“Dó maior”, pediu Reginaldo Rossi à banda do Domingão do Faustão, num programa transmitido em 2003. O acorde ecoou pelo estúdio. Mesmo a portas fechadas, sob iluminação artificial, o cantor pernambucano não tirou por um instante os óculos escuros. “Olha, nunca mais eu quero saber de você/ pois o imenso amor que eu lhe dediquei/ você não ligou e nem sequer notou…”
O registro é um dos poucos em que Rossi aparece cantando O Pão, primeiro sucesso de sua carreira. A música foi lançada em 1966 em um vinil de doze faixas que leva o nome do cantor. A foto de capa – um Rossi de 20 e poucos anos, cabelo liso engomado, camiseta branca justa –, assim como as melodias e o tema das letras, remetem à estética da Jovem Guarda. Pode-se chamar aquilo de rock’n’roll ou iê-iê-iê. O brega mesmo só viria mais tarde.
É difícil apontar o momento exato da transição entre o jovem rebelde e o adulto romântico, cronista de paixões e dores de cotovelo. Ao longo dos anos 1970, o cabelo alisado voltou ao crespo natural. O look rebelde à la Elvis Presley deu lugar à camisa social com vários botões abertos, corrente à mostra, óculos escuros alaranjados. Terminada a década, o artista era outro, e o público também. Nos anos 1980, vieram os discos de platina e a fama.
A figura ganhou contornos míticos. O Galo da Madrugada, maior bloco de rua do mundo, passeou pelas ruas do Recife no último sábado (10) exibindo um galináceo de 4,5 metros de altura. O bicho vestia óculos escuros e uma corrente no pescoço. Não era preciso mais do que isso para identificar o homenageado, que morreu dez anos atrás, vítima de um câncer no pulmão.
Em Pernambuco, Rossi é cada vez mais celebrado com estátuas e murais (o mais recente foi inaugurado em janeiro, na fachada do Edifício Rostand, em Recife). Suas músicas tocam nos alto-falantes dos mercados populares, nos bares e nas festas de Carnaval, mesmo aquelas frequentadas pela classe média. O brega, antes estigmatizado como um gênero musical vulgar, popularesco, vem conquistando reconhecimento artístico e alcançando um novo público. Em 2017, uma lei o consagrou como expressão cultural de Pernambuco. Desde então o governo estadual é obrigado a direcionar parte dos gastos de cultura a eventos que celebrem o brega. Em 2021, o gênero foi reconhecido como patrimônio cultural e imaterial do estado do Pará.
Há outras iniciativas semelhantes. Tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que quer transformar o 14 de fevereiro em Dia Nacional do Brega. A data marca o aniversário de Rossi. Coincidentemente, é quando se comemora em muitos países o Dia dos Namorados, momento propício para desilusões amorosas. No final do ano passado, o músico Ivanildo Marques da Silva, conhecido pelo nome artístico Conde Só Brega, compareceu a uma sessão na Câmara para defender o projeto que homenageia seu ídolo.
“Tudo começou com ele [Rossi] rodando o Brasil e cantando aquela música que todos nós conhecemos”, disse Silva ao microfone, antes de entoar, na frente de deputados e assessores, o hit Garçom, canção mais célebre do brega nacional, lançada no fim dos anos 1980. Como se estivessem num karaokê, a maioria dos presentes se juntou ao coro. “Saiba que meu grande amor hoje vai se casar…” O projeto ainda não foi à votação no plenário.
Até Reginaldo Rossi despontar no cancioneiro popular, brega não era mais do que um adjetivo depreciativo, usado para se referir a tudo que se considerava cafona, ridículo ou simplesmente interiorano. Ainda é assim, mas a palavra ganhou nova dimensão. “Ele tem o mérito histórico de ter assumido o brega como substantivo”, atesta Paulo César de Araújo, pesquisador e autor do livro Eu não sou cachorro não: música popular cafona e ditadura militar, publicado em 2002. “Foi uma forma de reivindicar essa palavra.”
O livro trata do contraste que sempre marcou o brega: embora fosse um gênero popularíssimo, nunca recebeu atenção da crítica especializada. “Ele foi o sustentáculo de muitas gravadoras”, argumenta Araújo. “A Philips, por exemplo, gravava no selo azul, de maior prestígio, Caetano, Gil, a nata da MPB. Na Polydor [sua subsidiária], gravava Odair José, José Evaldo Braga. Esses artistas do brega vendiam milhões pra que o Caetano pudesse gravar seus discos sofisticados que vendiam, na época, 30 mil, 40 mil cópias.”
Rossi, Pitter e Braga eram artistas do povão. Uma categorização marcada pelo preconceito de classe, e que indica não se tratar de uma arte digna de apreciação séria. “Há uma dificuldade social em entender a periferia como lugar de produção de cultura”, diz Tiago Soares, pós-doutor em comunicação e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Autor do livro Ninguém é perfeito e a vida é assim: a música brega em Pernambuco (2017), Soares faz parte de uma leva de acadêmicos que vêm fazendo um resgate do brega, associando-o a fenômenos sociais e – no caso de Reginaldo Rossi – raciais. O professor argumenta que, com seus cabelos, o Rei do Brega acenava à estética “black is beautiful” dos anos 1970. Pobreza e racismo, diz Soares, contribuíram para a estigmatização do gênero brega-romântico.
O filho do cantor, Roberto Rossi, concorda. Ele diz que o pai nunca negou sua negritude. “Mesmo na época da Jovem Guarda, quando ele alisava o cabelo, não era porque ele queria ser branco. Era apenas um modismo.”
Com mais de quarenta álbuns gravados, Rossi foi premiado com discos de platina, ouro e diamante. Uma carreira profícua. O segredo do sucesso, segundo ele próprio formulou numa entrevista a Jô Soares em 2010, estava na simplicidade das canções. “Essas músicas todas falam coisas do povo. Não tem complicação, não tem metáfora, não tem teorema de Pitágoras.”
Roberto – que também é músico e não tira os óculos escuros – tem uma explicação mais sintética para o sucesso perene do pai. “O brega não sai de moda porque o amor não sai de moda.” Hoje, ele pondera, não é só o povão que escuta brega. Afinal, “quando o chifre dói, o diploma cai da parede.”
Duda Beat, cantora pop nascida no Recife, conta que cresceu ouvindo Reginaldo Rossi. Costumava vê-lo em programas de tevê quando voltava para casa depois da escola. Ela diz que o brega foi uma das influências no seu jeito de compor e de cantar. Assumir esse parentesco talvez fosse motivo para algum constrangimento anos atrás. Hoje o gênero é abraçado com certo orgulho por artistas jovens. “O brega também é pop”, explicou Duda à piauí.
Otto, outro músico pernambucano de uma geração recente, recebeu das mãos de Rossi, em 1999, o prêmio de artista revelação da MTV. Tempos depois, no programa Altas Horas, da TV Globo, ouviu o Rei do Brega dizer: “Eu vejo no Otto o Reginaldo Rossi de 20 e poucos anos.” Na época, Otto já tinha trinta e lá vai bolinha, mas sentiu-se engrandecido com a comparação.
Agora com 55 anos, Otto entende com mais clareza sua relação com o brega. No ano passado, deu início a uma turnê em que canta exclusivamente canções de Rossi, uma homenagem póstuma ao ídolo. Tomado pelo espírito brega, ele elaborou uma hipótese sociológica para o revival do gênero: segundo ele, o brega tem se beneficiado do fato de que, com as redes sociais, as pessoas passaram a ter mais facilidade para se abrir e expor sentimentos. Há algo de nobre na dor e na humilhação compartilhadas. “A gente tá percebendo que o mundo todo é brega”, ele explica. “Todo músico, todo artista, toda performance. O brilho é brega, o funk é brega. O brega é tudo que você quis usar e não usou, tudo que você quis cantar e não cantou, o que quis dançar e não dançou. Brega é o que você sempre quis ser.”
A turnê foi idealizada na pandemia. Otto trocou sua indumentária habitual – camiseta e calça jeans – por camisas de alfaiataria, sempre com alguns botões abertos, e óculos escuros. Ele conta que não precisou dar uma nova roupagem às músicas para que elas fossem bem aceitas pelo seu público. “Muito pelo contrário, o rei continua atual. Não precisei mudar nem o tom.”