Na semana retrasada, Jair Bolsonaro foi entrevistado por um grupo de jornalistas nos programas Roda Viva, da TV Cultura, e Central das Eleições, na GloboNews. Na última quinta-feira, ele enfrentou seus concorrentes na Band, no primeiro debate dos presidenciáveis. Foi a estreia de Bolsonaro, fenômeno da internet, na televisão, mídia decisiva para a eleições desde os anos 60.
O ex-capitão botou suas credenciais na mesa: como ele mesmo disse, é o “único candidato” que se integrou à era da hiperconectividade. Tanto seus opositores quanto os jornalistas que o sabatinaram pertencem claramente a uma era antiga da comunicação, e ainda não entenderam a revolução comunicacional trazida pela internet. Se o Brasil fosse formado apenas de pessoas hiperconectadas, Bolsonaro provavelmente já estaria eleito.
As novas tecnologias de comunicação e informação (TICs) são mais do que simples ferramentas. Para o filósofo Luciano Floridi, da Universidade de Oxford, elas são forças ambientais que estão afetando diretamente nossas interações uns com os outros e com o mundo, bem como a concepção que temos de nós mesmos e da própria realidade. As TICs rompem com as referências normativas estabelecidas, introduzindo algumas transformações centrais em nossa vida: ofuscam a distinção entre realidade e virtualidade, invertem a lógica da escassez da informação para a da abundância e, sobretudo, promovem a passagem de um mundo em que a primazia é dada às entidades para outro, em que predominam as interações. Em suma, as TICs afetam diretamente a necessidade que temos de jornalismo (baseado na lógica de escassez de informação) e de instituições (dado que elas importam menos que as interações).
A era hiperconectada leva a sociedade da informação a outro patamar: todas as pessoas podem ser produtoras e consumidoras de informação, por intermédio de uma ampla gama de canais. O meio pelo qual a mensagem é transmitida já não funciona na lógica broadcast – um centro que transmite conteúdo único a uma audiência –, mas multicast – com uma multidão de produtores e veiculadores de mensagens para uma multidão de consumidores. Estes reagem ao conteúdo consumido e com ele interagem, transformando-se também em produtores. Enquanto na lógica broadcast a formação de sentido se dá na concatenação de argumentos com início, meio e fim, na lógica multicast a formação de sentido se dá de maneira fragmentada.
As primeiras aparições de Bolsonaro na tevê foram, nesse sentido, sintomáticas: trouxeram para dentro do meio broadcast por excelência a lógica do multicast. Os jornalistas tanto do Roda Viva, quanto da GloboNews buscavam respostas integrais e coerentes, mas Bolsonaro respondia pensando na fragmentação da informação: usando inversões rápidas, cortes secos, slogans – alguns espertos, outros muito mal formulados –, garantindo assim que os destaques de sua entrevista pudessem ser extraídos e distribuídos por vários diferentes meios multicast. Bolsonaro não apenas trouxe sua horda de seguidores da internet para a tevê: ele usou a tevê como material bruto gratuito para múltiplos vídeos promocionais na internet.
Não é de admirar o espanto dos jornalistas com as suas respostas, que não faziam o menor sentido. Os jornalistas falam uma língua, Bolsonaro outra. Por exemplo, quando perguntado se, possuindo casa própria, ele considerava ético receber auxílio-moradia para manter outro apartamento apenas para “comer gente” (como ele próprio afirmou), o deputado disse: “Se fosse pra dar não teria problema, né?” Ele não só não respondeu à pergunta, como ainda aproveitou para difundir mais uma vez sua homofobia. Enquanto os jornalistas buscavam exaurir algum tema, recorrendo à lógica do argumento, contra-argumento e síntese, Bolsonaro cortava como se fosse um meme da internet. Não tinha argumento, muito menos contra-argumento, mas apenas sacadas rápidas.
A mesma estratégia foi adotada por ele no debate na Band, em que tentou, sem grande sucesso, emplacar uma ou outra sacada, um ou outro slogan. Mas, por não ter sido muito confrontado, não conseguiu virar meme dessa vez. Ainda assim, saiu-se melhor do que os outros candidatos, que funcionam conforme a velha lógica broadcast. Marina Silva, Geraldo Alckmin, Alvaro Dias, Henrique Meirelles e Guilherme Boulos tentaram falar para os eleitores em geral, e Ciro Gomes foi o único que fez um apelo demagógico, dirigido aos que querem limpar o nome no SPC, não passando disso.
Bolsonaro só se comunica de maneira fragmentada. É incapaz de formular um raciocínio com início, meio e fim. Mas isso não interessa na sociedade onde abunda informação: o que importa são as interações, não as entidades. No rádio ou na mídia impressa, Bolsonaro jamais funcionaria, pois nesses meios teria que formular argumentos com certa lógica e alguma ordem. Sua dicção sofrível e seu pouco domínio da língua portuguesa também o impedem de funcionar bem no rádio. Ele está definitivamente talhado para vídeos curtos. E, neles, ele reina.
Se nos atentarmos para o conteúdo da fala de Bolsonaro, veremos que não existe nenhum. Ele não tem nenhuma proposta de política pública, não produz nenhum encadeamento de ideia, não tem nenhum compromisso com as verdades histórica e científica. Mas, isso tampouco importa, pois o “ver” e o “ouvir” estão separados na era da hiperconexão. A informação fornecida pelo “ver” é mais importante do que a entregue pelo “ouvir”.
Pouco interessa as bobagens que Bolsonaro diz sobre segurança pública, o que importa é como fala sobre essas coisas: com energia, pitadas de revolta e muita agressividade. Tampouco importa saber se é verdade o que está sendo dito – e ele tem falado as maiores barbaridades sobre história e sobre políticas de saúde e segurança pública –, mas sempre aparentando sinceridade. Bolsonaro poderia falar em alemão e, ainda assim, teria transmitido as informações que quer. A hiperconexão definitivamente nos insere numa era da política feita por meio do gesto. Não importa ser, basta parecer ser. Não precisa convencer ou ter compromisso com a verdade, basta ser sincero, mesmo que a sinceridade redunde em imbecilidade grotesca.
No primeiro debate eleitoral, Bolsonaro, no meio de uma pergunta que dirigia ao candidato Cabo Daciolo, levou sua sinceridade ao extremo e revelou: “Nós tamo num teatro”, referindo-se ao sistema político. Ao que Daciolo, uma espécie de versão mais jovem do próprio Bolsonaro, respondeu, referindo-se aos demais candidatos: “Chega de promessa, queremos atitude…” – e fazendo um claro sinal à política do gesto – “ouvimos as propostas, agora eles têm a solução pra tudo.” Dessa maneira, debochou das propostas dos candidatos que operam na racionalidade – basicamente todos os outros, com exceção dos dois militares.
Os Daciolos e Bolsonaros não se constrangem com sua ausência de conhecimento ou propostas concretas, pois vão “perguntar no posto Ipiranga” – isto é, a algum suposto especialista da área. A ignorância e a falta de preparo são travestidas de humildade. Uma humildade confessada, com o que o candidato sinaliza ser mais sincero ainda do que se imagina. Como se dissesse: “Eu, ao contrário dos atores desse teatro, não tenho propostas nem soluções porque sou humilde e sincero.” E, ao tentar desmascarar a falsidade, a artificialidade e a teatralidade do sistema político, ele pretende mostrar que, antes de ser um político, é um ser humano como outro qualquer.
Esse tem sido seu cartão de visitas em todas as entidades patronais: “Não entendo de economia”, “não entendo de agricultura, não entendo um montão de coisa”. Para o espanto geral, os empresários parecem ter gostado. A simpatia de que ele goza junto aos ruralistas deve-se, parece, a afirmações de que a política agrícola seria definida pelos próprios produtores rurais e que o papel dele como presidente seria garantir que o homem do campo possa portar armas e que haja mais polícia para impedir as invasões de terra. O ex-capitão oferece uma política pública inexistente – dado que é definida por empresários –, mas assegura a presença de um estado policialesco. Ele é um candidato sem proposta, mas certamente com atitude. A hiperconectividade nos traz de volta à máxima do poder na pré-modernidade: “Fazer morrer, deixar viver.”
O que leva alguém sem proposta alguma a ambicionar a Presidência da República? O desejo de chegar ao poder apenas para ocupá-lo e exercê-lo – sem sentido nem orientação – sobre os demais. É um poder que não pretende ser um meio de ação no mundo, mas apenas um recurso vazio de dominação das pessoas. E, dessa maneira, o candidato do Brasil hiperconectado tira a alma de tudo o que importa: a informação é esvaziada da verdade; a imagem, dissociada da fala; a atitude, esvaziada do conteúdo; e o poder, esvaziado de sentido.