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    Ilustração: Paula Cardoso

atlas do bolsonarismo

A Bíblia e a bala

Nas polícias, setores evangélicos pentecostais dão sustentação às posições mais radicais do bolsonarismo

Renato Sérgio de Lima | 22 set 2020_11h09
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“Todos devem sujeitar-se às autoridades governamentais, pois não há autoridade que não venha de Deus; as autoridades que existem foram por ele estabelecidas.

 Portanto, aquele que se rebela contra a autoridade está se colocando contra o que Deus instituiu, e aqueles que assim procedem trazem condenação sobre si mesmos.

[…]

Pois é serva de Deus para o seu bem. Mas se você praticar o mal, tenha medo, pois ela não porta a espada sem motivo. É serva de Deus, agente da justiça para punir quem pratica o mal.”

Romanos 13: 1-2; 4

 

Nos primeiros seis meses deste ano, mais da metade (56%) dos policiais brasileiros que se manifestaram sobre temas religiosos nas redes sociais publicaram seus comentários em páginas e perfis evangélicos. O número impressiona por ser bastante superior à fração da população como um todo que se declara protestante: 31%, segundo o Datafolha. Desse contingente, cerca de 75% professam sua fé em denominações de matriz pentecostal, incluindo igrejas como a Universal do Reino de Deus, que têm investido pesadamente na conquista de adeptos entre os membros das forças policiais do Brasil.

Os dados fazem parte de uma pesquisa sobre o impacto da religião nas polícias militares, civis e na Polícia Federal, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com a Decode Pulse, empresa de inteligência de dados. O levantamento recolheu uma amostra estatisticamente representativa de 879 perfis de profissionais dos três tipos de polícia, e acompanhou suas interações em ambientes públicos no Facebook.

A primeira parte da pesquisa sobre as interações desses perfis nas redes, divulgada no início de agosto, já havia constatado forte adesão dos policiais brasileiros à agenda que hoje é definida como “bolsonarista”, e que se caracteriza por reunir elementos de apoio a valores autoritários, a pautas hiperconservadoras na esfera dos costumes, além de críticas a direitos individuais, sociais, políticos e humanos. 

Por questões metodológicas, não é possível afirmar que todos os policiais observados em suas interações virtuais sejam evangélicos pentecostais (o fato de se manifestarem em fóruns que reúnem integrantes dessas religiões é um forte indício de pertencimento, mas não dá certeza ao pesquisador). Tampouco é possível dizer que cada um dos que expressaram apoio a elementos da pauta bolsonarista comungue dos mesmos valores do atual governo. Mas é, de toda forma, no cruzamento desses perfis que surge um dado relevante sobre o sentido da associação entre polícias, religião e política: ao contrário de outras denominações religiosas, que mantêm certa distância entre fé e política, 48% dos policiais civis, militares e federais que interagem publicamente em ambientes pentecostais concordam com as pautas defendidas por Jair Bolsonaro. Ainda entre os que interagem nas páginas religiosas, 31% se manifestam também em ambientes do bolsonarismo mais radical (na população como um todo que utiliza redes sociais, a parcela que interage nesses ambientes radicalizados é de 22%, ou seja, um terço menor do que entre os policiais analisados).

 


Quando Jair Bolsonaro defende a violência policial e a ampliação do “excludente de ilicitude” para todos os casos de mortes decorrentes de intervenção policial (independentemente de investigação e de controle da legalidade por parte do Ministério Público e do Poder Judiciário), ele não está apenas falando sobre uma pauta cara aos policiais. Na verdade, para muitos evangélicos pentecostais, há fundamento teológico nessa defesa de uma ampla delegação de poder e de uso da força aos policiais. Muitos veem esses mesmos policiais como guerreiros de Deus, imbuídos da autoridade divina para decidir sobre o que é certo e o que é errado; sobre quem pode ser morto, e quando.

Isso fica ainda mais nítido quando se observam as declarações e gestos de alguns dos evangélicos pentecostais que mais influenciam policiais militares. Um deles, o Pastor Lucinho Barreto, cuja origem é a Igreja Batista da Lagoinha, em Belo Horizonte, ficou famoso pelo conteúdo de um vídeo disponível até hoje no YouTube, gravado em julho de 2013. Diante da câmera, Barreto afirma que os policiais em serviço devem atirar nos “bandidos” para matar e se defenderem. Barreto defende que os policiais não apenas atirem, mas “descarreguem e joguem suas armas” nos criminosos, incentivando a ira e reações violentas, desmedidas. Como justificativa, ele utiliza no vídeo duas passagens bíblicas que reforçam a ideia de guerreiros divinos: Romanos 13: 1-5, que em parte serve de epígrafe a este artigo; e Êxodo 22:2, versículo segundo o qual “se o ladrão que for pego arrombando for ferido e morrer, quem o feriu não será cul­pado de homicídio”. 

Já a Igreja Universal do Reino de Deus, que reúne vários dos pastores que mais influenciam policiais, investe há bastante tempo em estratégias de aproximação e de conversão desses servidores. A denominação se vale, por exemplo, de serviços assistenciais voltados às corporações de segurança pública. Em 2018, a Universal criou um programa de capelania denominado Universal nas Forças Policiais (UFP), que oferece, segundo o site da igreja, “auxílio espiritual, psicológico e social a esses homens e mulheres que servem a sociedade”. O programa é liderado por um oficial e ex-capelão da Polícia Militar do Maranhão. Segundo reportagem da Folha de S.Paulo de fevereiro deste ano, o programa atingiu cerca de 1 milhão de pessoas em 2019. Mais do que conquistar novos fiéis, essas iniciativas têm como objetivo  se aproximar de bolsonaristas – não apenas por interesses religiosos, mas também pelas suas demandas históricas e corporativas.

O flerte do bolsonarismo com a religião como estratégia de manutenção do poder não fica circunscrito às polícias militares. Ele também está presente nas polícias civis e na Polícia Federal, nas quais respectivamente 19% e 25% dos integrantes com perfis nas redes sociais interagiram em ambientes religiosos do Facebook. O número pode parecer baixo, à primeira vista, mas ganha relevância quando olhado em mais detalhe. Nas três forças policiais, os percentuais mais altos de interação em ambientes religiosos se dão entre os profissionais das carreiras que não têm acesso a posições de comando nas polícias, a exemplo dos praças e agentes, que, na rodada anterior da pesquisa, ainda sem o componente de interação em ambientes religiosos, totalizavam 41% de adesão ao bolsonarismo. 

Ou seja, na falta de reformas que modificassem a arquitetura institucional da segurança pública nas últimas três décadas, essas carreiras, submetidas a enormes pressões no cotidiano de trabalho, provavelmente ficaram mais suscetíveis ao apelo de bandeiras políticas e religiosas salvacionistas. Trata-se de uma hipótese, coerente com os dados da pesquisa. Vale lembrar que essas carreiras abrigam a imensa maioria dos policiais brasileiros, e que os seus integrantes são recrutados em uma sociedade profundamente marcada pela fé e por um projeto de nação que aceita a violência como método e como linguagem – método e linguagem que historicamente organizam as relações sociais no Brasil.  

Uma pesquisa do Datafolha de 2017, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, investigou o grau de adesão da população a valores autoritários: entre os entrevistados, 53% concordaram total ou parcialmente com o enunciado “o policial é um guerreiro de Deus para impor a ordem e proteger as pessoas de bem”. Dito de outro modo, para a maioria da população adulta do país, as polícias representam a autoridade incontestável do Estado e de Deus, e quem desafiá-las está sujeito a ser punido com força e violência, se os policiais julgarem necessário.

Tal concepção é central para que se compreenda o cenário da segurança pública no país e a força do discurso do atual presidente. Embora ele não tenha proposto quase nada em termos de reformas legais ou realizado investimentos na segurança pública, os policiais brasileiros acreditam que Bolsonaro os trata muito melhor do que todos os governos anteriores desde a redemocratização. Isso não pode ser menosprezado ou desqualificado. É preciso que um projeto de polícia e segurança pública que se pretenda efetivamente democrático e transformador supere os eternos vetos das corporações que regem a área, assim como é fundamental que pensemos o campo da segurança pública a partir da discussão de valores éticos mais amplos,  para além das posições individuais dos policiais.

O sucesso do bolsonarismo entre os policiais se deve justamente ao fato de tratar segurança e ordem como questões morais, resumindo os dilemas da área aos comportamentos e condutas individuais dos policiais e de todos os demais cidadãos – um terreno fértil para leituras religiosas conservadoras e propostas que, ao explorarem o medo da população, criam mitos, narrativas e salvadores da pátria. Pouco ou quase nada se fala sobre as opções político-institucionais que estruturam a segurança no país, mantidas quase que intactas desde 1969, quando boa parte do desenho do atual modelo de organização policial foi pensado e gestado. Aquelas escolhas político-institucionais constantemente reafirmam um padrão de policiamento que valoriza a atividade policial como um contínuo matar e morrer, no qual inteligência e investigação ficam relegadas a um segundo plano. 

Os constituintes de 1987 e todos os governos subsequentes não tiveram disposição para enfrentar os fantasmas do passado. A Constituição de 1988 manteve dissonâncias fundamentais que opõem as polícias entre si e fortalecem visões de mundo moralizadoras e segregadoras. Como consequência, a violência serve como discurso e prática para retroalimentar padrões operacionais, hierarquias e desigualdades socioeconômicas, raciais e de gênero, sem maiores interditos éticos e políticos.  

Mais do que condenar a força da fé nas polícias, especialmente a dos evangélicos pentecostais, os dados do levantamento do FBSP e da Decode sinalizam que, sem novos projetos, as instituições policiais são colonizadas por visões de mundo que investem na moral. Tornam-se assim vítimas paralisadas do corporativismo e da legitimidade que outros órgãos e poderes lhes concedem. Se quisermos que isso seja mitigado, não podemos cair na armadilha de uma guerra santa entre diferentes concepções teológicas sobre ordem e segurança, ou mesmo sobre qual dessas concepções é “moralmente” superior e compatível com a democracia. 

Temos que sair do campo da moral e assumir a segurança pública como um campo eminentemente político, sem abrir mão da crítica ao status quo que ainda está lastreado em paradigmas jurídicos opacos e não democráticos. É preciso apresentar propostas viáveis, transparentes e factíveis para um novo modelo policial, que ofereça condições reais de redução da violência e de garantia da vida e da cidadania. Ver os policiais como inimigos é investir no antagonismo, que só fortalece o bolsonarismo e os joga ainda mais no seu colo.

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