs que parte das aves fosse repatriada, de forma a evitar o risco de que todas permanecessem no mesmo local. Guth concordou e construiu uma sede da ACTP no município de Curaçá, na Bahia, onde fica Riacho da Melancia. Em 2020, quando os primeiros aviários ficaram prontos, 52 ararinhas foram repatriadas – com Cromwell Purchase a tiracolo.

Na foto acima, a sede da ACTP no município de Curaçá, na Bahia; abaixo, o Sertão que receberá de volta neste sábado as oito ararinhas reintroduzidas na natureza – Foto: Roberto Kaz

Quem visita a sede da ACTP, em Curaçá, se deixa impressionar pela qualidade. O local tem dezesseis aviários para casais – as ararinhas costumam ter relações estáveis – e três aviários coletivos, sendo um deles com 10 metros de altura, que é onde estão as oito ararinhas que serão reintroduzidas na natureza no próximo sábado. Na sede, há cartazes pregados na parede, descrevendo como e quando deve se dar a alimentação dos animais. O mix de frutas e legumes, servido a cada dois dias, deve ter “meia manga, uma goiaba, dez uvas verdes, dez a quinze uvas roxas, um pedaço de melão, uma maçã, uma pera, um ou dois pedaços de pitaya, um terço de romã, meio mamão sem sementes e sem casca, um kiwi, um terço de um pote de abóbora, três a quatro pedaços de batata doce, meia cenoura e meio maracujá”. 

A equipe é enxuta. Além de Cromwell e de sua esposa, Candice Purchase, há um pequeno grupo de brigadistas do ICMBio sob a supervisão da veterinária Camile Lugarini. Nos últimos seis anos, Lugarini tem ido constantemente a Curaçá para preparar a população local para o retorno das ararinhas. “Não é só um projeto de reintrodução do animal na natureza”, ela explica. “É um projeto social, que precisa incluir os moradores da região, para que eles ajudem a proteger a ararinha.” Além disso, a empreitada tem um braço ambiental: algumas fazendas foram rodeadas com cerca, para evitar que as mudas de caraibeiras sejam comidas por bodes. Ou seja: em última instância, a ararinha será também uma agente de reflorestamento da área.

 

Dona de uma casa delicadamente arborizada, quase um oásis no meio do Sertão árido, Maria de Lourdes da Silva Oliveira, de 55 anos, conta que seu pai concedeu um terreno de 28 hectares para a SAVE Brasil – uma ONG especializada na conservação de aves na natureza – para que o terreno fosse preparado para o retorno da ararinha. “Ele falou que queria que os netos dele vissem o que ele viu.” Antonio Marçal dos Santos, o Toinho dos Prazeres, de 74 anos, foi um dos vaqueiros treinados informalmente pelo Ibama, no passado, para vigiar as últimas ararinhas. “Os traficantes pegavam e ninguém ligava, nem entendia a importância do bicho. Lembro do dia em que saíram duas voando, e só voltou uma pra árvore.” Hoje Toinho mora na cidade de Curaçá, e passa o dia talhando em madeira pequenas esculturas da ararinha.

Maria de Lourdes da Silva Oliveira em sua casa: ela conta que a população espera o retorno das ararinhas - Foto: Robeto Kaz
Maria de Lourdes da Silva Oliveira em sua casa: ela conta que a população espera o retorno das ararinhas - Foto: Robeto Kaz
Moradoras de Curaçá e o escultor de ararinhas Toinho dos Prazeres - Foto: Roberto Kaz
Moradoras de Curaçá e o escultor de ararinhas Toinho dos Prazeres - Foto: Roberto Kaz
Maria de Lourdes da Silva Oliveira em sua casa: ela conta que a população espera o retorno das ararinhas - Foto: Robeto Kaz
Maria de Lourdes da Silva Oliveira em sua casa: ela conta que a população espera o retorno das ararinhas - Foto: Robeto Kaz
Moradoras de Curaçá e o escultor de ararinhas Toinho dos Prazeres - Foto: Roberto Kaz
Moradoras de Curaçá e o escultor de ararinhas Toinho dos Prazeres - Foto: Roberto Kaz

Se não houver contratempo, o recinto com as oito ararinhas-azuis será aberto no sábado (11) pela manhã. Elas serão soltas junto com oito maracanãs selvagens, da própria região, que foram capturadas por brigadistas do ICMBio e ambientadas com as ararinhas, para servir de “guia local”. O projeto inclui riscos, dado o histórico do animal, mas Cromwell Purchase acredita que a espécie já conta com uma população suficiente em cativeiro, para justificar a aposta na empreitada. “É um milagre e um alívio que isso esteja acontecendo.” O vaqueiro José Luiz Gomes dos Santos, de 56 anos, que chegou a ver a última ararinha solta, 22 anos atrás, corrobora: “É igual pai e mãe quando morre, você acha que não vai voltar mais não. Mas eu tava errado, o bicho foi lá e voltou.”

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