“…como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bulir com os granadeiros e causar extravagâncias ao poder militar.”
Marechal Humberto de Alencar Castello Branco
A política é dinâmica, mas, ao que tudo indica, Jair Bolsonaro cometeu, felizmente, o maior erro tático da sua gestão ao convocar embaixadores e diplomatas para uma reunião no Palácio da Alvorada, no dia 18 de julho. Até então, suas ameaças às eleições exploravam o medo da violência e da ruptura democrática, mas acabavam sendo lidas por setores importantes da vida política, social e econômica do país como bravatas e retórica sem maiores consequências práticas. Os riscos estão postos e são reais e imediatos, mas eram precificados como aceitáveis diante da profunda crise econômica que nos acometeu. Eles são anunciados pelos setores mais progressistas, mas os ouvidos dos donos do orçamento secreto e do dinheiro eram moucos.
Não que o Brasil tenha acordado do transe, mas foi a partir da reunião de Jair Bolsonaro com governos estrangeiros que a intensa mobilização em torno da defesa do estado de direito e das cartas que serão lidas na Faculdade de Direito da USP no próximo dia 11 de agosto começou a ganhar corpo. E por quê? A meu ver, foi porque o presidente, como mau militar que ameaçou explodir bombas em quartéis e que tem buscado se posicionar como liderança das vivandeiras às quais Castello Branco se referia na célebre frase que serve de epígrafe a este texto, bolinou a soberania nacional.
A reunião do dia 18 será lembrada como o dia em que o presidente da República tentou, em nome da sua narrativa de fraude, burlar e enganar aquilo que é mais caro a uma nação, que é a sua independência e soberania na definição dos rumos do país. E, ao fazer isso, pavimentou uma via de convergência que estava até aqui obstruída pelo nevoeiro bolsonarista. Se olharmos os nomes que já assinaram os manifestos do dia 11 de agosto, veremos que Bolsonaro uniu setores dos mais variados espectros ideológicos, com representantes até de grupos ultraconservadores. O “mito” foi abalado.
Mas a via de convergência é tortuosa e esconde riscos e perigos a cada curva, o que nos exige cautela e não autoriza empolgação. E, entre tais riscos, a violência e o medo estão mais do que nunca presentes e podem servir como o grande elemento desestabilizador que provoca o descarrilhamento do trem da democracia. Afinal, ao contrário dos defensores da tese de que as instituições estão funcionando no Brasil, o grau de tensionamento e pressão constante sobre as regras do jogo democrático tem gerado nelas fissuras e reduzido seus espaços de ação. A mobilização cívica é por isso fundamental e não pode ser ameaçada pelo temor da violência.
Porém, os números revelados pela edição 2022 do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que o Brasil é um país perpassado pela violência extrema e pela insegurança. Viver e não ser vítima da violência é um desafio nacional, que é potencializado a depender da região ou do bairro em que se mora, da sua raça, da sua idade ou gênero.
E é nesse ambiente que a simbiose entre violência e bolsonarismo tem sido negligenciada. Dito de outra forma, o bolsonarismo precisa da retórica da violência como seu leitmotiv e como repositora da sua legitimidade. A força do projeto de poder bolsonarista não está no uso desenfreado da violência em si. Está na saturação do debate político com constantes ameaças ao seu uso e com o estímulo para que as pessoas desconfiem das instituições e se armem.
Esse clima de permanente pressão cria fissuras e estimula a emergência de ódios, ressentimentos e paralisa mudanças. Ele “autoriza” que as pessoas se sintam à vontade para Caçar oponentes, Atirar em quem pensa diferente, e Colecionar inimigos, para parafrasear um dos grupos mais beneficiados pela política de liberação das armas de fogo pela gestão Bolsonaro, os CAC (Caçadores, Atiradores e Colecionadores). As instituições ou são capturadas ou são acossadas a tal nível que precisam fazer recuos táticos para sobreviver.
E é exatamente por essa dinâmica que a declaração dada em 12 de julho pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, mas publicizada apenas no dia 27, deveria merecer mais atenção. Ele disse que o Ministério Público, em quase todos os seus ramos (Federal, Militar, Trabalho, Estaduais etc.), está atento para evitar atos de violência durante as manifestações que estão sendo convocadas pelo presidente Jair Bolsonaro para o feriado de Sete de Setembro. A frase, lida pelo seu conteúdo imediato, é positiva e revela cuidado redobrado por parte do Ministério Público para a delicadeza do momento vivido por nós.
Todavia, se Augusto Aras, um dos grandes responsáveis pelo fortalecimento da narrativa bolsonarista ao nunca ter se oposto à retórica da violência, sentiu necessidade de se posicionar de forma tão enfática e clara, é preciso redobrar os cuidados. Se os riscos de ruptura não fossem elevadíssimos, ele não teria pronunciado essa fala e, muito provavelmente, talvez tivesse dito alguma platitude na linha de que “o MP não pode entrar nas disputas políticas e está atento para vigiar a Constituição.” Algum analista poderia dizer: “Ah, mas ele disse isso uma semana antes da reunião do dia 18 e não poderia ter feito diferente.” A questão, contudo, é que exatamente por ter dado tal declaração antes da reunião do dia 18 é que ela revela a gravidade do momento. Ela não está influenciada pela mobilização crescente dos manifestos do dia 11 – a publicidade dada a ela talvez esteja mas ela, propriamente, não.
A gravidade do momento também se reforça no sequestro dos símbolos nacionais pelos apoiadores de Jair Bolsonaro, mas sobretudo pela mobilização nas redes sociais para que a população vá às ruas no Sete de Setembro contra o STF ou a favor da substituição de seus ministros atuais. Se as cartas do dia 11 de agosto parecem estar conseguindo enfraquecer a força do bolsonarismo no plano institucional, aqui incluída a disposição das Forças Armadas e de setores das Polícias estaduais, em aderir a pautas golpistas, é fundamental interditamos a violência como linguagem corrente do cotidiano.
E, para ilustrar o que estou querendo dizer, farei uso de uma experiência pessoal vivida na segunda, dia 25 de julho. Fui cortar o cabelo no mesmo local do qual sou cliente faz anos e passei uma situação inédita. Ao chegar no salão, dois clientes, na faixa entre 40 e 55 anos de idade, estavam vociferando todo o receituário bolsonarista contra as urnas eletrônicas, o STF etc. Eu não costumo entrar nestas polêmicas, uma vez que o espaço de diálogo não existe, mas vendo o barbeiro, que é conservador, constrangido, cometi o erro de indagá-los sobre evidências e defendi o TSE. Foi quando um deles começou a gritar comigo. Percebendo o clima, tentei encerrar a conversa, mas isso os deixou ainda mais irritados. Eles queriam brigar. Era como se eu tivesse cometido um sacrilégio de questioná-los. O mais exaltado dizia que “só acredita em Jair Bolsonaro” e que eu só poderia ser “repórter da Folha ou da Globo” para falar tanta “m…”. Eu quase fui agredido fisicamente. Só não o fui porque saí do salão antes.
Eu poderia trazer diversos outros exemplos de intolerância, violência política, ameaças e crimes que estão surgindo. Mas, na iminência do Sete de Setembro e do primeiro turno das eleições, a pergunta que fica é sobre como vamos colocar esse gênio do mal novamente na garrafa. As cartas são importantíssimas e chegam numa hora fundamental, mas o processo de pacificação da sociedade é tarefa que não se esgota nelas e/ou que possa ser adiado ou contemporizado.