Belos sonhos, mais recente filme de Marco Bellocchio, conforme ele declarou, é uma adaptação “bem fiel”, feita a seu modo, do romance autobiográfico Fai bei sogni, do jornalista Massimo Gramellini. Publicado em 2012, o livro ficou na lista dos 10 mais vendidos durante 50 semanas, sendo um dos maiores sucessos editoriais dos últimos anos, na Itália.
A tradução ao pé da letra do título original seria Faça belos sonhos. Alternativa livre, adequada ao enredo e usual em português, poderia ser Durma bem e sonhe com os anjos, mais sugestiva e atraente do que a opção anódina e impessoal adotada no Brasil.
Graças à 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, encerrada há duas semanas, que exibiu Belos sonhos na abertura e homenageou Bellocchio, foi possível assistir ao filme antes mesmo da sua estreia na Itália ou, no Rio, um dia depois do lançamento italiano, ocorrido em 10 de novembro. Essa simultaneidade incomum no caso de produções europeias autorais, ao contrário do que acontece frequentemente com blockbusters americanos, relembra que aqui e ali resistentes persistem fazendo filmes que exprimem visões pessoais.[vc_column]
Em De punhos cerrados, epilepsia, matricídio, fratricídio e morbidez são os temas centrais. A tragédia familiar é vivida pela mãe viúva e cega, sua filha e seus dois filhos, no ambiente claustrofóbico da grande casa de província onde vivem, em Piacenza, no norte da Itália.
Vinte e cinco filmes e 50 anos depois, temperado pela experiência, Bellocchio trata, mais uma vez, sem a agressividade do passado, de relações familiares carregadas de erotismo, desta vez especificamente entre mãe e filho. O que o interessou no romance de Gramellini foi, nas suas próprias palavras, “o tema da mãe, isto é o personagem da mãe [que] é central, a sua morte misteriosa, e o afeto do pequeno Massimo [aos 9 anos] pela mãe” que o “abalou e comoveu muito”. Bellocchio elabora seu melodrama a partir do trauma sofrido na infância com a perda da mãe, escapando do lugar comum psicanalítico devido à maestria de sua narrativa e encenação.
Belos sonhos deixa patente, ao mesmo tempo, uma das fragilidades da linguagem do cinema dominante. Baseada na impressão de realidade, a trama de filmes que seguem preceitos clássicos implode quando a encenação é inverossímil. É o que acontece quando Belos sonhos passa da década de 1960 para a de 1990 e Niccolò Cabras, ator que faz o papel de Massimo aos 9 anos, é substituído primeiro por um adolescente, Dario Del Pero, e depois por um adulto, Valerio Mastandrea. Isso, enquanto os demais personagens, transcorridos 30 anos, continuam a ser interpretados pelos mesmos atores, apenas [mal] envelhecidos pela maquiagem e os cabelos brancos. Indispensável para que a ilusão do espetáculo persista, a suspensão de descrença necessária não resiste a tamanha incongruência.
A esse senão, fruto do realismo inerente à linguagem do cinema, contrapõe-se uma de suas maiores virtudes, a capacidade de subverter o tempo. Não só comprimindo e expandido a duração real, como desconsiderando a verdadeira cronologia dos eventos. A habilidade do roteiro e da montagem de Belos sonhos, permite que o filme termine com a cena da simbiose perfeita entre Massimo, quando criança, e sua mãe (Barbara Ronchi). Brincando de esconde-esconde, Massimo volta ao paraíso perdido da infância. Quando é a vez de ele procurar, não consegue encontrar sua mãe. Ela, então, sai do esconderijo, chama Massimo e o leva para dentro de uma caixa de papelão, onde os dois ficam juntos, abraçados, com a respiração suspensa. Esse é o fim de tudo, ou o começo.