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    ILUSTRAÇÃO: PAULA CARDOSO

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Brasil permite próteses mamárias proibidas na Europa

Incêndio e impedimento de atuar em vários países comprometem negócios da Silimed

Allan de Abreu, Bernardo Esteves e Camila Zarur | 26 nov 2018_14h10
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* Esta reportagem faz parte do Implant Files, projeto do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, o ICIJ, com sede em Washington, DC. O Implant Files reúne 252 profissionais de 59 veículos de 36 países, que investigaram dezenas de fabricantes e distribuidoras de dispositivos médicos em todo o mundo. No Brasil, participam da apuração a revista piauí e a Agência Pública. Esta reportagem foi produzida por Allan de Abreu, Bernardo Esteves, Camila Zarur, José Roberto de Toledo, Vitor Hugo Brandalise, Kellen Moraes, Flávia Tavares, Marcella Ramos e Kátia Regina Silva.

 

Outubro de 2015 não foi um mês bom para a Silimed, empresa brasileira que é a principal fabricante latino-americana de próteses de silicone para aumento e reconstrução de mamas e a quinta maior do mundo desse mercado. No começo do mês a empresa viu suas próteses retiradas do mercado do Brasil e de outros países depois que foram encontradas partículas estranhas em sua superfície. Três semanas depois, um incêndio destruiu 80% de sua fábrica em Vigário Geral, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Embora tenha voltado a atuar no Brasil nove meses depois de sua suspensão, a Silimed continua proibida de vender seus implantes na Europa. Com a capacidade de produção prejudicada pelo incêndio, a empresa brasileira perdeu espaço num mercado que movimentou globalmente 1,2 bilhão de dólares em 2016.

O incêndio no parque industrial da Silimed começou por volta das 18 horas do dia 22 daquele mês de outubro, uma quinta-feira, conforme a piauí apurou (a Silimed não divulgou detalhes sobre o episódio). As chamas começaram na “sala limpa”, o ambiente onde são fabricadas as próteses. A produção de dispositivos médicos que são implantados no organismo requer cuidados especiais, já que qualquer tipo de contaminação pode ter consequências funestas para os pacientes. A “sala limpa” caracteriza-se por ser um ambiente com rígido controle da quantidade de partículas no ar, pressão positiva (ar-condicionado especial, que faz com que o ar só saia do ambiente, e não entre a não ser o ar filtrado), divisórias especiais e acessos controlados, com baias de descontaminação.

Havia poucos funcionários na fábrica naquele dia. De acordo com um deles, que deu entrevista sob condição de anonimato, houve um curto-circuito na sala durante a limpeza do imóvel. “Como havia poucas pessoas circulando na fábrica, as equipes de limpeza estavam reduzidas”, afirmou. Naquele dia, continuou, o pessoal do administrativo, que faz a limpeza dos ambientes que não requerem cuidados especiais, estava esterilizando o ambiente de produção das próteses. Não era sua função habitual. É um procedimento especializado, que usa materiais inflamáveis. Ainda de acordo com o funcionário ouvido pela piauí, a equipe estava usando uma enceradeira em um chão com álcool para limpar o piso. “A máquina parou e alguém puxou a tomada. Houve um pequeno curto-circuito e saíram umas faíscas, e foi assim que o fogo começou.”

Oficialmente, o laudo da perícia anexado ao inquérito da Polícia Civil que investiga o caso é inconclusivo em relação às causas do incêndio. A Silimed foi indenizada pela companhia contratada para fazer o seguro da fábrica, mas não revelou o valor recebido.

 

Antoine Jean Henri Robert, francês naturalizado brasileiro, era diretor financeiro de uma empresa no Rio de Janeiro quando, em 1978, decidiu abrir a representação de uma fabricante francesa de próteses mamárias de silicone. Era um mercado totalmente inexplorado na época, mas deu tão certo que, em 1981, o empresário decidiu fabricar o seu próprio produto e abriu a primeira fábrica de próteses de seios da América Latina, no Centro da capital fluminense.

Ainda nos anos 80, Robert e a mulher, a brasileira Margaret Coelho de Figueiredo, transferiram a produção para um galpão adquirido em Vigário Geral. Três fatores pesaram para a mudança de endereço: o preço dos terrenos, bem mais baratos do que na área central; a disponibilidade de áreas maiores; e a qualidade do ar. Na época, por motivos semelhantes, outras fábricas também se instalaram no local – atualmente são 84, de diversos setores, segundo a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro, a Firjan.

A partir da década de 90, o bairro se tornaria nacionalmente conhecido pela violência urbana. Foi a poucas quadras da fábrica da Silimed, na rua Figueiredo Rocha, que, em agosto de 1993, 21 moradores de uma favela foram executados por um grupo de extermínio formado por policiais militares, no que ficou conhecido como a chacina de Vigário Geral.

Hoje, de acordo com a assessoria de imprensa da empresa, 71% dos 300 funcionários da fábrica moram no bairro. Quem reside em outros pontos da cidade relata uma rotina de medo – a área é controlada pela facção criminosa Terceiro Comando Puro, segundo a Polícia Civil. De acordo com ex-funcionários da Silimed, que preferiram não se identificar, o trajeto entre o ponto de ônibus ou de trem e a fábrica está longe de ser tranquilo. Um deles afirmou que precisava deixar o crachá à mostra no percurso até a Silimed. “As pessoas vão de jaleco para mostrar que são trabalhadores.” Outro empregado relatou que quem chegasse de carro podia ser parado nas imediações da fábrica e, nesse caso, precisava se identificar como funcionário da Silimed. Apesar da vizinhança inóspita, não há registros policiais nem relatos de problemas significativos enfrentados pela Silimed no bairro.

A empresa fabrica outros dispositivos médicos, mas a maior parte do volume de negócios vem da produção de próteses de mama. Por muitos anos, a Silimed monopolizou esse mercado no Brasil – em 1992, ainda era a única fabricante do produto na América Latina. Vendia 5 mil implantes por ano no Brasil e exportava outros 12 mil. A Silimed não revela seus números atuais de produção e de venda – a piauí apurou que, no ano passado, a empresa comercializou cerca de 50 mil próteses mamárias.

Em 1999, Robert vendeu parte da empresa para Hanus Klinger, tcheco radicado em São Paulo, morto há quatro anos – seus filhos Daniel, Michael e Sandra herdaram a participação do pai. Atualmente o capital social da Silimed, uma empresa de capital fechado, é de 16,5 milhões de reais, de acordo com a Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro – como comparação, em 1999 o capital era de 129 mil reais, em valores corrigidos. A família Robert detém 76,3% das quotas; os Klinger, os 23,7% restantes.

Hoje, a Silimed possui duas fábricas de próteses em terrenos contíguos em Vigário Geral (a segunda unidade industrial foi inaugurada em 2003) e filiais em São Paulo, Paraná, Amazonas, Pará, Roraima, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo e Bahia. A concorrência aumentou: agora são vendidas no país próteses mamárias de quinze marcas, incluindo uma segunda fabricante brasileira, a Lifesil, fundada em 2005 em Curitiba. Especialistas no setor calculam que a Silimed detenha cerca de 30% do mercado nacional, dividindo espaço principalmente com multinacionais como a Allergan e a Mentor, ambas norte-americanas.

 

No primeiro dia de outubro de 2015, a Silimed recebeu uma má notícia da Anvisa. A agência federal responsável por regulamentar medicamentos e dispositivos médicos em circulação no Brasil determinou a suspensão da produção e comercialização, no país, de todas as próteses fabricadas pela empresa carioca.

A medida era uma reação à proibição temporária da venda de produtos da empresa na Europa. Oito meses antes, o órgão responsável por certificar os produtos da Silimed na Alemanha, chamado TÜV SÜD, recebeu uma denúncia alertando para a presença de “corpos estranhos” na superfície das próteses mamárias fabricadas pela empresa brasileira.

O TÜV SÜD investigou, entre março e setembro daquele ano, a origem de tais partículas – antes disso, o FDA, agência reguladora norte-americana, também havia investigado a presença de partículas nas próteses brasileiras, mas não viu a necessidade de tomar qualquer ação preventiva. A instituição alemã, porém, chegou a uma conclusão diferente. Como não teve resultados satisfatórios nos testes feitos na produção dos implantes, o TÜV SÜD alertou as autoridades de Vigilância Sanitária da Europa que, por sua vez, decidiram cancelar o certificado de conformidade atribuído às próteses da Silimed, obrigatório para produtos vendido na União Europeia.

Nesse mesmo ano, uma análise feita pelo Instituto Nacional de Saúde Pública e Meio Ambiente da Holanda identificou fibras sintéticas têxteis e de vidro nos implantes da marca. Com base em estudos feitos em animais, o relatório holandês afirmou que as partículas em questão têm um potencial, ainda que pequeno, de causar câncer após o implante. Com isso, a empresa ficou impedida de vender seus produtos num dos maiores mercados do mundo. A decisão fez com que a Austrália também suspendesse as atividades da empresa no país.

Assim que a notícia das suspensões chegou ao Brasil, a Anvisa inspecionou a fábrica da empresa em Vigário Geral no fim de setembro de 2015. No local, identificou a presença de partículas sintéticas na superfície dos implantes, que com isso deixavam de obedecer aos critérios de produção determinados pelas normas de certificação. A Anvisa suspendeu a produção e o uso de todos os produtos implantáveis que fabricava, e teve cancelado seu Certificado de Boas Práticas de Fabricação.

Somente em julho de 2016 a Anvisa emitiu um novo certificado que permitiu à Silimed retomar a fabricação e comercialização dos implantes. Naquele momento, no entanto, a empresa já não podia contar com a sua principal unidade fabril, comprometida pelo incêndio ocorrido três semanas após a suspensão. A Silimed teve de reformar a “sala limpa” de uma segunda planta industrial, que fica nos fundos da primeira, também em Vigário Geral. Passou a operar então com apenas 33% de sua capacidade produtiva. Com a indenização paga pela seguradora, a empresa está construindo uma terceira fábrica às margens da rodovia Washington Luís, também no Rio, em parceria com um grupo de investidores.

Embora a Silimed tenha recebido sinal verde para voltar a operar no Brasil, ela continua sem o certificado de conformidade da União Europeia. Por isso, ainda em razão das partículas estranhas encontradas em 2015, a empresa permanece proibida de vender suas próteses no mercado europeu. As sanções não a impediram de abrir uma filial em Londres em 2016. A empresa continua fora, também, dos mercados de Estados Unidos e Austrália.

A piauí quis saber da Anvisa se as autoridades brasileiras estavam adotando critérios menos rigorosos que os da Europa para liberarem as próteses que continuam fora daquele mercado. Em nota, a agência respondeu que os critérios adotados para a concessão do novo Certificado de Boas Práticas de Fabricação seguem uma resolução “harmonizada com os padrões internacionais”. Afirmou ainda que a medida só foi tomada após a realização de inspeções nas instalações da Silimed e da análise do plano de ação apresentado pela empresa e dos eventuais riscos que as pacientes corriam. Concluiu, por fim, que “não existem evidências de que a presença das partículas de superfície nos implantes de silicone fabricados pela Silimed representa um risco adicional ao risco inerente ao produto”.

Em nota enviada à piauí, a Silimed afirmou que, em razão da capacidade limitada de produção desde o incêndio de 2015, decidiu focar sua atuação em mercados como Brasil, África do Sul, Rússia, Coreia do Sul e América Latina. “Após ampliação da capacidade produtiva, a companhia buscará a obtenção das certificações necessárias para que volte a atuar em outros países.” A empresa assinalou ainda que obteve em setembro deste ano o certificado ISO 13 485, “que atesta padrão internacional de qualidade a empresas que atuam no setor de produtos para a área de saúde”. O certificado não basta à empresa, no entanto, para que volte a atuar nos mercados em que está proibida de vender suas próteses.

Como reflexo da crise da Silimed, a exportação de próteses mamárias de silicone pelo Brasil despencou de 437 quilos em 2015 para 98 quilos no ano seguinte e 56 em 2017, de acordo com o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços.

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