De início, literatura e música eram indivisíveis. As epopeias do mundo antigo, base daquilo que, posteriormente, foi chamado de literatura, eram cantadas. O poeta não se dissociava da voz que canta, sempre acompanhado da lira de Apolo. As palavras não eram um conceito puramente mental, isolado de sua dimensão física, concreta, de evento acústico. O recurso a melodias, ritmos, rimas e repetições não apenas facilitava a memorização de poemas gigantescos, mas criava um entorpecimento mágico no ouvinte, uma espécie de êxtase divino.
Na Antiguidade greco-romana, o poeta era porta-voz dos deuses, canal propiciatório com o além, dotado de poderes divinatórios. E a poesia não era, como é para nós hoje, um subconjunto da literatura – era a própria fonte da literatura.
Sob esse ponto de vista, o prêmio Nobel concedido a Bob Dylan não soa nada estranho. Ele evoca o parentesco remoto entre poesia e música, e também nos faz ver em sua figura os reflexos primordiais dos aedos e vates do mundo antigo – ou seja, dos pais da literatura ocidental.
Paul Simon certa vez declarou que de todos os compositores de sua geração, Bob Dylan é o mais misterioso. Ninguém sabe de onde vem tudo aquilo. A obra de Dylan é caudalosa como aqueles rios imensos do território americano, que fatalmente nos levam a uma queda. As imagens sucedem-se com velocidade, com uma variedade e força plástica impressionantes.
Quando ouvimos Like a Rolling Stone, Desolation Row ou Visions of Johana, temos a impressão de que essas canções poderiam continuar para sempre, de que sua poética se mantém em movimento contínuo, perpetuamente on the road. Não há em Dylan um sentido de acabamento. Não há polimento ou arredondamento das arestas. Seu artesanato é ágil, seco; incorpora com liberdade os acidentes do terreno. Tudo parece encontrado, achado fortuitamente, mais do que construído, provocando uma sensação de vertigem, como se por aquela música nós nos aproximássemos de uma fonte infinita. Lembra o comentário que Stefan Zweig fez sobre o poeta e pintor William Blake: mistura de falta de jeito e perfeição sublime.
Jorge Luis Borges disse que a glória é uma incompreensão. Ela cristaliza certas percepções a respeito de determinado artista ou pensador, cria um modo viciado de ver suas obras. É possível que a conquista do Nobel fortaleça ainda mais certos clichês equivocados sobre a figura de Dylan. Um dos principais seria o de que ele é, acima de tudo, um grande letrista – como se as outras dimensões de seu gênio não estivessem à altura desta. Há até quem diga que ele é meio desafinado, fanhoso etc. De fato, dificilmente Dylan seria encorajado a ser cantor pela qualidade de sua voz – com certeza não seria admitido no The Voice. E isso torna ainda mais surpreendente a aposta feita por John Hammond, da Columbia Records, em lançá-lo, em 1962, como…cantor. Com exceção da última faixa, o disco de estreia de Bob Dylan era feito de covers. Pior: era um disco de voz e violão. E só.
Se há algo que aprendemos com esse primeiro disco é que Dylan não apenas nada tem de desafinado como é um exímio cantor, que aciona um extenso repertório técnico, com ampla consciência expressiva da voz. A voz está a serviço da mensagem, do mood específico de cada uma das canções. Nos anos 1970 iremos encontrá-lo no ápice do domínio da voz, entoando o canto cigano, melismático, de One More Cup of Coffee, o canto falado de Tangled up in Blue, ou variando o timbre para imitar a emissão clássica dos crooners na balada Lay, Lady Lay.
No fundo, é também a voz de Bob Dylan que recebe o Nobel. Em seu canto o inglês americano ganha uma forma de rara limpidez e expressividade. A dimensão física das palavras surge entretecida com a dimensão conceitual do significado, numa verdadeira farra do sentido. Consoantes e vogais são plasmadas com tal intensidade que certas passagens ficam para sempre na memória: a ondulação da palavra “coincidence”, em It’s All Over Now, Baby Blue; o tiro certeiro e agressivo de “blood” e “cops”, em Hurricane; o modo cabal de concluir as artimanhas do destino na expressão “in a simple twist of fate” na canção de mesmo nome, entre tantos outros exemplos.
A variação e os “disfarces” da voz de Dylan expõem também seu amplo domínio sobre o território do folk e do blues. “Só a tradição me interessa”, disse ele, justamente quando era chamado de “Judas” por introduzir a guitarra elétrica em suas apresentações em festivais de música folk nos anos 1960. Mais do que simples afinidade artística, sua identificação com o passado da música americana, que encontra nele um novo momento de concentração e síntese, é de ordem existencial. Ouvindo o folk ele descobriu canções pelas quais se podia “aprender a viver” – é assim que ele relata no documentário No direction home, feito por Martin Scorcese.
Esse teor existencial de sua arte lança luz sobre outra característica marcante de sua poética: a disposição para tratar dos temas fundamentais da condição humana, sejam eles quais forem. In My Time of Dying; Fixing to Die; See That My Grave Is Kept Clean são algumas das canções de bluesmen, interpretadas por ele em seu disco inaugural. O tema da morte, objeto principal do blues, está quase sempre presente. Ao iê-iê-iê, Dylan contrapôs uma seriedade e uma gravidade desconcertantes, criando um modo de ser “escritor” dentro da canção que mudou a ambição de seus contemporâneos. Depois dele John Lennon pediu ajuda (“help!”), os Beatles tomaram outra direção.
As canções de Dylan perdem muito se dissociadas de sua voz. Quando interpretadas por cantoras do calibre de Joan Baez, por exemplo, tendem a evidenciar de modo mais nítido os aspectos líricos, melódicos, a virtude mais propriamente musical das composições. Ficam bonitas, mas perdem um quê de desafio que a voz de Dylan injeta nelas, perdem algo do impulso libertário, da virilidade que essa provocação traz consigo. Em Dylan, palavra e pessoa encarnam-se uma na outra. Porque a qualidade meio chinfrim de sua voz já evidencia em si um triunfo do conteúdo sobre a forma. Com essa voz enjoada, esperávamos que ele tivesse algo realmente interessante para nos dizer. E foi justamente isso que, durante as últimas décadas, ele não parou de fazer.