“Pimenta nos olhos dos outros é um refresco e tanto.” O comentário foi feito numa rede social, logo abaixo de uma matéria que reportava o incômodo de judeus com um controverso encontro do presidente Jair Bolsonaro. Na última quinta-feira (22), fora da agenda presidencial, Bolsonaro recebeu em seu gabinete a deputada alemã Beatrix von Storch, vice-líder da Alternativa para a Alemanha (AfD), partido de extrema direita com fortes inclinações neonazistas. O encontro veio a público na segunda-feira (26) quando a deputada alemã postou uma foto com o presidente em suas redes sociais. Com farto sorriso, que não murchou nem mesmo durante o acúmulo de quase 600 mil mortos pela pandemia, Bolsonaro abraçava von Storch de um lado e seu marido do outro.
A AfD é um partido racista, xenófobo, antissemita, islamofóbico, negacionista da pandemia e revisionista do Holocausto. Este ano o partido foi colocado sob vigilância pelo Estado Alemão e passou a ser considerado uma potencial fonte de terrorismo interno e ameaça à democracia. Como se não bastasse, von Storch é neta de Johann Ludwig von Krosigk, que foi ministro das Finanças de Adolf Hitler na Alemanha nazista. Além do próprio presidente da República, von Storch foi recebida pelos deputados Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), Bia Kicis (PSL-DF), pelo ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, e pelo secretário especial de Cultura, Mario Frias.
Diversas instituições judaicas, como o Museu do Holocausto, o Instituto Brasil-Israel (IBI) e a Confederação Israelita do Brasil (CONIB) repudiaram os encontros. Mas o diabo mora nos detalhes. Parte do debate no dia em que a foto foi publicada esteve centrado em criticar a indignação de grupos judaicos. Para além do episódio do encontro em si, pessoas do campo anti-Bolsonaro criticaram abertamente o suposto “atraso” dos judeus no repúdio a Bolsonaro e disseram que eles teriam sido até então coniventes diante de comportamentos violentos do presidente contra outras minorias.
Nessa tônica, são mencionadas as abomináveis falas de Bolsonaro na Hebraica do Rio de Janeiro, nas quais o então candidato se valeu de termos racistas para falar da população afro-brasileira e indígena. Ao rememorar esse episódio, porém, as reações críticas de judeus ao evento são comumente invisibilizadas: não se menciona o grupo de judeus que protestavam do lado de fora e minimizou-se a explícita recusa de judeus paulistanos em receber o pré-candidato no clube Hebraica de São Paulo.
Entre alguns grupos de judeus há uma percepção corrente de que a identidade judaica no Brasil hoje está sendo instrumentalizada por um projeto político. Bolsonaro e os bolsonaristas, alguns deles judeus, como Fábio Wajngarten, ex-chefe da Secretaria Especial de Comunicação Social do governo federal (Secom) e o empresário Meyer Nigri, buscam construir uma sinonímia entre ser judeu e ser de extrema direita. O judeu forjado pelo bolsonarismo é militarista, branco, elitista e peça-chave do sistema financeiro.
São inúmeras as tentativas do bolsonarismo de caracterizar a comunidade judaica, pretensamente homogênea e coesa, como pró-Bolsonaro. Bolsonaro mobiliza a judaicidade como signo de pertencimento a um grupo influente e poderoso. Ele usa e abusa de um imaginário antissemita: faz crer que a proximidade com judeus o torna aliado de um grupo seleto, com enorme capacidade de controlar o poder e manipular a realidade.
Parte do campo antibolsonarista parece também ter comprado essa narrativa. Nesse contexto, e são fartos os comentários nesse sentido, os judeus como um todo passam a ser julgados como o “maus judeus”, aqueles que não aprenderam com o Holocausto a edificante lição de defender as minorias para evitar novos genocídios. Assim, encampam a ideia de que um massacre étnico tenha a função pedagógica de ensinar algo às suas vítimas.
Apesar de sermos apenas 0,06% da população brasileira, os campos pró e anti-Bolsonaro comumente apontam judeus como protagonistas na eleição de Bolsonaro – teriam sido responsáveis pela legitimação e aproximação do então candidato junto ao sistema financeiro. O fato é que o bolsonarismo buscou ganhos políticos ao tentar fazer crer que judeus e Bolsonaro seriam como unha e carne. Fábula que Bolsonaro tem mais dificuldade de sustentar diante dos encontros com a AfD na semana passada.
Uma das condições de minoria é que o grupo, ou melhor, a imaginação sobre o grupo, se antepõe ao indivíduo. Como característico do pensamento racista e da visão depreciativa sobre todos os grupos étnicos, presume-se a sua homogeneidade. Para os não judeus, uma comunidade imaginada tem forte valor operativo, podendo ser mobilizada para projetos políticos diversos, como já aconteceu em pelo menos outro momento de nossa história política.
Em 1937, enquanto Adolf Hitler consolidava seu projeto nazista para a Alemanha, o Exército Brasileiro preparava um golpe de Estado que teve como peça-chave o famigerado “Plano Cohen”. Forjado pelo capitão Olímpio Mourão Filho, o “plano” seria a prova de um suposto complô judaico-communista para derrubar o governo brasileiro. Levado a público por um general no programa Hora do Brasil, o “plano” foi utilizado para promover o terror na população e forçar o Congresso Nacional a aprovar o estado de guerra. O movimento culminou no fechamento do Congresso e na instauração do Estado Novo.
O “plano” reverberava o tom conspiratório do apócrifo panfleto antissemita dos “Protocolos dos Sábios de Sião”, publicado em 1903 na Rússia Czarista e amplamente difundido em toda a Europa por grupos antissemitas e nazistas. Composto por falsas atas de uma reunião que teria sido realizada por sábios judeus na Basileia em 1898, o panfleto “descreve os ‘planos secretos’ judaicos para controlar o mundo através da manipulação da economia, controle dos meios de comunicação, e estímulo a conflitos religiosos”, conforme consta na enciclopédia do Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos, em Washington.
Três anos antes do “Plano Cohen”, em 1934, o historiador antissemita Gustavo Barroso, em Brasil Colônia de Banqueiros, sintetizou em uma frase a fórmula canônica do antissemitismo moderno: “[Léon] Trótski e [Barão de] Rotschild marcam a amplitude das oscilações do espírito judaico; estes dois extremos abrangem toda a sociedade, toda a civilização do século XX.” Seja como revolucionário comunista ou como o banqueiro multimilionário, o judeu seria “o outro” insidioso, capaz de mover forças ocultas para conquistar o poder e subjugar outros povos.
A utilização da retórica da influência judaica não é exclusividade da extrema direita. Em 1953, Stalin se valeu de uma falsa conspiração de médicos judeus para justificar o seu plano de expurgos e terror. O episódio ficou conhecido como o “Complô dos Médicos“, inflamados pela propaganda soviética como “assassinos de bata branca” com assistência judaica.
A projeção dos judeus como um grupo hiperpoderoso diz mais a respeito do projeto político de quem fala do que dos próprios judeus. Fábio Wajngarten, talvez o mais conhecido nome judaico do governo Bolsonaro, no final das contas, é mais importante para o bolsonarismo do que para a comunidade judaica.
Em uma tonalidade por ora menos violenta, os judeus parecem ocupar um lugar central nas disputas políticas brasileiras, como comunidade imaginada e mobilizada pelo bolsonarismo. A única inovação de Bolsonaro é não tratar os judeus como uma ameaça ao seu projeto, mas como artífices que lhe seriam úteis.
A ideia de que os judeus seriam majoritariamente bolsonaristas não se sustenta diante de patente diversidade do que é ser judeu no Brasil hoje. Assim como em todos grupos sociais, os judeus são diversos em seus posicionamentos políticos. A oposição ao bolsonarismo entre judeus é tão ampla e forte quanto seu apoio, como fica evidente nas frequentes críticas que esse grupo tem feito ao atual governo, a exemplo da carta em que intelectuais e pensadores judeus denunciam traços nazistas e fascistas em Bolsonaro – antes mesmo da fatídica visita de von Storch.
Acuado e fragilizado internamente, Bolsonaro busca no encontro com von Storch a sustentação do que há de pior nos movimentos reacionários internacionais. O abraço à vice-líder do partido neonazista alemão é um abraço de desespero, que coloca uma pá de cal nas tentativas de contemporizar a violência de seu projeto político.
E isso, obviamente, diz respeito não apenas aos judeus. Embora a retórica nazista estivesse particularmente centrada nos judeus, sua ideologia promovia um mundo em que toda e qualquer minoria fosse subjugada à supremacia ariana.
Judeus, definitivamente, não são a minoria que mais sofre sob o governo de Jair Bolsonaro. Ainda assim, o sinistro caldeirão de perversidade no qual Bolsonaro cozinha a fogo lento o país com um governo autoritário, obscurantista, que utiliza de argumentos eugenistas para manejar a pandemia, é um catalisador para o recrudescimento do antissemitismo. E torna claudicante qualquer tentativa de uso da imagem dos judeus para seu projeto de país.