Sempre que indagado sobre sua relação com o Brasil, Jorge Luis Borges falava da profunda impressão que lhe havia causado a leitura de , de Euclides da Cunha, talvez a única grande obra da literatura brasileira que o escritor argentino tenha lido com algum cuidado. Nenhum outro autor brasileiro parece tê-lo interessado, nem mesmo Machado de Assis, a respeito de quem não deixou qualquer observação relevante.
Como teria se dado o contato de Borges com a obra de Euclides? Leitor voraz, não lhe faltariam oportunidades de encontrar exemplares de nas muitas bibliotecas que frequentou (ou mesmo dirigiu), ou ainda nas ricas livrarias de Buenos Aires, que orgulhavam-se de estoques fabulosos de livros em muitas línguas.
Na verdade, Borges só parece ter lido , em 1938, com quase quarenta anos, num exemplar emprestado pela biblioteca do consulado brasileiro em Buenos Aires, como mostram as imagens desta página. Por que cargas d’água foi justamente este o exemplar lido e manuseado por Borges? Pareceu-lhe natural pedir emprestado um clássico brasileiro à biblioteca oficial brasileira em Buenos Aires? É provável.
O livro, uma oitava edição do romance, datada de 1925, traz uma dedicatória de um certo A. Sobral “Ao Consulado do Brasil em Buenos Aires”, provavelmente um brasileiro patriota que considerava essencial que a biblioteca do consulado de seu país possuísse uma das maiores obras em prosa de nossa língua.
O que torna esse exemplar excepcional é a assinatura de Borges na última página, datada de 1938, e a anotação de uma frase de Euclides que o marcou, na página 191: “A virtude era uma quase impiedade”. Borges tinha por costume anotar frases ou trechos que mais lhe chamavam a atenção ao final dos volumes que lia e não hesitou em fazê-lo até mesmo num exemplar que não lhe pertencia (e que provavelmente devolveu à biblioteca do consulado).
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O livro foi comprado por seu atual detentor de um livreiro antiquário de Buenos Aires há mais de 20 anos. Como terá chegado às mãos desse especialista? Foi Borges quem conservou o exemplar do consulado sem nunca devolvê-lo? Como saiu de suas mãos? O teria vendido em uma limpeza de sua biblioteca? Ou terá sido o próprio consulado que fechou a biblioteca, ou a renovou em algum momento? Foi o dono do sebo que teria comprado os livros do consulado quem descobriu a assinatura de Borges?
Nunca se saberá, mas a sobrevivência deste livro materializa um laço crucial entre nosso maior prosador do começo do século XX e aquele que muitos consideram o maior escritor de língua espanhola do mesmo século.