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Bolsonaro e a tirania da maioria

País que exige ficha limpa de políticos desdenha da ficha democrática

Miguel Lago | 15 out 2018_08h42
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Ouvimos de pessoas que entendem do riscado que o candidato Jair Bolsonaro é antidemocrático. Ao mesmo tempo, seus simpatizantes afirmam que ele quase foi eleito no primeiro turno. Como pode ser antidemocrata aquele que se submete às eleições? Será que a democracia se resume a elas? Para os soviéticos, democracia queria dizer coisa bem diferente do que significava para os maoístas (“Nova Democracia” remete à etapa mais sanguinária da revolução chinesa). Para os gregos, democracia se referia à tomada de decisão de maneira direta pelos cidadãos, significado radicalmente oposto ao que ela tem no Ocidente capitalista, do qual o Brasil faz parte. A nossa democracia é fundada no equilíbrio entre soberania popular e respeito à liberdade de todos os indivíduos.

Boa parte dos grandes pensadores do liberalismo – como Stuart Mill, Benjamin Constant, John Locke – alertaram para a importância de o poder emanado do povo (soberania popular) não retirar em nenhuma hipótese os direitos e liberdades individuais. Alexis de Tocqueville foi além, afirmando que o princípio da vontade da maioria não poderia se converter em “tirania da maioria” ao rifar os direitos individuais. Portanto, o valor essencial da democracia liberal é a proteção do estado de direito para todos seus cidadãos, sem excluir ninguém. A vontade da maioria é legítima desde que haja o respeito irrestrito às liberdades individuais – os famosos “direitos humanos”.

Grande parte da crítica marxista à democracia liberal considera que, por trás da proteção aos direitos universais de liberdade individual, o que se protege de fato são as elites detentoras dos meios de produção. Por extensão, esse tipo de visão “linha dura” leva à ideia de que, por trás da defesa de todas as minorias, está a defesa da minoria que importa: a elite capitalista. Seja a partir dessa visão, seja a partir de uma visão liberal clássica, o direito inalienável à propriedade privada e à economia de mercado está intrinsecamente ligado aos direitos individuais.

Nas democracias liberais, o exercício da soberania popular se dá por meio da representação política. O povo delega seu poder após recorrer ao dispositivo das eleições, e a maioria dos votos define quem será o chefe do Executivo. Do ponto de vista organizacional, a principal função da eleição é permitir que elites políticas disputem o poder e nele se alternem pacificamente. A eleição é a melhor maneira de mediar o conflito, impedindo que se transforme em confronto violento e garantindo a estabilidade e a previsibilidade para todos os agentes que dela participam. Além de garantir uma disputa pacífica e respeitosa, conforme um rito e suas normas, a eleição permite que a população se envolva diretamente na escolha da elite política que ocupará o poder.

 

As eleições de 2018 têm uma particularidade, pois nenhum dos dois vencedores do primeiro turno participou ativamente de debates, nem de campanhas. Um saiu cedo da campanha por causa de uma facada que levou; o outro chegou em cima da hora do voto, substituindo um candidato fictício. Em vez da arena de debate, foram o hospital e a cadeia que ditaram as regras da campanhas em que não se discutiu o Brasil. Bolsonaro e Haddad foram beneficiados e poupados da concorrência eleitoral. Não bastasse isso, o ex-capitão ainda foi agraciado pelo bispo Edir Macedo, seu aliado, que ofereceu em sua emissora horário nobre para uma entrevista, transmitida quase na mesma hora em que a Rede Globo apresentava o debate com os demais presidenciáveis. Se isso não qualifica crime eleitoral, é inegável que burla gravemente as condições de disputa entre candidatos.

A candidatura de Bolsonaro é declaradamente contrária ao estado de direito. Em seus discursos de campanha, o youtuber já declarou que os direitos humanos são um empecilho para a política de segurança pública, justificou a tortura, exaltou execuções extrajudiciais e ainda afirmou que “policial que não mata, não é policial”. Disse no seu discurso de vitória de primeiro turno que colocará um “ponto final em todos os ativismos do Brasil”, ou seja, está declaradamente atentando ao direito básico de livre associação e expressão.

A incitação à violência institucional feita pelo candidato é a prova cabal e explícita de que Bolsonaro não tem compromisso com o princípio mais fundamental da democracia: o respeito à liberdade individual. Quando um político se submete às eleições sem se curvar a esse princípio supremo, ele transforma a disputa democrática em tirania da maioria. Se o youtuber for eleito, não haverá respeito aos princípios fundamentais por parte do presidente da República, o que anula toda legitimidade democrática conferida pela maioria da população.

 

A visão de que Bolsonaro é democrata porque se submete às eleições é falaciosa, pois a existência de eleições não garante democracia. Saddam Hussein, Nicolás Maduro, Vladimir Putin, Benito Mussolini, Adolf Hitler são alguns dos ditadores eleitos pelo povo e nem por isso podem ser considerados democratas. E, mesmo supondo que bastaria ser submetido ao rito das eleições para ser considerado um democrata, ainda assim Jair Bolsonaro não seria democrático.

É certo que ele participa da eleição, mas o faz esvaziando-a de princípio e da razão de ser. Em seus discursos mostrou que não faz o embate pacífico com o adversário (fala: “Vamos fuzilar a petralhada”). Seu vice já admitiu a possibilidade de um autogolpe, o que implica o desrespeito ao princípio de alternância de poder. Por fim, ele desrespeita o rito em si, primeiro levantando suspeitas sobre as pesquisas, em seguida espalhando sua rede de fake news, ao afirmar que a urna eletrônica está sendo fraudada e ao repetir esse discurso mesmo após receber cerca de 50 milhões de votos. Como se não bastasse, anuncia que não aceita outro resultado eleitoral senão sua vitória. A eleição como mecanismo de disputa equitativa entre grupos políticos, feita de maneira pacífica e respeitosa, é queimada por Bolsonaro. É esvaziada de sentido institucional, do seu propósito original.

Eis a receita perfeita para uma ditadura de massas: um candidato eleito que não respeita os dois princípios fundamentais da democracia liberal e que é idolatrado por imenso contingente de policiais e militares em todo o país. Não apenas Bolsonaro prepara discursivamente a possibilidade de uma ditadura caso eleito, como já construiu legitimação para si mesmo no caso de uma eventual sublevação dos agentes armados desse país. O Brasil está refém de um candidato que não respeita a democracia. Como pode uma pessoa que é explicitamente contrária ao estado de direito e deslegitima o mecanismo eleitoral ser oficializado como candidato? Como o país que exige ficha limpa não exige também ficha democrática?

Quando o voto perde seu valor institucional, quando as eleições perdem a sua funcionalidade dentro do sistema político, quando o conflito pacífico se transforma em confronto declarado e as garantias fundamentais do indivíduo e os direitos humanos são discursivamente violados de maneira escancarada, sem que as instituições se movam para impedi-lo, é porque a vitalidade democrática já morreu, tornando-se forma vazia. Melhor não ficar cogitando se Bolsonaro dará um autogolpe, pois sua simples eleição já liquida a democracia. Ela subsiste como burocracia, não mais como sistema político, deixando lugar para o novo regime que se anuncia: a tirania da maioria.

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