No ato do Sete de setembro de 2024, na Avenida Paulista, o tema da anistia apareceu, direta ou indiretamente, nas falas de todos os protagonistas. Silas Malafaia, Jair Bolsonaro e seu filho Eduardo reclamaram de injustiças praticadas pelo ministro Alexandre de Moraes contra os ditos “presos políticos” – a quem as anistias normalmente se aplicam. Em tom de pregação, Eduardo disse que “todo bom cristão aprende a perdoar”. Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, recorreu a uma analogia médica: “Anistia é um remédio político. O Congresso pode nos dar esse remédio político. Nós merecemos isso.” Bolsonaro chamou o 8 de janeiro de “armação” (sem explicar de quem) e pediu anistia – segundo ele, para garantir a “pacificação” do Brasil. O timing foi calculado: a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara pautou para esta semana a análise do projeto de lei que anistia os golpistas do 8 de janeiro, bonde no qual o próprio Bolsonaro pretende pegar carona.
A anistia é um ato político por meio do qual o Congresso anula as consequências penais de um ou vários crimes. Ela deve ser aprovada como uma lei comum. Assim como a graça (perdão individual concedido pelo presidente da República) e o indulto (perdão coletivo concedido pelo presidente), a anistia é um exercício de clemência que parte de outros Poderes e incide sobre o trabalho do Judiciário, neutralizando, total ou parcialmente, condenações feitas por juízes.
O objetivo, em tese, não é a impunidade. O perdão permite temperar a ação inflexível da Justiça em momentos delicados. No Brasil, já foi aplicado diversas vezes, reflexo da nossa instabilidade política. Getúlio Vargas perdoou a torto e a direito, tentando cooptar adversários insurrecionistas com problemas na Justiça. Juscelino Kubitschek, em gestos conciliatórios, perdoou militares que se rebelaram contra seu governo em 1956 e 1959. O Congresso aprovou, em 1979, a Lei de Anistia, perdoando militares e oposicionistas que, entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram “crimes políticos ou conexos com estes”. E por aí vai.
A lógica do perdão, previsto também na Constituição americana e de outros países, é permitir que o Legislativo e o Executivo usem sua margem de atuação política – coisa que juízes não têm – para lidar com desafios políticos imponderáveis, eventos emergenciais e situações imprevistas. Deve ser aplicado, portanto, quando leis muito duras produzem penas draconianas; quando juízes e promotores, em obediência cega à lei, promovem processos e condenações injustas; ou quando circunstâncias políticas singulares exigem perdão pelos excessos cometidos no passado, de modo a garantir a estabilidade da democracia no presente e no futuro.
A anistia defendida por Bolsonaro não se encaixa em nenhuma dessas categorias. É difícil emplacar a tese de que a lei foi dura contra os invasores que depredaram a Praça dos Três Poderes. Poucos crimes são mais graves, numa democracia, do que tentar aboli-la. Os mais de duzentos condenados até agora receberam penas que variam de 3 a 17 anos de prisão. Mais de uma centena assinou acordos de não persecução penal, trocando a condenação por aulas sobre a democracia. Se há algo a se criticar, é a impunidade, até agora, dos mentores da intentona golpista.
Mais difícil ainda é crer na “pacificação” citada pelo ex-presidente. O termo faz sentido quando se trata de uma situação transitória, na qual a anistia funciona como um compromisso entre campos políticos antagônicos. Nesse cenário, ambos fazem concessões em prol do entendimento comum. Hoje, na Venezuela, essa é uma das saídas que estão sendo cogitadas: anistiar Nicolás Maduro para garantir, em troca, uma redemocratização pacífica. Foi assim também quando o governo colombiano anistiou mais de 7 mil guerrilheiros das Farc, em 2017, ao fim de um longo processo de negociação para pôr fim à guerrilha. Não faria sentido algum anistiar os guerrilheiros se eles continuassem prometendo derrubar o governo por meio da luta armada.
O problema, no caso de Bolsonaro, é que a extrema direita não está interessada em conceder nada. Reclamar anistia no mesmo trio elétrico onde se demoniza um ministro do Supremo é aberrante. Quem chama um magistrado de psicopata e criminoso, pedindo seu impeachment e sua prisão – soma dos discursos de Eduardo Bolsonaro e Silas Malafaia –, não quer paz política. A anistia, nesse caso, serviria não para estabilizar a democracia, mas apenas para libertar aqueles que continuam conspirando para destruí-la. No Sete de Setembro, Bolsonaro voltou a pôr em dúvida a lisura das eleições e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Se disse vítima do sistema, quando a anistia pressupõe a aceitação da legitimidade desse mesmo sistema.
Nenhum perdão é absoluto. Se aprovada uma lei de anistia, o que não é simples, quem terá a palavra final será o próprio Supremo Tribunal Federal. Isso porque a anistia, sendo lei, não escapa ao controle de constitucionalidade feito pelo STF. Os sinais apontam que o tribunal não está disposto a transigir: no ano passado, anulou a graça concedida por Bolsonaro ao ex-deputado federal Daniel Silveira. Os ministros entenderam que ela extrapolava a finalidade própria de um perdão: o ex-presidente não queria paz alguma, mas apenas mostrar que concordava com os ataques contra o Supremo e seus ministros. É improvável que, no caso do 8 de janeiro, o tribunal seja mais generoso e perdoe aqueles que tentaram destruí-lo.
Os problemas de Bolsonaro, porém, talvez comecem antes disso. Para conseguir que deputados e senadores comprem tamanha briga e aprovem a anistia, o ex-presidente precisa provar a eles que ainda é capaz de entregar o que promete: os votos do eleitorado de direita. Desde 2018, Bolsonaro é o líder inconteste desse campo político, puxando-o consigo nos momentos de radicalização e de recuo. O crescimento de Pablo Marçal à revelia de Bolsonaro, em São Paulo, sinaliza para os chefes do Centrão que talvez o ex-presidente não consiga mais entregar tudo o que esperam dele. Ou ao menos que, daqui em diante, não será o único a fazê-lo.