“Vê lá. Tudo da nossa terra.”
O primeiro aviso aos compatriotas vem de um dos trabalhadores brasileiros da mais nova atração turística de Lisboa, o Museu do Tesouro Real – uma caixa-forte de três andares que guarda pepitas de ouro de até 20 quilos e 22 mil pedras preciosas, quase todas diamantes, identificadas como nativas da “região apelidada de Minas Gerais” e também de Goiás. O acervo do museu, inaugurado no início de junho, trata da riqueza que rendeu ao então império escravocrata português, sobretudo no século XVIII, um poderio financeiro sem igual. O ouro brasileiro alavancou o comércio entre Portugal e parceiros poderosos como a Inglaterra, irrigou casas bancárias europeias e se transformou em joias usadas por reis e rainhas, agora expostas ao público – centenas delas pela primeira vez.
A catarse dos brasileiros começa já na bilheteria, antes mesmo de se depararem com um diamante bruto comparável a uma pequena lâmpada, uma água-marinha mais robusta do que um ovo, e uma impressionante vitrine onde reluzem catorze pepitas de ouro com o tamanho de uma mão fechada. Sem esquecer do “torrão” de 20 quilos, ouro aglomerado a ferro e quartzo, exposto numa vitrine exclusiva. É considerado tão raro “que foi exibido em 1876, num baile no Paço da Ajuda”, segundo a descrição do museu.
“Não tem desconto para brasileiros, não?”, ouve-se na fila de ingressos a 10 euros (cerca de 52 reais). “Infelizmente não”, responde a atendente. “Oxe, mas o ouro não veio do Brasil?”, insiste a voz masculina. “Sim, sim”, sorri a jovem, que teve de ser lembrada de que o casal de turistas tinha direito ao bilhete reduzido para seniores, acima de 65 anos. “Pelo menos economizei 6 euros”, conformou-se Fernando Feijó Dubeux, ao lado da mulher, Teresa Cristina Maia, ambos do Recife (PE).
Minutos antes, ele havia subido a escadaria da nova ala norte do Palácio Nacional da Ajuda, onde está instalada a coleção permanente de 736 peças do Tesouro Real, prometendo, bem-humorado, “levar tudo de volta para o Brasil” – numa verdadeira paródia do meme “devolve nosso ouro” com que zucas provocam tugas (abreviação afetiva-depreciativa usada por brasileiros e portugueses para se referir um ao outro em Portugal).
Sobre a origem da riqueza não há contestações. No totem sobre 1700, aquele recomendado para que fosse visto com atenção, está escrito: “A descoberta de grandes jazidas de ouro e diamantes no Brasil, monopólios da Coroa Portuguesa, está na base do extraordinário enriquecimento do Tesouro Real durante o reinado de João V”, período chamado em Portugal de “Reinado de Ouro” (1707-1750).
Quem lia tudo minuciosamente e comentava cada frase com uma amiga, era a socióloga paulistana Ana Alice de Arruda Sampaio. O ambiente de penumbra da sala de paredes negras, com luzes direcionadas para a cintilância das joias, não impediu que a brasileira abordasse um português bem-vestido, que caminhava com auxílio de uma bengala, quando ambos ficaram lado a lado admirando os diamantes de uma coroa e um colar de estrelas que chegou até Dona Amélia, esposa do rei Carlos I, que reinou de 1889 a 1908.
Depois de lhe perguntar o nome (Fernando, mais um) e a nacionalidade, Ana Alice foi direto ao ponto: “Como é que o senhor se sente, sendo português, vendo todas essas riquezas do Brasil aqui?” Sem esperar pela resposta, emendou: “Não acha que Portugal devia ao menos dividir conosco?” “Sim, sim”, contemporizou o homem. “As pedras são quase todas do Brasil, mas a ourivesaria é europeia”, observou. Ana Alice voltou à carga. “Portugal é rico; o Brasil é um país pobre.” “Não, não, o Brasil é rico”, discordou Fernando. A conversa, ouvida pelos visitantes, foi logo interrompida pelos acompanhantes do idoso, que estavam um pouco distantes e voltaram para resgatá-lo.
“Pensei que ele ia dar um pulo com a minha pergunta, mas foi calmo e educado”, avaliou a socióloga, parente do ex-deputado constituinte Plínio de Arruda Sampaio, falecido em 2014. “O Brasil pode ser rico, mas o povo continua pobre”, disse, concluindo o breve debate luso-brasileiro. “Você vê, meu primo ajudou a escrever a Constituição Cidadã de 1988 e hoje o país piorou, pouco ou nada mudou”, acrescentou. E fez sua proposta final para a equidade entre Brasil e Portugal: “Deviam é dividir e não multiplicar por seis o que pagamos aqui”, sugeriu, arredondando para cima a atual cotação do euro em relação ao real.
Na vitrine de tiaras e adornos femininos está também, por empréstimo da Suíça, a coroa de diamantes e grandes safiras azuis da rainha brasileira de Portugal, Dona Maria II, filha de Dom Pedro I, que reinou até 1853. Além de 86 grandes botões de diamantes que ela mandou retirar de vestes e casacos para fazer outros ornamentos – algo que, ensina o museu, era prática comum entre os monarcas. O visitante pode apreciar também as condecorações dadas a nobres e altas autoridades. Dentre elas, impressiona, pelo tamanho e pelo brilho, o broche de quase 30 centímetros da Ordem do Tosão de Ouro, com mais de 1.600 diamantes e duas centenas de rubis, pertencente ao então príncipe Dom João, futuro rei de Portugal, Brasil e Algarve, e que teria sido um presente de sua mãe, Dona Maria I, conhecida no Brasil como a rainha louca.
Na mesma época em que encomendava a seu ourives particular joias extraordinárias, como insígnias em diamante, rubis e esmeraldas das Três Ordens Militares, Dona Maria mandava abrir, em 1789, a devassa contra o que foi chamado pela Coroa portuguesa de Conjuração Mineira. Duas dezenas de habitantes das comarcas de Vila Rica (Ouro Preto) e Rio das Mortes (São João del Rei e Tiradentes), boa parte deles membros da elite mineradora, terminaram condenados por crime de lesa-majestade contra “o suavíssimo e ilustradíssimo governo da dita senhora” por defenderem que “o ouro e o diamante seriam livres” na sonhada “República das Minas”.
Na sentença assinada em nome da rainha, tornada pública em abril de 1792, um mês após ter sido declarada insana e substituída pelo filho, ela manda enforcar, cortar a cabeça e esquartejar em quatro partes o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, que se transformaria, cem anos depois, no herói mítico do Brasil republicano. Ainda de acordo com a histórica sentença, a insurgência supostamente liderada por Tiradentes foi planejada justamente contra a prometida execução fiscal da Coroa, a chamada derrama, quando “os povos de Minas” teriam de pagar anualmente, relata o documento, cem arrobas de ouro, o equivalente a 1.500 quilos, ou uma tonelada e meia – retirada da terra por meios braçais. Pela cotação do ouro hoje, isso equivaleria, excluídos, juros, correções e eventuais aplicações, a 82,5 milhões de euros ou cerca de 430 milhões de reais, devidos apenas por Minas Gerais, a cada ano.
Isso sem contar os diamantes e as pedras preciosas. Mas nada disso é sequer citado nessa primeira exposição do Tesouro Real. Sobre o duríssimo e insalubre trabalho de extração mineral, que explorou grande quantidade de mão de obra escravizada, lê-se o seguinte: “A corrida ao ouro trouxe inúmeros exploradores e aventureiros à região (das Minas Gerais) que, olhando para o chão, não tardaram a encontrar os almejados diamantes em enorme e inédita quantidade, no primeiro quartel do século XVIII.” Pode-se pensar que as pedras saíram de forma fácil e mágica da natureza. E prossegue a historiografia do museu, que dá protagonismo à qualidade artística das joias em si: “É esta descoberta que explica a mudança de paradigma na joalharia, que passa a ser definida não pelos metais preciosos, mas sim pelas pedrarias.”
Durante a inauguração do museu para autoridades e convidados, ocorrida na quarta-feira, 1º/06, o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, (equivalente a prefeito no Brasil) fez uma defesa enfática do investimento no novo museu, que consumiu 31 milhões de euros, financiados em sua maior parte pelas taxas cobradas aos turistas que visitam a capital – onde se destacam britânicos, espanhóis, franceses e brasileiros.
“Hoje devolvemos aos portugueses aquilo que é deles, aquilo que é nosso. Mas sabemos que, ao fazê-lo, vamos despertar sentimentos contraditórios (…) sobre o lado mais trágico da nossa história”, afirmou. “Penso que crianças e jovens vão ver peças que, na sua profunda beleza, carregam também a marca do sofrimento, da guerra, das invasões, das fugas, marcas da escravatura, do colonialismo, mas essa é a nossa história que devemos defender todos os dias”, completou. Ele não mencionou a relação com o Brasil, como também não o fizeram o primeiro-ministro socialista António Costa, que saudou Dona Isabel e Dom Duarte pelo legado da família real, nem o presidente Marcelo Rebelo de Sousa (PSD), que destacou não existir na história de uma pátria, conceito que exaltou, “glória sem miséria”.
A coroa de ouro que está exposta no Tesouro Real é a de Dom João VI, feita com ouro do Brasil, no Brasil – mais especificamente no Rio de Janeiro, em 1817. Ela foi encomendada ao ourives real, o português António Gomes da Silva, que seguiu em 1808 com a corte para o Brasil, mas produzida na oficina de Inácio Luís da Costa – apontado não só como autor da coroa, bem como do cetro real. O Museu Nacional da Ajuda, que divide o mesmo prédio com o Tesouro Real, publicou, em suas redes sociais, mais detalhes sobre a peça. “A execução da coroa real ficou a cargo do oficial Inácio Luís da Costa, mulato estabelecido à Rua dos Ourives 12, nessa época a serviço de António Gomes da Silva.”
A coroa de 2,5 quilos de ouro de Dom João VI – sempre exposta junto ao trono, mas nunca usada na cabeça – encantou o pernambucano Fernando Feijó, que fez questão de ser fotografado “coroado”. Ao lado da mulher Teresa Cristina, nome de imperatriz, Fernando quis também uma foto junto do “rei xará” (foto). Ao fim do circuito, ele mantinha o tom jocoso: disse que ficaria satisfeito se levasse de volta para o Brasil pelo menos o diamante bruto. Teresa Cristina disse ter amado a exposição, que julgou bem catalogada, e aprendido mais sobre a relação entre Brasil e Portugal. Também no fim da exposição, o grupo do português Fernando deteve-se na caixa de pau-brasil feita no Rio exclusivamente para transportar a coroa de Dom João VI. Duas mulheres, uma de meia-idade e outra jovem, comentaram entre si. “Deviam devolver essa coroa. Quem sabe assim os brasileiros não ficavam felizes.”
Ao saírem do museu pela novíssima fachada contemporânea da ala norte do Palácio (foto), que esteve inacabada por 226 anos, o casal do Recife desceu sorridente a Calçada da Ajuda, ornada por jacarandás floridos – outra herança preservada do Brasil, que nessa época colore de lilás ruas e praças de Lisboa.