Eu tinha 8 anos de idade quando Renascer estreou, no dia 8 de março de 1993. Talvez uma novela não fosse a coisa mais atrativa do mundo para uma criança, mas eu sou neto da atriz Chica Xavier, que fazia o papel de Inácia, fiel escudeira do protagonista José Inocêncio, durante a segunda parte da trama. Lembro de ter ficado perturbado com a cena em que Inocêncio – interpretado na primeira fase por Leonardo Vieira – é pendurado de ponta-cabeça em uma árvore, com o corpo ensanguentado depois de ter sido esfolado por jagunços do coronel Belarmino Ferreira (José Wilker). É claro que uma cena como essa não era adequada para um menino da minha idade. Mas era uma novela da Vovó Chica, como eu a chamava.
Minha família se reunia na frente da tevê todas as noites, às vezes com minha avó, para assistir aos capítulos daquele folhetim com cara de cinema. As cenas dirigidas por Luiz Fernando Carvalho, que depois faria o aclamado Lavoura Arcaica (2001), impressionavam quem estava acostumado ao modo de fazer novelas até então. Aos 32 anos, Carvalho comandou um elenco tarimbado, do qual faziam parte Fernanda Montenegro, Antônio Fagundes, Osmar Prado, Herson Capri, José Wilker e Grande Otelo. Foi, além disso, responsável por lançar jovens talentos como Adriana Esteves e Isabel Fillardis. Carvalho era parte de uma geração que estava chegando para renovar as novelas da Globo, principal produto de exportação da emissora liderada por José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni.
“Raras novelas apresentaram no seu primeiro capítulo um trabalho de direção tão apurado, tão requintado quanto Renascer”, escreveu a jornalista Marília Martins em sua coluna no Jornal do Brasil, dois dias depois da estreia. O episódio teve 61 pontos de média de audiência no Ibope, uma marca que hoje é impensável. As novelas da Globo não têm chegado a trinta nos momentos de pico. O remake de Renascer, que estreou há um mês, teve média de 25,9 pontos na estreia, uma boa marca nos parâmetros atuais. Terra e Paixão, que veio logo antes, estreou com 24,8 pontos.
Autor de Renascer, Benedito Ruy Barbosa foi o dramaturgo mais presente na carreira de Chica Xavier. Os dois trabalharam juntos em Os Imigrantes (1981), Sinhá Moça (1986), Rei do Gado (1996) e Esperança (2002). Com o sucesso de Renascer, minha avó, que àquela altura já tinha 37 anos de profissão, finalmente conquistou das mãos de Boni um contrato sem data definida para acabar, e que a acompanhou até o fim da vida, em 8 de agosto de 2020.
Chica Xavier nasceu em Salvador em 1932 e desembarcou no Rio de Janeiro em 6 de janeiro de 1953, Dia de Reis, acompanhada do então namorado Clementino Kelé, meu avô. Ela viajou para estudar teatro e conhecer seu pai, Alcebíades de Queiroz, de quem até então só tinha visto uma foto. Minha avó era “afilhada” de Anísio Teixeira, intelectual que transformou a educação brasileira e hoje dá nome ao Inep, instituto responsável pela prova do Enem.
“Eu fui criada com um retrato dele na parede”, ela contou em 2012 à biógrafa Teresa Montero. Minha bisavó, Dionísia Sant’Anna, trabalhou na casa de Teixeira antes de dar à luz minha avó. Quando ele se mudou para o Rio de Janeiro, os dois perderam contato. Tempos depois, Chica – ou melhor, Francisquinha, como ele a chamava – se encontrou com o educador na Bahia, durante o período em que ele estava fugindo da perseguição do governo de Getúlio Vargas (os órgãos oficiais o acusavam de ateísmo, populismo, estatismo, americanismo e, claro, subversão). Em 1953, quando chegou ao Rio, Chica ficou sob os cuidados de Teixeira. Afinal, ainda não era casada, e, portanto, não poderia viver sob o mesmo teto que o namorado.
O casamento veio em julho de 1956. Dois meses depois, estreou no Theatro Municipal Orfeu da Conceição, primeiro trabalho de minha avó como atriz. Escrita por Vinicius de Moraes, com composições de Tom Jobim e cenário de Oscar Niemeyer, a peça foi um marco no teatro brasileiro. Foi também a segunda vez em que atores negros pisaram no palco do Theatro. O poetinha assinou a carteira de trabalho de Chica, e ela, de tão comovida, guardou o documento a sete chaves, dando-o como perdido, para que nenhuma outra assinatura o maculasse.
Seu sustento principal, contudo, era o serviço público. Minha avó trabalhava no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), órgão vinculado ao Ministério da Educação e da Cultura. Atuava no cinema e na tevê quando arrumava um tempo extra, o que não era fácil, sobretudo depois de ter tido três filhos (Christina, Izabela e Clementino Júnior). Somente em 1975 se aposentou do funcionalismo e pôde se dedicar em tempo integral às artes cênicas.
Chica realizou seu maior sonho em 1985: voltar à Bahia como atriz. Interpretou uma ialorixá, Magé Bassã, na minissérie Tenda dos Milagres. Depois veio Renascer, gravada em Ilhéus. Àquela altura, meus avós já tinham comprado uma casa em Prado, no extremo Sul do estado, onde passávamos os verões. Viviam lá minha tia-avó Ivone e seu marido, Macedo, além de duas primas, Lurdes e Suzana. Em 1993, estive nessa casa com meus pais e minha irmã Luana enquanto meus avós gravavam em Ilhéus. Clementino Kelé, meu avô, também era ator. Embora não tivesse sido escalado para a novela, acabou fazendo um bico na gravação.
“O Luiz Fernando [Carvalho] me colocou pra fazer uma participação como motorista. Ele disse, brincando: ‘Você já está aqui comendo e hospedado, então vai trabalhar também.’ Fui acompanhar sua avó e ainda ganhei um dinheiro”, meu avô me conta. Feita a participação, ele foi conduzido de volta a Prado por um chofer da Globo. Por educação, disse que gostava das canções de Amado Batista. Acabou sendo punido com 7 horas seguidas de música brega.
Chica e Kelé foram casados por 64 anos e trabalharam muitas vezes juntos. Mas só duas vezes contracenaram como casal: uma em Pátria Minha, novela que veio logo depois de Renascer, e outra em O Assalto ao Trem Pagador, filme clássico de 1962. O diretor Fábio Sabag assistiu ao longa e se impressionou com a atuação de Chica. Anos depois, por isso, a convidou para fazer seu primeiro trabalho na tevê: a novela A Cabana do Pai Tomás (1969).
O casamento de Chica Xavier e Clementino Kelé, em 1956 (Foto: Acervo pessoal)
Solange Couto conheceu bem minha avó. Era 25 anos mais nova que ela, mas foi uma de suas grandes parceiras. As duas contracenaram uma dezena de vezes – em duas delas, interpretando o mesmo personagem em diferentes momentos da vida. Foi assim em Os Imigrantes e em Renascer. Couto encarnou Inácia na primeira etapa da novela, em 1993.
“Eu a estudei no comecinho da carreira e, depois, com a convivência que eu tinha na casa de vocês, nunca parei”, ela me contou, recentemente. “Até quando estava brincando com ela, na cozinha, eu ficava olhando. Quando eu a conheci, ficava estudando cada movimento dela.”
O personagem Inácia chegou num momento difícil para Couto. Antes de assumir o papel, a atriz interpretava Manon em Deus nos acuda, novela das sete escrita por Silvio de Abreu. “Aconteceu um probleminha meio chato e eu fui à emissora pedir demissão. Entrei lá chorando de raiva e encontrei o Luiz Fernando Carvalho, que eu nem conhecia. Ele olhou pra mim e perguntou: ‘Você está em qual produto? Preciso de você.’ Travei na frente daquele homem enorme. Falei: ‘Estou fazendo Deus nos acuda, mas estou indo até o Mário Lúcio [diretor da Central Globo de Produção] porque vou pedir pra sair.’ Ele respondeu: ‘Então fala pro Mário Lúcio que eu preciso de você. Em seguida, eu estou te esperando.’ Aí eu, que estava com raiva e com o rabinho entre as pernas, cheguei lá em cima igual um pavão”, ela relembra, rindo.
Couto saiu da emissora naquele dia já com os primeiros capítulos da novela em mãos. Logo soube que dividiria o personagem com Chica, sua amiga: “Lembro que conversei com ela, pedindo orientações. ‘Ela vive com o coronelzinho, ela se dedica a ele, não tem namorado, não tem ninguém. Você acha, Chica, que ela é apaixonada?’ Ela respondeu: ‘Apaixonada como fêmea, não. Pelo que estou lendo aqui ela o ama loucamente, não como fêmea e sim com amor.’ Ela me deu esse fio condutor. Se você prestar atenção, revendo a novela, vai ver que o olhar dela, o ciúme que ela tem de Maria Santa não era ciúme feminino, era quase maternal.”
Couto e minha avó não chegaram a se encontrar durante as gravações da novela, em Ilhéus, mas interpretaram a personagem de modo tão coerente que pareciam ter ensaiado juntas.
Isabel Fillardis, na época uma jovem atriz de 19 anos, perdeu o voo para a Bahia. “Eu e Leonardo [Vieira] ficamos horas a fio conversando no saguão do aeroporto e não ouvimos a chamada. Foi um desespero.” Sua personagem, Ritinha, só apareceria na segunda fase de Renascer, mas o diretor Luiz Fernando Carvalho queria que Isabel chegasse com folga.
“O Luiz me mandou pra Ilhéus quinze dias antes de gravar para que eu visse os outros atores filmando, andasse no meio do cacau, tomasse banho de cachoeira com a roupa da Ritinha. Fiz uma espécie de laboratório.” Em começo de carreira, Isabel sentia a pressão de estrear na tevê em pleno horário nobre da Globo. Dois atores cuidaram dela: Grande Otelo e Chica Xavier.
“Quando cheguei, dei de cara com ela e Grande Otelo quase ao mesmo tempo. Você não tem noção do que eram eles dois… Eles me receberam. Era como se dissessem: ‘Vamos proteger ela’”, lembra Isabel. “Eu conheci Mãe Chica aqui, nos estúdios da emissora, no Jardim Botânico. Hoje eu entendo o fato de ela ter me acolhido e me dito determinadas coisas.”
Assim como Isabel, muitos se referiam a minha avó como Mãe Chica. Isso se deve tanto à forma maternal com que ela tratava as pessoas, chamando-as de “meu filho” e “minha filha”, quanto por sua religiosidade, já que ela era Mãe de Santo de um terreiro de umbanda que fundou em 1980, em Sepetiba, bairro da Zona Oeste do Rio. O terreiro era frequentado por atores, diretores, camareiros. Todos eram acolhidos na Irmandade do Cercado de Boiadeiro.
Isabel me diz que as gravações de Renascer foram um “paraíso”. “Era um elenco generoso. Artistas de verdade. Cada um ali sabia sua grandeza e seu lugar. Fui muito bem acolhida. Era como se eu fosse um cristal, sabe?”, ela conta. “Sua avó percorreu comigo todo aquele caminho.” As duas estudavam juntas o roteiro. Isabel recebia conselhos: tinha que ter o texto na ponta da língua, e não podia entrar no set de gravação com o roteiro em mãos. Convivendo com Chica, em Ilhéus, aprendeu o que falar e o que não falar. “Ela foi a minha educadora.”
Depois Isabel virou “filha espiritual” de Chica, como ela mesma diz. Os laços profissionais, assim como aconteceu com Solange Couto, evoluíram para o convívio social e familiar. Ao longo dos anos, foi isso o que sempre escutei sobre minha avó: ela acolhia pessoas. Seus personagens passavam essa mensagem, fosse no Brasil ou em outros países onde as novelas e séries brasileiras eram transmitidas. Em 2016, durante os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, a goleira da seleção angolana de handebol exibiu na camisa o nome “Bá”. Não era coincidência que fosse o nome da personagem que Chica tinha interpretado em Sinhá Moça, em 1986. A goleira ganhou esse apelido da família porque se parecia com a personagem e gostava de cuidar de crianças. Minha mãe e minha irmã se encontraram com a atleta, que se emocionou.
“Quando eu nasci, a novela já tinha passado e minha mãe explicava a história. Agora, fico muito feliz de saber que a minha ‘vó’ Bá está vendo. Ela é muito bonita”, disse a goleira, cujo nome de batismo é Teresa Almeida, em entrevista ao Globo Esporte naquele ano. Chica havia enviado a ela um vídeo. Bá, que até então nunca tinha visto Chica, chorou copiosamente.
Passaram-se 31 anos da estreia de Renascer. Com o remake, Inácia agora está nas mãos de Edvana Carvalho, atriz soteropolitana como Chica. Dessa vez, não haverá duas atrizes: Carvalho ficou encarregada de interpretar a personagem em ambas as partes da novela.
“Quando eu era criança, minha referência era a sua avó Dona Chica, assim como Ruth de Souza, Léa Garcia, Zezé Motta”, ela me contou, por telefone. Consegui seu contato por meio de minha mãe, Christina. As duas já tinham se falado pelas redes sociais, pois minha família se emocionou com a interpretação de Carvalho logo no primeiro capítulo, em janeiro. Ela vestia na orelha um brinco feito com pedra coral, marca registrada de Chica Xavier. Todas as suas personagens usavam esses brincos. Vovó costumava dizer que era sua tatuagem – não tinha como tirar do corpo. O adereço representava Iansã, a orixá da cabeça de minha avó.
“Eu observava que Dona Chica estava a novela toda com aquele brinco. É um brinco característico de quem é de candomblé”, conta Carvalho. Ela pediu autorização dos figurinistas da novela para usar um par de brincos similar. “Era uma forma de reverenciar Dona Chica.”
Carvalho é funcionária pública, assim como Chica foi. Dá aulas de teatro em escolas públicas da Bahia. O ofício de atriz para uma mulher negra ainda é instável, e o reconhecimento demora a chegar. “Já tenho quase quarenta anos de carreira. Para nós as coisas chegam mais tarde. Sabe como é.” A atriz foi escalada para Terra e Paixão, mas acabou sendo dispensada do elenco. “Decidiram continuar me pagando até que a Globo me colocasse em outro produto. Fiz vários testes. Entreguei na mão de Tempo [orixá do panteão africano]. Mais tarde, eu estava gravando um curta em Fortaleza quando me chamaram. Fiz o teste para a primeira fase da Inácia. Duas semanas depois, recebi a notícia de que tinha passado e faria as duas fases. E eu queria era fazer a fase que a Dona Chica tinha feito. Fiquei anestesiada de tanta felicidade.”
A nova versão de Renascer estreou em 22 de janeiro de 2024, dia em que vovó completaria 92 anos. Não acho que seja uma coincidência. Essa novela foi um marco para essa baiana que nasceu em uma vila de 39 casas, com apenas um banheiro, onde a maioria das mulheres eram lavadeiras – entre elas Dionísia, sua mãe. Uma infância muito pobre com uma mãe solo na periferia de Salvador nos anos 1930. Essa mulher virou uma das atrizes mais conhecidas e respeitadas do Brasil, país que escravizou pessoas negras por mais de trezentos anos.
Quando Renascer chegou ao fim e minha avó recebeu a notícia de que seria contratada por tempo indeterminado, ela foi até o quintal e bradou bem alto: “Eparrey Oyá!” É a saudação que se faz a Iansã. Sua segurança financeira estava garantida, mesmo que de forma modesta. Chica nunca protagonizou uma novela. Mas seus personagens ficaram marcados na memória de milhões. “Eu sou sempre Chica nos papéis que faço, não tem jeito. Porque deixam eu fazer gente. Eu sou gente, e aí nessa gente eu me encontro”, ela explicou, em sua biografia.
Fosse Inácia, Bá ou Magé Bassã, Chica Xavier era o Brasil, e o Brasil ama Chica por isso.