Eleições em democracias presidencialistas são, tipicamente, referendos sobre o governo que termina. O desempenho passado do governante importa tanto porque afeta consciente ou inconscientemente o bem-estar dos eleitores quanto porque informa as perspectivas de desempenho futuro. Em situações “normais”, portanto, a avaliação do governante é um bom preditor do resultado eleitoral. Mas quando não há um candidato competitivo da situação, a eleição fica imprevisível. A eleição de 2018 foi uma dessas exceções. Sem um candidato do governo Temer no centro do debate, a narrativa da eleição gravitou para Lula e seu partido, que havia sido defenestrado da Presidência havia pouco mais de 24 meses.
Se Bolsonaro conseguir completar seu mandato, teremos em 2022 uma eleição muito mais “normal” do que em 2018. Se for candidato à reeleição, não será trivial desviar a atenção do seu legado e repetir o discurso antipetista de 2018. Como todos os presidentes que se candidatam em qualquer país, Bolsonaro terá que defender suas ações passadas e convencer os eleitores de que é a melhor opção para os próximos anos. Nesse sentido, os níveis atuais de popularidade de Bolsonaro podem até fazer dele o “favorito” hoje, como foi divulgado recentemente na mídia, mas não são o suficiente para uma vitória em 2022.
A relação entre a avaliação de desempenho dos presidentes e voto (e/ou intenção de voto) é bastante forte. A figura abaixo mostra a parcela do eleitorado que avaliava positivamente o desempenho do presidente às vésperas de cada eleição presidencial realizada desde 1989 e a porcentagem dos votos válidos obtidos pelo candidato “do presidente”. Aqui invocamos uma licença poética para considerar Ulysses e Meirelles os candidatos de Sarney e Temer, respectivamente, embora o apoio daqueles a estes não ter sido enfático.
Estimar uma relação entre duas variáveis com apenas oito pontos é uma empreitada temerária, mas a figura mostra uma relação bastante direta entre a popularidade do governo e a votação em primeiro turno do candidato da situação. Até um nível de cerca de 50% de avaliações positivas, essa relação é um pouco superior a um para um. A popularidade de Lula, em 2010, estava muito acima deste patamar, mas a votação de Dilma foi mais acanhada. Isso sugere que pode haver um limite na capacidade de conversão de avaliação em votos. Ainda assim, no terreno dos “mortais”, a popularidade parece que é um excelente indicador de voto.
Essa relação direta não significa necessariamente que quem avalia bem o presidente é quem vota nele no primeiro turno. Mas os dados em nível individual sugerem que essa é uma boa aproximação da realidade, ao menos quando o próprio presidente concorre à reeleição. Considerando as três eleições em que isso ocorreu no Brasil – aquelas indicadas com pontos pretos na figura acima – vemos um padrão muito regular na conversão de avaliação em voto.
Infografia: Emily Almeida
Com base em opiniões reveladas em pesquisas de intenção de voto do Datafolha realizadas às vésperas das eleições (disponíveis ao público no repositório de pesquisas do CESOP-UNICAMP), vemos que entre 75 e 80% dos que avaliavam os presidentes positivamente declararam intenção de votar neles. Os três também tiveram um desempenho quase que igualmente pífio entre os que os avaliavam negativamente. FHC se saiu algo melhor entre os que o avaliaram como “regular”, obtendo 41% deste grupo contra menos de 30% para Lula e Dilma. No segundo turno – que FHC não precisou encarar – a conversão dentre as avaliações regulares de Lula e Dilma subiu um pouco, para 39% e 33% respectivamente, mas ainda assim ficou aquém da de FHC. Essa maior dificuldade de converter os “indiferentes” registrada pelos candidatos do PT pode ter sido causada por características do candidato à reeleição, dos seus opositores no respectivo pleito, ou ainda pode até ser uma função de uma crescente polarização política. Podemos especular, mas com apenas três casos é impossível discriminar entre as alternativas.
A mensagem aqui é simplesmente que, para um presidente que tem entre 25% e 30% de avaliações positivas, receber cerca de 30% das intenções de voto em uma pesquisa de opinião não chega a ser notícia. Se a eleição fosse hoje, o presidente estaria numa situação levemente melhor do que estava FHC em 2002 em termos de popularidade. Naquela eleição, José Serra – o candidato da situação – chegou ao segundo turno, mas não ganhou. Projetando com base na popularidade atual de Bolsonaro, segundo a última pesquisa IPESPE/XP, que já reflete um pequeno aumento desde o mês anterior, e utilizando as generosas taxas de conversão de avaliação em voto registradas por Lula, Bolsonaro teria 32% dos votos num primeiro turno e 36% num segundo. Bolsonaro seria, obviamente, um candidato relevante, como quase qualquer presidente em qualquer país presidencialista o é; não seria o suficiente para vencer. O que o faz favorito hoje é a mera ausência de outros candidatos, o que é completamente normal dado que faltam mais de dois anos para as eleições.
A conduta do presidente sugere que ele considera esse cenário positivo. O seu plano deve incluir uma aposta num segundo turno contra um candidato apoiado (expressa ou tacitamente) pelo PT, no qual eleitores antipetistas o apoiem mesmo sem avaliá-lo positivamente. Bolsonaro espera repetir 2018. Para isso, é necessário que o “medo do PT” gere votos mesmo entre os que não consideram seu desempenho como bom ou ótimo. Numa analogia futebolística que poderia partir do próprio presidente, o técnico, sabendo que seu time é ruim, monta uma retranca, distribui pontapés para diminuir o ritmo de jogo e incentiva a torcida organizada a ameaçar invadir o campo para intimidar o juiz. Busca segurar o empate até o final para, quem sabe, ganhar nos pênaltis.
A aposta nesse cenário ajuda a entender por que Bolsonaro trata sua gestão como um mero interlúdio entre suas campanhas eleitorais passadas e futuras. Até hoje, na sua carreira política, teve sucesso eleitoral sem nenhuma realização, então por que mudaria agora? No entanto, esse cenário é improvável se considerarmos que em 2022 o PT terá estado longe do poder há seis anos e que Bolsonaro terá estado no poder há quatro anos. Presidentes, em todos os lugares de que se tem notícia, são responsabilizados pelo bem-estar dos eleitores e avaliados pelo que fizeram no mandato passado e/ou pelo que se dizem capazes de fazer no próximo mandato. Em 2022 vai ser bem mais difícil ativar o “medo do PT” quando as ações do governo em relação ao desemprego, crédito a empresas e, por que não, meio ambiente, educação, armas e a própria pandemia forem questionadas.
Para vencer, Bolsonaro precisará melhorar a avaliação que os eleitores têm dele. A pergunta mais interessante, portanto, não é onde estamos hoje, mas onde estaremos em 2022? Note-se, de saída, que é incomum que presidentes terminem mandatos mais populares do que começaram, e essa é uma regularidade constatada para além do Brasil (ver Public support for Latin American presidents: The cyclical model in comparative perspective, de Carlin et al). Em que pese Bolsonaro já ter começado num nível um pouco mais baixo do que os outros presidentes eleitos – o que sugeriria um “teto” de popularidade razoavelmente baixo – ele não está mais em início de mandato e caiu bastante desde então. A diferença entre esse teto inicial e os níveis atuais sugere pode haver espaço para uma melhora. Afinal, tanto FHC quanto Lula tocaram ou se aproximaram dos 30% de popularidade com cerca de dezoito meses de mandato e depois se recuperaram e conseguiram se reeleger. Poderia essa história se repetir com Bolsonaro?
A popularidade de FHC “andou de lado” ao longo de seu primeiro mandato. Ele teve um momento de baixa em 1996, mais ou menos no mesmo ponto de seu mandato onde hoje se encontra Bolsonaro, acompanhando o esfriamento da economia naquele ano. Recuperou-se no ano seguinte, com a melhora da economia, e depois despencou com a crise asiática que reduziu bastante o crescimento do país no seu segundo mandato. FHC se reelegeu às vésperas dessa crise, com um discurso que enfatizava a experiência no manejo da economia, que era crível devido ao capital político acumulado com o plano Real antes mesmo de se tornar presidente. FHC foi também capaz de pilotar um notório ciclo econômico-eleitoral, que protelou o necessário o ajuste cambial para logo depois da eleição, adiando assim a despencada da sua popularidade para o início do seu segundo mandato. Se os efeitos da crise internacional tivessem sido sentidos três meses mais cedo, FHC talvez não tivesse sido reeleito. Bolsonaro não tem esse capital para queimar, e as condições econômicas atuais são muito piores do que então.
Há algumas similaridades aparentes entre a situação de Lula e a de Bolsonaro que sugerem que esse talvez seja o modelo que o presidente espera emular. A popularidade de Lula ao longo de seu primeiro mandato forma um claro “W”, tendo tocado os 30% de avaliação positiva (bom/ótimo) em julho de 2004 – mesmo ponto no seu mandato em que Bolsonaro se encontra hoje – e novamente em setembro de 2005, em meio a crises políticas que pareciam anunciar uma abreviação de mandato. Note-se, no entanto, que a popularidade de Lula nunca permaneceu nesse nível por muito tempo. E o que tornou Lula um presidente muito popular a partir de 2006 não foram só, nem talvez principalmente, os programas de transferência de renda. O crescimento econômico do país, a queda do desemprego e o aumento da renda da população, que ocorreu de forma sensível, sustentada e ininterrupta a partir de pelo menos 2004, contribuíram para levar a popularidade de Lula às alturas. Hoje, pelo menos, esse fatores não estão no horizonte.
Embora sejamos tentados a atribuir esses notáveis resultados econômicos às ações do governo de Lula, nem as políticas implementadas, nem os seus resultados teriam sido possíveis sem condições econômicas externas extremamente positivas. Não houve mágica. Sem o superciclo de commodities e sem a queda de juros internacionais não teria havido a bonança e Lula não teria sido tão popular assim. A principal – porém não a única – evidência em prol dessa interpretação vem do fato de que a popularidade dos contemporâneos de Lula seguiu a mesma trajetória excepcional do brasileiro. Praticamente todos os presidentes de países da América do Sul que governaram entre 2005 e 2010 foram extremamente populares. Néstor Kirchner, Álvaro Uribe, Evo Morales, Hugo Chávez, Rafael Correa, Tabaré Vázquez e Michelle Bachelet foram mais populares nesse período do que presidentes que vieram antes ou depois. Os dois últimos, inclusive, foram mais populares do que eles mesmos conseguiram ser quando governaram novamente alguns anos mais tarde, tal e qual o Lula foi muito mais popular no seu segundo mandato do que no primeiro. Quando todas as exceções ocorrem ao mesmo tempo, uma explicação comum ganha força.
Embora ciclos econômicos internacionais sejam difíceis de prever, não há um boom como o dos anos de Lula no horizonte e, ainda que se iniciasse no ano que vem, seus efeitos seriam sentidos apenas algum tempo depois. O grande “trunfo” recente de Bolsonaro – o auxílio emergencial – não é sustentável a médio e longo prazos nos termos atuais. Se deixar de existir, ou se for reduzido em valor ou abrangência (o que é provável), seus possíveis efeitos na popularidade também serão reduzidos. Ainda que tenhamos uma recuperação cíclica razoavelmente rápida pós-pandemia (o que é duvidoso), a conjunção de fatores sugere que o presidente poderá se dar por muito satisfeito se conseguir “arrancar um empate’’ e manter seus níveis atuais de popularidade. Se o presidente chegar a 2022 com a popularidade atual, talvez não seja mais o favorito.