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    Lalo de Almeida/Folhapress

questões alimentares

Boi com endereço

Se atender à pressão dos exportadores sem criar regulação interna, mercado ameaça criar  dois tipos de consumidor: o que pode comer carne de áreas desmatadas ilegalmente e o que não pode

Pedro de Camargo Neto | 25 set 2020_17h30
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Consumidores estão cada vez mais interessados em receber maior quantidade de informações sobre os alimentos. É o que hoje se chama de rastreabilidade: a capacidade de informar características adicionais dos produtos, entre elas origem geográfica e métodos produtivos, além do que os especialistas chamam de qualidades organolépticas – a cor, o cheiro, a textura.

Muitas vezes determinado alimento exige mais de uma característica. Um queijo gorgonzola, além de vir de uma região específica na Itália, exige métodos produtivos que incluem as gramíneas das quais as vacas se alimentam. Alimentos orgânicos se distinguem ao oferecer um método produtivo no qual os produtos químicos, dos fertilizantes aos remédios chamados de defensivos, são evitados. 

No café, algumas décadas atrás, os importadores passaram a exigir melhores condições de trabalho para o homem. Entrou em cena a questão da legalidade na produção.

No mercado de carne bovina, nas últimas décadas, passamos a encontrar marcas que detalhavam características como maciez, cheiro e cor. O consumidor aprendeu a valorizar raças – e a pagar mais caro pela carne dos bovinos Angus. O produto deixou de ser somente carne de vaca. Em todas as áreas do agronegócio, o consumidor valoriza informações sobre as as condições de produção.

Os importadores de carne passaram a exigir que a produção venha de áreas sem desmatamento na Amazônia. Os grandes frigoríficos reagem e apresentam programas para tentar garantir que a produção seja de fato oriunda de regiões sem desmatamento. Não ficou claro se essa exigência contemplaria o desmatamento legal ou somente o ilegal, e a partir de que data isso seria exigido, embora alguns frigoríficos tenham sinalizado que podem adotar tal medida a partir de 2025..

A rastreabilidade de bovinos já vinha sendo feita havia mais de uma década, resultado do mesmo tipo de pressão. A participação do Ministério Público levou à assinatura de uma TAC-Termos de Ajuste de Conduta, e os frigoríficos se comprometeram a somente comprar bois de propriedades com regularidade ambiental, além, claro, de sanitária e tributária. Não surtiu o efeito imaginado de reduzir o desmatamento, pois se o boi era regular, o bezerro muitas vezes vinha de propriedades irregulares. 

A produção de bezerros na região da Amazônia esbarra também nas falhas de regularização fundiária. Mais de 100 mil famílias, induzidas décadas atrás a ocuparem a região, vivem até hoje em condições irregulares, e na grande maioria são pequenos pecuaristas. Produzem bezerros que ficarão à margem do setor mais organizado da pecuária.

O setor precisa de uma certificação oficial de legalidade. Hoje, como resultado de infrações ambientais no desmatamento, não combatidas com competência e vigor necessários pelo poder público, levamos as empresas a desenvolverem certificação de rastreabilidade privada – quando isso deveria ser um selo público e certificado pelas autoridades sanitárias e ambientais.

A questão do desmatamento precisa ser encarada de frente, não de maneira indireta. Precisamos é da rastreabilidade territorial através dos satélites e inteligência artificial.

Frigoríficos anunciam que, utilizando o sistema de rastreabilidade sanitária oficial, as GTAs – Guias de Trânsito Animal, destinadas a garantir a sanidade do rebanho -, incluirão a exigência de que seus fornecedores também contemplem a questão do desmatamento, do nascimento ao abate dos bovinos.

A proposta, resultado da pressão externa, pode atender à exigência do consumidor estrangeiro. Não é, porém, a melhor para nós brasileiros. O que precisamos é que toda a produção seja legal, não somente a exportada. Do jeito que está sendo feito, é como se o consumidor brasileiro pudesse consumir carne de áreas desmatadas ilegalmente, e o estrangeiro, não.

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