A professora aposentada Suzete Maria Matos, 62 anos, atravessa o portal para a sala de atendimento e fecha a porta bege atrás dela. Tem olhos cansados, cabelo loiro tingido preso num coque e a pele curtida pelo tempo e o sol; veste bermuda cinza de lycra e blusa azul com inúmeros símbolos de paz e amor em um amplo leque de cores. Sentada na cadeira de tecido, move os dedos numa valsa sem música. Saiu de casa, a poucos bairros de distância, para tratar suas sequelas da Covid-19 na Academia da Saúde, do Núcleo Ampliado de Saúde da Família (Nasf) da cidade de Laguna, litoral catarinense.
A Academia da Saúde foi criada em 2019 em Laguna depois de uma demanda da equipe do Nasf por um lugar que misturasse o atendimento em domicílio e nas unidades de saúde. Desde 26 de março a equipe começou, por iniciativa própria e sem custo para a prefeitura, a atender casos de pós-Covid – pacientes com sequelas nas áreas cognitiva, motora e pulmonar, com problemas como esquecimento, dor nas juntas e dificuldade para respirar. É o que os especialistas chamam de Covid longa. A coordenadora do núcleo, a enfermeira Janaína Caetano Cardoso, 42 anos, afirma que já apareceram casos de todo tipo, e que só nas primeiras duas semanas o núcleo já atendeu 68 pessoas.
Suzete Matos é o segundo paciente com sintomas pós-Covid que ela atende no dia. O anterior também apresentava graves sequelas respiratórias e fadiga contínua. “Temos três horários de atividade física para pós-Covid, mas ninguém tem condição de fazer ainda. Todo mundo sente muito cansaço e muita falta de ar”, conta Cardoso.
“Eu tive Covid mais ou menos no final de ano — setembro, outubro, por aí”, explica Matos. Professora de educação infantil aposentada, ela restringiu suas saídas durante a pandemia ao mínimo possível, mas, ainda assim, se infectou. Ficou de cama por dois dias e foi resgatada pela filha, que a levou para o Hospital de Caridade Senhor Bom Jesus Passos. O teste rápido não indicou nada, mas os sintomas persistiram. Dessa primeira consulta levou uma lista de remédios, dentre eles azitromicina, do kit-Covid indicado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido); da segunda, realizada uma semana depois, recebeu um nebulizador para tratar a tosse que vinha piorando — talvez o pior efeito da doença sobre seu corpo. “Aí depois da Covid, eu fiquei com muita dor de cabeça e tosse. Demorou meses pra sarar. Só que eu fiquei muito esquecida. Vou fazer alguma coisa, eu esqueço; chego no meio do caminho: ‘ah, o que é que eu ia fazer?’ Além do esquecimento a dor nas articulações aumentaram muito, muita dormência.”
Cardoso ouve pacientemente e pergunta se ela já teve artrose. A paciente confirma que sim e complementa que sente uma constante e agoniante dormência na palma da mão e nas pontas dos dedos, como se sangue escorresse pelas extremidades. A enfermeira analisa em silêncio e pergunta sobre a prática de atividade física, que para a ex-professora é inexistente desde que a pandemia começou. “A gente tem um grupo de atividade física bem legal, se quiser participar. É um momento interessante de começar a fazer alguma coisa.” Matos hesita, queria exercícios para as articulações, coisa assim. Mas concorda e marca horário para atividade física e fisioterapia.
O núcleo tem doze profissionais, dentre eles enfermeira, fisioterapeutas, educadores físicos, assistentes sociais e psicólogos. Todos estarão dedicados parcialmente ao atendimento a casos de pós-Covid. A primeira etapa normalmente consiste nessa sessão com Janaína – parte do que ela chama de “terapia quântica”, por muitos especialistas chamada de pseudociência. Mistura conversa, aromaterapia, reiki, meditação, dentre outros métodos alternativos. Algumas dessas técnicas constam na tabela SUS e outras não. A secretária de Saúde do município, Gabrielle Siqueira da Cunha, defende que a aplicação dessa terapia é prevista pelas portarias federais 971 de 3 de maio de 2006 e n. 702 de março de 2018. Segundo ela, “o principal critério sobre as terapias quânticas são os relatos positivos de experiências anteriores e os feedbacks positivos de pacientes e profissionais”.
A paciente saiu de olhos marejados. “Me abriu a mente, meus monstros saíram de dentro. Eu me fechei, me tranquei em casa e fiquei naquela neurose de casa, filho, neto”, lembrou Matos. A sessão a fez lidar com o peso psicológico do período pandêmico.
Por e-mail, a Organização Mundial da Saúde afirmou não haver muitos consensos no que se refere à síndrome pós-Covid, nem mesmo um nome cientificamente aceito para essa condição. “A OMS está trabalhando para definir isso. Nós precisamos também de um melhor entendimento de alguns dos déficits potenciais de pessoas se recuperando de sintomas graves. Esses déficits podem ser neurológicos, respiratórios, tal como função do pulmão prejudicada, ou físicos.”
Mesmo para quem está pesquisando o assunto, os resultados a longo prazo dos tratamentos para os sintomas pós-Covid ainda são incertos, como explica Sonia Maria Dozzi Brucki, da Faculdade de Medicina da USP, ao se referir a sequelas cognitivas: “Pode-se fazer treino ou reabilitação cognitiva. Tratar ansiedade e depressão. E observação ao longo do tempo. Ainda não temos tempo suficiente para saber o que ocorrerá em longo prazo com os indivíduos mais acometidos… Não sabemos como será a evolução, pelo fato de ser um quadro neurológico recente e em que as pesquisas estão acontecendo. Nós temos realizado avaliação e em alguns casos reabilitação na tentativa de compreendermos melhor esses pacientes.”
A estrutura do Nasf não é das melhores. Com meia dúzia de halteres e bolas de ginástica, fica difícil executar tudo que se planeja em mente. No dia em que a piauí esteve no local, 5 de abril, não tinha nem telefone nem computador. Até agendar atendimentos era difícil, pois o único computador do núcleo fora roubado no mês anterior e não havia previsão de reposição tão cedo. A enfermeira anotava tudo em uma agenda física. “Eu tô usando meu telefone como contato, porque a gente não tem telefone aqui. ‘Centro de Atendimento Pós-Covid’, como noticiado nos jornais, soa como uma coisa estruturada que ainda não é. A academia funciona aqui desde 2018, mas as condições são muito precárias. Estamos pedindo muita coisa. Telefone estamos pedindo há três anos. Eu uso o meu de contato pessoal e até encaminhamento eu organizo”, desabafa Janaína.
Pessoas de todo litoral de Santa Catarina já ligaram pedindo coordenadas de como chegar ao esperado tratamento – e receberam retumbantes nãos, pois o serviço é municipal e não tem braço para atender para além das fronteiras da cidade.
No meio desse caos silencioso, o vidraceiro Gilferson Carlos Corrêa, 33 anos, buscava atendimento para sua mulher, Renata dos Santos da Silva, 32, que aguardava em sofrimento no Volkswagen vermelho estacionado no terreno da academia. Ela sentia dor de cabeça, fraqueza e constantes calafrios. Sem energia, mal conseguia falar. Mesmo antes de ter Covid, Renata já padecia de depressão, e recebeu encaminhamento médico para ser atendida no Nasf. Contraiu Covid e passou quinze dias sofrendo com os sintomas até ter a confirmação da doença. Gilferson pensava que o caso dela era leve, pois não desenvolveu problemas respiratórios perceptíveis. Depois da Covid os sintomas respiratórios, associados à depressão, pioraram. Os exercícios usados pela fisioterapeuta Tatiane Bittencourt de Oliveira, 32, são dos mais simples: “Para reabilitação do pulmão, um exercício muito utilizado é um em que o paciente traz uma garrafa com canudo e ele faz bolhas.” O exercício serve para tratamentos de problemas normais com respiração, mas é aplicado para os casos de Covid.
Com boa intenção e disponibilidade na agenda, o atendimento pós-Covid do núcleo de Laguna ainda padece de falta de infraestrutura e treinamento específico para o serviço ofertado. No dia 20 de abril, foi instalado um telefone. Em Santa Catarina, o núcleo é uma das poucas ofertas de tratamento para sequelas da doença.