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questões político-televisivas

À la française

Uma profusão de candidatos nanicos, a preocupação com o burkini e o futuro do euro pautam os infindáveis debates televisivos às vésperas do primeiro turno das eleições presidenciais na França

Bernardo Esteves | 14 abr 2017_08h26
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As moderadoras já haviam anunciado o fim da primeira parte do debate quando Jean-Luc Mélenchon pediu a palavra. Dispostos num semicírculo, os onze candidatos à presidência francesa discutiam suas propostas fazia mais de uma hora. Em pauta naquele momento estava o euro, adotado por dezenove países da União Europeia. Mélenchon, representante de uma coalizão de esquerda, propunha rediscutir os termos da adesão da França à moeda. Antes de concluir o raciocínio, foi interrompido pelo socialista Benoît Hamon, que instantes depois foi atropelado de volta por Mélenchon e outros candidatos. Seguiram-se vinte segundos de bate-boca generalizado em que era impossível distinguir quem dizia o quê. As duas mediadoras tentavam apaziguar os debatedores como professoras que perderam o controle sobre a turma, até que uma delas conseguiu se impor, em tom de pito. “Isso é um debate cidadão, republicano!”

A situação é uma novidade na democracia francesa. Debates entre os candidatos a presidente na tevê acontecem regularmente desde a eleição de 1974, mas até aqui eram realizados apenas entre os dois oponentes do segundo turno. Uma primeira edição ampliada havia acontecido no fim de março, reunindo apenas os cinco candidatos mais bem posicionados nas pesquisas; aquele encontro na primeira semana de abril era o primeiro a reunir num mesmo palco todos os postulantes ao Palácio do Eliseu.

Para o espectador acostumado com os debates presidenciais brasileiros, realizados desde a redemocratização, chamam atenção as diferenças de formato entre os confrontos televisivos. Os candidatos franceses não fazem perguntas uns aos outros, apenas respondem a questões propostas pelos jornalistas. Tampouco têm direito a réplicas ou tréplicas às respostas dos adversários. Em compensação, é comum que se interrompam uns aos outros e se lancem em animadas discussões a dois, com a eventual intromissão de outros colegas, como aconteceu no entrevero sobre o euro.

Nas duas edições os moderadores deixaram a discussão correr e intervieram principalmente para controlar o tempo de cada candidato – um cronômetro individual marcava o tempo total de fala de cada um desde o início do programa. Só pareciam sair de si quando um debatedor antecipava um ponto de discussão previsto para a sequência do programa (“Candidato, trataremos desse tema no próximo bloco.”)

A duração dos debates chamou a atenção da imprensa estrangeira – a segunda edição se estendeu por quatro horas.

 

Previsivelmente, Marine Le Pen foi a candidata mais atacada pelos adversários nos dois debates. Na primeira edição, o momento de maior voltagem se deu numa discussão entre ela e Macron sobre o burkini, traje de banho para mulheres muçulmanas que é objeto de polêmica na França desde o ano passado. O candidato centrista, favorável à liberdade de uso do traje, acusou a adversária de querer criar uma “polícia da indumentária”, elevando o tom de voz e com o dedo em riste. “A senhora cria duas categorias de franceses, e isso é insuportável!” A intolerância da candidata do FN com os islâmicos também foi o pivô de uma altercação entre Le Pen e Mélenchon no segundo debate. O esquerdista reclamou da insistência da adversária com o tema: “63% dos franceses não têm religião, deixe-nos em paz com a religião!”

Seria de se esperar que o candidato do En Marche! também fosse um alvo preferencial por ocupar o posto de adversário provável de Le Pen no segundo turno, almejado pelos demais concorrentes. Macron, contudo, saiu dos debates sem maiores arranhões, o que deve ter sido comemorado por seus assessores como uma vitória. Talvez tenha contribuído para isso o tom conciliador que ele adotou, assinalando sempre que cabível os pontos em que estava de acordo com outros candidatos – postura que lhe valeu críticas nas redes sociais.

A novidade do segundo debate ficou por conta dos candidatos nanicos, sem grande visibilidade na imprensa até então. Veio de um deles, aliás – Jacques Cheminade –, a única menção feita ao Brasil nos dois debates, enumerado ao lado de outros países como um potencial parceiro comercial da França. Cheminade tem traço nas pesquisas de opinião.

Foram os nanicos os responsáveis por algumas das tiradas mais divertidas da noite. Na discussão sobre o euro, a candidata de extrema esquerda Nathalie Arthaud (0,5% de intenção de votos) notou que a questão é irrelevante para a população desfavorecida: “Ganhar mal em francos ou em euros dá na mesma.” Nicolas Dupont-Aignan, candidato à direita do espectro político (3,5% nas pesquisas), criticou o voto útil que tem beneficiado Macron na campanha atual: “Faz anos que vocês votam útil, e tem sido inútil para vocês.”

Nenhum deles, porém, chamou tanta atenção do público quanto Philippe Poutou, do Novo Partido Anticapitalista. Vestindo uma camisa de malha e com barba por fazer, Poutou – que é operário da Ford – apresentou-se como o único candidato “a ter um emprego normal”. Defendendo ideias ousadas – como a democracia direta, a proibição das demissões e a polícia sem armas – e ironizando Le Pen e Fillon, Poutou arrancou aplausos da plateia e virou sensação nas redes sociais.

Resta avaliar a capacidade dos debates de alterar substancialmente o panorama eleitoral. “Nesse tipo de situação as pessoas acabam convencidas pelos seus próprios candidatos”, disse à piauí o cientista político Dominique Reynié, numa entrevista feita após o primeiro debate. “A menos que haja um erro enorme, não creio que os debates sejam suficientes para mudar o ponto de vista dos eleitores.”

De fato, os bate-bocas em cadeia nacional não provocaram mudanças significativas nas intenções de voto dos franceses, com exceção talvez de Mélenchon, que, após se sair bem nos dois debates, ultrapassou Benoît Hamon e colou em François Fillon. O anticapitalista Philippe Poutou também se beneficiou da visibilidade que ganhou e do bom desempenho na telinha: com menos de 1% das intenções de votos antes dos debates, ele chegou a figurar com 2,5% em algumas pesquisas. No pelotão de frente, contudo, o quadro permanece inalterado.

O calendário eleitoral previa ainda um terceiro e último debate com todos os postulantes ao Palácio do Eliseu a três dias do pleito, realizado pelo canal público France 2. Mas é improvável que venha a acontecer nos mesmos moldes das versões anteriores. Mélenchon foi o primeiro a anunciar que não iria, devido à proximidade da data do primeiro turno; depois dele, outros candidatos do pelotão de frente declararam que tampouco estavam inclinados a participar. O mais provável é que a faixa reservada para os debates seja ocupada por entrevistas de 15 minutos feitas por jornalistas sem direito a intervenções dos outros candidatos.

Outro ponto de incógnita paira sobre o tradicional debate antes do segundo turno. Quando Jean-Marie Le Pen, pai de Marine, foi ao segundo turno na eleição de 2002, seu adversário Jacques Chirac se recusou a enfrentá-lo na tevê, alegando que não havia debate possível “diante da intolerância e do ódio” personificados pelo adversário. Com apoio maciço – e contrariado – da esquerda, o candidato gaullista venceu de lavada com 82% dos votos válidos.

Quinze anos depois, o cenário é bem diferente. O discurso do Front National foi ligeiramente domesticado, num processo que a imprensa francesa chamou de “desdiabolização” do partido. E, acima de tudo, o FN se consolidou como uma grande força eleitoral – no primeiro turno das eleições regionais de 2015, foi a sigla mais votada, com 28% dos votos válidos. Já não é possível ignorar o desejo expresso por essa fatia do eleitorado francês. A menos que Marine Le Pen fique de fora do segundo turno – o que parece improvável nas circunstâncias atuais –, seu oponente dificilmente terá argumentos legítimos para escapar do enfrentamento televisivo com a candidata extremista.

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