No fim do ano passado, quando parte do mundo começava a controlar a pandemia, uma nova variante surgiu para mudar as regras do jogo. A Ômicron acumulou tantas mutações que se tornou praticamente irreconhecível, quase um novo vírus — e o mundo segue batendo recordes de casos da doença. Para mitigar os efeitos dessa nova onda, alguns países já começaram a aplicar um novo reforço vacinal, com uma quarta dose da vacina. Mas priorizar o reforço sem garantir doses a todos é um tiro no pé, alertam os especialistas. Países ricos até poderiam bancar sucessivas doses para manter a alta proteção pelo tempo que for necessário. Países pobres, não. Mais de 38% da população mundial não recebeu sequer a primeira dose, segundo dados do Our World in Data. Entre os países de baixa renda, apenas 10% da população recebeu pelo menos uma dose. O uso do reforço intensifica a desigualdade na cobertura vacinal – e, por isso mesmo, alimenta o eterno ciclo da pandemia.
A ideia da dose booster é relativamente simples: a aplicação aumenta o nível de anticorpos em circulação e desperta o sistema imunológico. Mesmo que o desempenho geral da primeira geração de vacinas seja mais fraco para as novas variantes, uma concentração alta de anticorpos melhora o efeito protetor – mas por tempo limitado. Num cenário de descontrole, garantir a proteção dos países mais pobres seria a escolha mais vantajosa do ponto de vista da saúde pública. Mas não necessariamente do ponto de vista financeiro. Para as farmacêuticas, a dose extra é lucrativa. De acordo com um levantamento feito em janeiro pela Airfinity, companhia britânica que analisa dados de saúde, os programas de dose booster em países ricos ajudarão a impulsionar as vendas de vacinas no ano de 2022. A estimativa é que essa venda de doses de reforço cresça 30% em 2022. Em 2021, as empresas embolsaram cerca de 66 bilhões de dólares vendendo reforço.
Segundo cientistas ouvidos pela piauí, o contínuo reforço vacinal é uma solução provisória, que será insustentável a longo prazo. “Ninguém vai aguentar vacinar o mundo inteiro a cada seis meses. Isso é um grande problema, especialmente pelo custo da vacina”, diz Ricardo Gazzinelli, ex-presidente e membro da Sociedade Brasileira de Imunologia e coordenador do Centro de Tecnologia de Vacinas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em reunião de projeto da Organização Mundial da Saúde, a epidemiologista Cheryl Cohen insistiu que a estratégia de dose booster é inacessível para países como a África do Sul, onde ela trabalha como chefe do Centro para Doenças Respiratórias e Meningite. A avaliação de Cohen leva em conta tanto os empecilhos na logística da campanha de vacinação quanto a concorrência na priorização das vendas.
O uso do reforço, na prática, cria uma demanda que favorece quem pode pagar. “As farmacêuticas têm total condição de produzir vacinas para o mundo inteiro. A questão é que essa produção está sendo direcionada para fazer o reforço de países ricos – não para imunizar de forma igualitária”, argumenta o imunologista Gustavo Cabral, pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e especialista em desenvolvimento de vacinas. Um outro levantamento da Airfinity mostra que mais de 240 milhões de doses compradas pela União Europeia e por países do G7 perderão a validade em março deste ano. Ou seja, o problema não é de abastecimento, mas de distribuição.
“Na verdade, manter outros países marginalizados, sem vacina, acaba sendo um bom negócio para alguns grupos”, avalia o imunologista Gustavo Cabral. Sua crítica é baseada no histórico da pandemia de Covid e no que ele prevê para o futuro próximo: um ciclo perigoso de desigualdade. Regiões com baixa cobertura vacinal são – e continuarão sendo – o berço de novas variantes, que podem se espalhar rapidamente pelo mundo. Essas variantes, driblando o sistema imunológico, exigem que cada vez mais doses de vacina sejam aplicadas para sustentar o alto nível de proteção. As farmacêuticas, então, vendem mais doses de reforço para países ricos continuarem se protegendo, enquanto países pobres continuam à míngua. Como consequência, a desigualdade vacinal aumenta, e outras variantes surgem onde a cobertura vacinal permanece baixa. Assim o ciclo se renova. “Quando a gente vai parar e pensar em distribuir essas vacinas para o resto do mundo?”, questiona Cabral.
Hoje é como se estivéssemos tentando apagar o incêndio em um prédio inteiro controlando apenas as chamas de um andar. “Seria muito mais inteligente o mundo rico vacinar logo o mundo pobre do que ficar fazendo quarta, quinta, sexta dose”, diz Rosana Richtmann, infectologista do Hospital Emílio Ribas. Ela lembra que o objetivo agora é diminuir a circulação do vírus e limitar o surgimento de novas variantes. “Sem isso, vamos ficar como cachorros correndo atrás do próprio rabo”, resume Richtmann.
As farmacêuticas evitam passar a ideia de que estão, de alguma forma, se beneficiando da crise global – mas a venda de vacinas é um negócio lucrativo. Tanto que o CEO da Moderna (farmacêutica que produz vacinas contra a Covid) e o cofundador da BioNTech (parceira da Pfizer na produção de imunizantes), por exemplo, entraram na lista de bilionários da Forbes em 2021. Essas empresas fazem um trabalho importante no combate à pandemia, e por isso mesmo entraram numa espécie de zona de conforto sobre seu papel na imunização, avalia o imunologista Gustavo Cabral, da USP. “Ninguém tem que atacar as empresas que fabricam vacinas, o ponto não é esse. A gente só precisa cobrar o retorno do que estamos pagando”, diz ele. Atualmente os países mais ricos gastam uma fortuna para, em troca, receber imunidade – mas não é exatamente isso que estão ganhando se o resto do mundo continua sem acesso às doses. E o cenário piora quando variantes perigosas, como a Ômicron, entram em cena.
Em nota, a Pfizer disse que sua responsabilidade e principal função é colaborar “com profissionais de saúde, governos e comunidades locais para promover e ampliar o acesso a cuidados confiáveis e acessíveis com a saúde em todo o mundo”.
As vacinas atuais ainda cumprem seu papel de evitar hospitalizações e mortes pela doença, mas não conseguem impedir a infecção e transmissão das variantes mais perigosas. Isso inclui a Ômicron, que faz a proteção contra infecções e doenças moderadas diminuir mais rapidamente do que o observado com as cepas anteriores, graças a uma mutação em uma área importante do vírus. Enquanto as farmacêuticas não atualizam suas vacinas, usar o booster se tornou uma saída para garantir a continuidade da proteção onde a cobertura vacinal já é alta. Pelo menos duas cidades brasileiras já decidiram, por conta própria, avançar com a quarta dose: Botucatu, em São Paulo, e Volta Redonda, no Rio de Janeiro. Mas dados encontrados em Israel – país pioneiro na estratégia – não foram muito animadores.
“A aplicação desse novo reforço com as vacinas produzidas para a cepa original não fez grande diferença frente à Ômicron”, avalia o imunologista Ricardo Gazzinelli, da Sociedade Brasileira de Imunologia. Os resultados não surpreenderam os especialistas, que já previam esse desfecho. Afinal, quanto mais o Sars-Cov-2 se modifica, menos efetiva se mostra a primeira geração de vacinas, desenhadas a partir do vírus que emergiu em Wuhan há dois anos. “Não faz sentido e não vai dar para controlar a pandemia das novas variantes só usando como reforço com uma vacina desatuzalizada”, diz Gustavo Cabral.
No começo deste ano, a OMS pediu que os desenvolvedores de vacina se esforcem para fabricar imunizantes com proteção mais ampla, forte e duradoura – justamente para evitar a necessidade de sucessivas doses booster. O Grupo Consultivo Técnico da instituição alertou também para a necessidade de atualizar os imunizantes já existentes. Segundo especialistas ouvidos pela piauí, isso deveria ser prioridade no atual momento da pandemia.
Atualizar uma vacina significa incluir informações referentes às mutações na composição do imunizante. Isso não é um demérito à primeira geração de vacinas, altamente eficazes contra a cepa original. Trata-se de um procedimento comum para vírus respiratórios, que têm alta capacidade de modificação. É assim com a gripe, cuja vacina também é atualizada regularmente. O problema é que o Sars-CoV-2, por estar se alastrando de forma cada vez mais rápida, muda numa velocidade muito maior. “Uma vacina atualizada amplia a proteção contra variantes de preocupação e pode gerar imunidade mais duradoura”, avalia Cabral. “Isso nos daria uma folga para levar vacinas a países mais pobres.”
As farmacêuticas que acompanham as mutações e testam continuamente a efetividade de suas vacinas, como a Pfizer e a Janssen, julgaram que os ajustes não eram necessários para as variantes anteriores. Mas a Ômicron acendeu um alerta para algumas dessas empresas. No fim de janeiro, a Pfizer iniciou um estudo clínico que avalia o desempenho de uma vacina adaptada especificamente para a Ômicron. A Sinovac, que produz a CoronaVac em parceria com o Instituto Butantan, também divulgou que trabalha em atualizações – mas não detalhou a operação. Procurado pela piauí, o Butantan informou não saber em que pé estão os estudos. Já a Fiocruz disse desconhecer projetos de atualização para a vacina produzida em parceria com a AstraZeneca. A Janssen informou à piauí que não realiza atualizações no momento, mas avalia a alteração “caso surja a necessidade”.
O estudo da Pfizer vai investigar o melhor regime de vacinação contra a Ômicron. Para isso, dividiu os voluntários em três grupos: o primeiro receberá a vacina atualizada depois de duas doses da vacina atual, o segundo receberá a atualização depois de três doses e o terceiro grupo, composto por pessoas não vacinadas, receberá apenas o imunizante produzido a partir da Ômicron. O objetivo é testar a efetividade dessa nova composição nos três cenários diferentes. À piauí, a Pfizer explicou que, caso a atualização se mostre necessária, a nova versão da vacina poderá levar mais de três meses para ser produzida.
A atualização melhora o desempenho dos imunizantes, mas, ao mesmo tempo, inaugura um novo desafio: uma espécie de corrida contra o tempo. Até que as vacinas atualizadas sejam produzidas e cheguem às prateleiras, outra variante completamente diferente pode surgir no caminho. “É uma caixinha de surpresas”, lembra o imunologista Ricardo Gazzinelli. Por isso, o sonho dourado dos cientistas é uma vacina universal contra a Covid – uma que funcione para todas as eventuais novas variantes, com eficácia prolongada e ampla resposta imunológica. Seria, também, uma forma mais democrática de levar imunização a países que não podem bancar novas atualizações – e doses de reforço – com frequência. “Já está mais do que na hora de buscarmos essa tecnologia”, diz a infectologista Rosana Richtmann. “O objetivo agora é parar de correr atrás do próprio rabo.”
Alguns pesquisadores brasileiros já trabalham em uma vacina universal. Cientistas do Centro de Tecnologia de Vacinas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com a Fiocruz e a Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto, apostaram numa solução teoricamente simples e efetiva: atacar a parte do vírus que não sofre mutações. Isso porque algumas proteínas são naturalmente menos suscetíveis a mudanças e, de certa forma, seguiram incólumes nas últimas variantes do Sars-CoV-2. É o alvo ideal para uma vacina contra um vírus que se modifica tão rapidamente. “Nós focamos no nucleocapsídeo, uma proteína que se mantém mais conservada no núcleo do vírus”, explica Ricardo Gazzinelli, que também coordena a pesquisa na UFMG. O antígeno fabricado pelo grupo é uma quimera: uma união de duas proteínas importantes que, juntas, fazem com que a resposta do sistema imunológico seja melhor.
É uma tecnologia diferente da usada na primeira geração de vacinas, cujo antígeno escolhido foi a proteína Spike, a coroa que envolve o Sars-CoV-2 como se fossem espinhos. O problema é que essa parte externa do vírus é a que mais sofreu alterações – e por isso mesmo a eficácia das vacinas atuais diminuiu com o tempo. “Além de focar na proteína mais conservada, usamos outros mecanismos do sistema imunológico, como os linfócitos T”, explica Gazzinelli. Essa estratégia induz uma resposta imune mais duradoura e resistente às variantes. O grupo já conseguiu mostrar que a vacina protege bem em modelos experimentais. Os pesquisadores também fizeram os testes de segurança em animais e pretendem, em breve, entrar com a documentação na Anvisa para aprovar o ensaio clínico. “Estamos com a expectativa de ter essa vacina aprovada no fim de março”, diz o imunologista. A esperança é que a segunda geração de vacinas contra a Covid – as que virão com tecnologias mirabolantes e soluções criativas – possa nos tirar da espiral macabra de variantes.