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Beleza e militância – Claudia Andujar no cinema

Pandemia adiou em quase dois anos lançamento de documentário sobre os yanomami

Eduardo Escorel | 06 jul 2022_09h00
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Ao fazer as gravações de Gyuri, em 2018, a diretora Mariana Lacerda nunca poderia imaginar o destino de seu primeiro documentário de longa-metragem – ser vítima de uma pandemia. Primeiro, ao estrear há dois anos na mostra O Estado das Coisas do 25º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, realizado online em duas etapas pela primeira vez, em 2020, por causa da crise sanitária; depois, ao ter o lançamento postergado durante quase dois anos, até amanhã (7/7) em cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba e Brasília.

Às tribulações dos personagens principais de Gyuri – a fotógrafa Claudia Andujar, o líder político, xamã e escritor Davi Kopenawa Yanomami e o missionário católico Carlo Zacquini – vieram se somar as do próprio documentário, impedido de se apresentar ao público enquanto as salas estiveram fechadas e obrigado depois, como ocorre agora, a se contentar com uma brecha no circuito comercial, ocupado cerca de 74% por cinco produções distribuídas pela Paramount, Universal e Disney.

Claudia Andujar e Davi Kopenawa Yanomami em ‘Gyuri’ – Foto: Divulgação

Nascida na Suíça, criada na Romênia e Hungria e estabelecida no Brasil a partir de 1955, Andujar é brasileira naturalizada. Após descobrir o país fotografando para diversas revistas, a partir de 1966 passou a contribuir como fotógrafa freelancer para a revista Realidade e entrou em contato com os yanomami pela primeira vez em 1971, na região Catrimani, no Oeste do estado de Roraima.

Em depoimento de 2018, gravado para a deslumbrante retrospectiva Claudia Andujar: A luta Yanomami, a fotógrafa falou dos seus encontros iniciais com os yanomami e dos princípios que regem a relação que mantém com eles há 50 anos – ensinamentos valiosos para documentaristas (a exposição teve curadoria de Thyago Nogueira e foi realizada no Instituto Moreira Salles, entre dezembro de 2018 e abril de 2019, em São Paulo, e entre julho e novembro de 2019, no Rio de Janeiro): “Eu estava procurando um lugar com um povo com o qual eu podia conviver e conhecer […] A primeira vez que fui no Catrimani, eu não falava uma palavra de yanomami. E os yanomami também não falavam português, eram índios que viviam de maneira isolada […] Eu quis que [as mulheres] me conhecessem e tinham confiança no fato que eu quero ser uma amiga […] Não é que a primeira vez que cheguei lá eu comecei a fotografar. Eu levava, assim, uma, duas, três semanas para tirar uma máquina. A primeira coisa era de a gente se conhecer e se sentir à vontade um com o outro. Obviamente que nunca viram uma máquina. Era uma coisa que não entendiam o que era. O fato de eu ficar olhando, um pouco seguindo as pessoas, ou me aproximando das pessoas com uma máquina, era uma coisa que surpreendia […] Eu sempre procurei entendê-los. Eu gostava de viver com eles e eu queria ajudá-los […] E eu me lembro muito bem que quando eu mostrei umas fotos que eu tinha feito elas não se reconheceram, não entendiam o que que eu estava mostrando […] Os yanomami nunca tinham contato com o mundo dos brancos e, depois, o próprio governo decidiu de entrar lá, mandar gente para desmatar um pedaço para criar uma estrada.” [Referência ao trecho construído entre 1973-76 da rodovia federal BR-210, conhecida como Perimetral Norte.]

“A estrada passou por cima de roças, de aldeias. Foi uma atrocidade”, corrobora Zacquini. E Kopenawa arremata: “Invasores são do homem branco que vem derrubar a floresta, vem derrubando o mato e garimpando, sujando o rio, destruindo, destruindo a nossa natureza, vem criando problema, vem criando briga, então, essa história é antiga. Hoje, 2019, voltou. Voltou invasores dos garimpeiros. Na terra dos yanomami está poluído de novo.” (Esses depoimentos completos estão disponíveis no site do IMS em Claudia Andujar.)

Claudia Andujar e Carlo Zacquini em ‘Gyuri’ – Foto: Divulgação

O depoimento de Andujar e os complementos de Zacquini e Kopenawa podem servir de introdução a Gyuri, título enigmático que o documentário se encarrega de esclarecer no final da longa sequência de abertura, da qual a primeira imagem é uma fotografia deslumbrante em preto e branco. Um ou uma yanomami com o corpo pintado está deitado(a) na rede, os pés para fora e meio encoberto(a) por fumaça que parece emanar de uma fogueira fora de quadro no canto inferior esquerdo. Ao visual estonteante se soma a trilha sonora de O Grivo, excepcional como de hábito. À medida que a imagem clareia, a voz feminina em off que o espectador não terá dificuldade em atribuir corretamente a Andujar, rememora sua infância [passada a partir de 1940 na região da Transilvânia subordinada na época à Hungria], falando com certa dificuldade em húngaro, com palavras ocasionais em português e inglês: “Eu ia na escola todo dia, mas minhas amigas nunca vinham em casa. Almost…” Uma voz masculina em off corrige: “Quase.” A voz feminina continua: “Quase… Sempre eu ficava sozinha em casa. Eu conversava com as empregadas quando almoçava e jantava com elas sozinha, pois meu pai nunca estava em casa.” Nesse ponto a imagem inicial do(a) yanomami deitado(a) na rede que, além de clarear, parece ela mesma envolta em fumaça, passa a ser da floresta densa, enevoada, em câmera lenta, do ponto de vista de um avião. A voz feminina prossegue: “Acho que disse que as empregadas falavam muito sobre suas infâncias e dos lugares em que moravam. Essa pequenas… não cidades… (‘aldeias’, diz a voz masculina) aldeias. Sim. E contavam sobre aquilo em que acreditavam… (‘a religião?’) A religião… Espíritos… Elas diziam que de noite, quando eram doze horas… (‘meia-noite?’) meia-noite (‘Vinham essas…’) visões (‘visões’). Elas ouviam quando vinham os espíritos e então precisávamos ficar muito silenciosas, para que eles não (‘Não as machucassem’) as machucassem. Isso, que não nos machucassem e eles sabiam tudo o que eu fazia na escola, fui para casa, brincava, ficava em casa sozinha, eles sabiam de tudo. E eu sempre acordava quando era meia-noite e até as três da madrugada sempre tinha medo que algo pudesse acontecer” – relato que evoca narrativas mitológicas indígenas.

Nesse momento do texto em off, a imagem passa em corte da floresta para Andujar na sala de um apartamento citadino, em São Paulo, vestindo blusa de malha listrada multicolorida, com as mãos entrelaçadas sobre o ventre, sentada em confortável cadeira de escritório, de costas para uma estante com utensílios indígenas de barro. Ela está diante do filósofo e professor Peter Pál Pelbart que ajuda Andujar a lembrar palavras em húngaro e atua como entrevistador. Passaram-se 4 minutos e 32 segundos e a evocação anterior é concluída em in: “Portanto essa lembrança ficou… Portanto, minha infância passei em Nagyvárad [nome húngaro de Oradea, cidade romena], na Romênia, e eu falava três línguas desde que comecei a falar. O húngaro era a principal língua…”

O relato de Andujar continua por cerca de 17 minutos, formando a extensa introdução ao seu reencontro com Davi Kopenawa, mulheres e homens yanomami da aldeia, na região da Serra do Demini, em Roraima. Na realidade, é lá que Gyuri prossegue e se passa até a partida de volta, já próxima ao fim.

O enigma do título, porém, é esclarecido ainda no final da sequência introdutória. Não cabe reproduzir aqui em detalhe a explicação completa. Direi apenas que Gyuri foi um colega de Andujar na escola, em Nagyvárad, durante a Segunda Guerra, quando ela devia ter por volta de 12 anos. Ele deixou com ela uma microfotografia dele que Andujar guardou para sempre e mostra na palma da mão para a câmera: “Tem coisas que eu preservo por que quero ficar com elas. Este aqui é Gyuri, embaixo é meu pai. Os dois morreram em Auschwitz.”

Correndo o risco de extrapolar, talvez seja possível supor que a vocação para a fotografia tenha nascido aí – ser fotógrafa teria sido a maneira encontrada por Andujar de preservar coisas que almeja manter consigo mesma para sempre.

Concluída a introdução, vemos Andujar sendo levada de cadeira de rodas com dificuldade, por Zacquini, através de um caminho estreito na floresta. Estão indo ao encontro de Kopenawa. Já na aldeia, referindo-se à demarcação e homologação da reserva indígena que completou 30 anos em maio e à própria Andujar, o xamã diz: “… Conseguimos conhecer todas as cidades de fora. Brasil e fora. Então, aí, nós andamos durante quatro anos de lutas. Se ela não tivesse chegado aqui nós yanomami sofreria muito. Então, ela vem, ela vem salvar nós. Ela vem encontrar mim pra ficar amigo. Assim que aconteceu… O Exército pisou nós. Tudo. Então nós, eu e ela, eu consegui sair, como se sai borboleta…” 

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